“O Padrinho” de Mario Puzo (Bertrand11/17)
Tradução de: Carlos Vieira da Silva
Com a publicação, em 1969, deste
romance sobre a Máfia nova-iorquina passado nos anos 1940, Mario
Puzo, também ele, tal como as suas personagens, um descendente
de imigrantes italianos nos Estados Unidos, jornalista de profissão,
consegue finalmente afirmar-se como ficcionista. O mesmo romance
daria, alguns anos mais tarde, origem à adaptação cinematográfica
de Francis Ford Copolla, em 1972, com Marlon Brando no papel de Don
Vito Corleone e Al Pacino como Michael Corleone. Uma película que
ganharia três óscares para a categoria de Melhor Filme, Melhor
Argumento Adaptado e Melhor Actor (Brando).
A acção principal do romance incide,
como já foi referido, em Nova-Iorque durante a chamada “Lei Seca”,
que proibia a venda de bebidas alcoólicas, época que coincide com a
ascensão do poder tentacular dos vários ramos da Máfia Siciliana
naquela cidade, os quais, durante a segunda metade do século XX,
estendem a sua influência a cidades como Las Vegas e Los Angeles.
No primeiro volume da saga Corleone,
Puzo explora, embora de forma algo superficial, as raízes
históricas das Máfias sicilianas em terras do Tio Sam e a razão do
secretismo à volta daquela organização, construída à base de
laços afectivos e de sangue, com raízes que as culturas que
remontam à época medieval na Europa,surgindo num contexto de
oposição à ordem estabelecida e às classes dominantes como forma
de subversão, formando um grupo reaccionário face às leis impostas
pela sociedade e, principalmente como forma de resistir aos desmandos
da Inquisição.
Mas com o passar do Tempo dá-se,
segundo o Autor, uma nova inversão de valores e a rede mafiosa passa
a ser, ela própria, um instrumento de opressão, baseando as suas
atitudes na rapina, na contrafacção e na extorsão, dirigida a
todas as classes sociais, inclusive àquelas que era suposto
proteger.
O autor dedica uma boa pare do romance
a explicar a forma como, pouco antes da II Guerra Mundial, as
famílias mafiosas e os seus associados passaram a ser perseguidos em
Itália. Mussolini mandava prender todos aqueles que se lhe
apresentavam como meros suspeitos de pertencer a uma qualquer
organização criminosa, mas sem proceder a qualquer tipo de
julgamento, fundamentação ou validação de provas ou depoimentos
que se lhe apresentassem, prendendo culpados e, na maior parte das
vezes, inocentes, baseando-se frequentemente em denúncias falsas.
Com a chegada dos Aliados à Península,
sobretudo após o desembarque do Exército Americano, é deliberada a
libertação de todos os prisioneiros durante o regime de Mussolini
sem terem em conta que alguns eram, de facto, criminosos.
Noutra perspectiva, o Autor elabora,
também, o retrato da situação política do fascismo e do
pós-guerra que acaba por pressionar grande parte da população
siciliana a emigrar, impelida pelas graves dificuldades económicas
na Ilha a emigrar para os Estados Unidos.
Já nas décadas de 1930 e 1940 –
coincidindo com a ascensão e consolidação do poder de Mussolini -,
as organizações mafiosas começaram a proliferar nos Estados
Unidos, com o pretexto inicial de garantir a protecção aos seus
conterrâneos, actuando os seus chefes como patriarcas de uma grande
tribo ou clã. Noutras publicações deste Autor, como O Siciliano
de que falaremos dentro de algumas semanas, o Autor dedica-se a
explorar com pormenor as razões pelas quais os habitantes daquela
ilha e os seus descendentes em terras estrangeiras, confiam muito
mais nos laços de parentesco do que nas instituições do Estado
para garantir a própria segurança.
A família siciliana, retratada por
Puzo é muito mais do que uma família de sangue: trata-se de uma
família alargada, que engloba também um vastíssimo número de
“afilhados”. No caso concreto da comunidade ligada à família
Corleone,em O Padrinho, trata-se de pessoas com problemas
sobretudo do foro legal, a quem falha a ajuda das instituições. É
por essa razão que procuram Don Vito, um homem poderoso, com as
mesmas origens e raízes culturais, com o qual estabelecem laços de
suserania e vassalagem, garantindo assim a coesão social tipicamente
italiana, baseada na ajuda mútua e na troca de favores. Desta forma
é construída uma micro-estrutura social dentro do macro-sistema
social que é a sociedade norte-americana.
O motor do desenvolvimento da história
de O Padrinho será, no entanto, o conflito de gerações no
seio da família Corleone, cujo patriarca se vê pressionado pelas
outras famílias rivais a alargar o seu ramo de actividade:ao invés
de se limitarem a contrabandear bebidas alcoólicas e a cobrar uma
espécie de dízimo para garantir a segurança dos seus protegidos, a
família Corleone é assediada por outros grupos rivais no sentido de
vir a colaborar no tráfico de drogas - a família Tataglia, que
gere uma rede de clubes nocturnos na Big Apple. A tensão está
patente, dentro e fora da família, uma vez que o poder de Don
Corlene assenta numa complexa teia de favores – tráfico de
influências –, embora para o patriarca os fins nem sempre
justifiquem os meios.
Estrutura da
trama
Para explicar a forma como se estrutura
o poder de Don Corleone, Mario Puzo começa por expor, de
forma simples e dinâmica, algumas situações concretas de pessoas
que se encontram em situação frágil, sendo o único traço em
comum entre elas, uma situação de absoluto desespero, para a qual
procuram a ajuda e a protecção de Don Corleone, ao qual passam a
chamar de “Padrinho”. A ajuda terá, obviamente, o seu preço, o
qual será cobrado na hora exacta. A pessoa que é ajudada coloca-se
sob a sua protecção, mas ficará, a partir daquele instante,
devedora de uma lealdade incondicional ao seu benfeitor. O tratamento
por “Padrinho” é sinónimo de uma afectividade da qual o
patriarca é credor, sujeitando os seus aficcionados à lei do
silêncio – a Omertà –
face às autoridades oficiais e instituições do Estado, já que a
Máfia continua a ser, como nos tempos medievais, um desafio à ordem
estabelecida, constituindo um sistema de justiça paralelo. A Omertà
protege este tipo de laços. Se esta lei é quebrada, cessa o dever
de protecção do “Padrinho”, ficando o delator sujeito
consequências que daí possam advir – a vendetta. Uma
punição implacável, cruel, mas sempre coerente. Para Don Corleone
a vendetta é um prato que se come frio, nunca esquecendo uma
ofensa, como os felinos, característica que é também típica do
temperamento sulfuroso e vulcânico dos sicilianos.
Há, no romance, uma personagem, Johnny
Fontana, que lembra de forma algo alarmante o cantor Franck Sinatra,
com a sua voz de veludo dos tempos áureos, as tão especuladas
ligações à Máfia, as suas atribuladas ligações sentimentais, o
alcoolismo, a perda ou modificação da voz, para além de nos
permitir mergulhar no mundo de corrupção que é Hollywood e o
Showbizz e as ligações perigosas da Meca do cinema.
Estrutura e desenvolvimento da trama
O
romance divide-se oito partes ou Livros: No livro I são
esquematizadas as situações que levam a que algum dos protegidos de
Don Corleone lhe peçam um favor “especial”, no dia do casamento
da filha deste, sabendo da tradição siciliana que obriga a que um
patriarca nunca recuse um pedido que lhe façam no casamento de uma
filha: o funerário Amérigo Bonasera, o cantor Johnny Fontane, o
padeiro Nazorine e Anthony Copolla, o futuro dono de uma trattoria.
Assistimos também nesta fase ao nascimento de uma ligação
sentimental clandestina entre Sony e Luci Mancini, uma das damas de
honra da noiva, Constanza, facto que dá um toque picante ao romance.
Em simultâneo, o leitor é também posto ao corrente do
desenvolvimento da estrutura organizacional da rede de contacto e
actividades de Don Corleone, a qual se divide em várias facções,
lideradas pela sua equipa ou Capporegime (facções
encabeçadas por vários líderes): Tessio, Clemenza e Paulie Gatto.
Estes centuriões de actividades ilícitas encabeçam a facção
armada do pessoal de Don Corleone. Controlam as bancas de jogo e todo
um sistema de apostas e comércio de bebidas ilegais. A entrada de
Tom Hagen, um irlandês de ascendência germânica tão próximo de
Don Corleone como um filho, desde a adolescência, altura em que
perdeu os pais, dá-se na altura da sucessão de Genco Abbandando,
para o lugar de consigliere, homem da máxima confiança e
braço direito do “Padrinho”, acaba por despoletar alguns ciúmes
e ódios virulentos.
Ao mesmo tempo o desenvolvimento da
personagem Michael Corleone, o filho mais novo, sofre uma viragem de
180º. Trata-se da personagem mais modelada do romance, posto que,
inicialmente, somos levados a pensar que este terá um percurso de
vida fora das redes da Máfia, mas os acontecimentos subsequentes e
um ataque directo à família por clãs rivais alteram drasticamente
o percurso e a própria personalidade do benjamim Corleone.
Nos capítulos seguintes, a história
segue o seu curso fazendo entrever um desenvolvimento algo
previsível. A trama é articulada como um organograma de uma
organização que funciona como uma grande empresa ou corporação,
mostrando os múltiplos expedientes de que se serve para se infiltrar
nas instituições estatais: na política e no senado, nos grandes
negócios (legais), e até no cinema e demais meios de difusão de
massas, montando todo um complexo esquema de lavagem de dinheiro.
Por outro lado, a tentativa de
assassínio de Don Vito Corleone e a morte de Sonny marcam o início
de uma guerra sem tréguas, entre os Corleone e os outros clãs das
máfias de origem siciliana…
Nos livros III e IV, assistimos
a uma analepse – um recuo no tempo, cujo objectivo é o de ficarmos
a saber as origens de Don Corleone, desde o seu passado e origens
familiares na Sicília à construção do enorme poderio económico
em Nova Iorque, sobretudo no livro III. Ao recuo temporal que
possibilita o mergulho no passado de Don Vito segue-se uma pausa no
desenvolvimento da narrativa, que consiste na estadia de Michael na
Sicília, para se recuperar das feridas de um tiroteio e escapar da
mira dos seus inimigos. A história de Michael na Sicília é uma das
passagens mais belas do romance, e provavelmente, a de maior valor
literário, com um episódio lírico a terminar à maneira das
tragédias clássicas. Os dias passam lentos na paisagem quase
paradisíaca da Sicília. Quase. Porque a ilha esconde debaixo dos
perfumes da terra, venenos sulfurosos e um Etna social que é a Máfia
local. A família Corleone tenta colocar Michael sob a protecção de
um dos padrinhos da ilha, enquanto nos E.U.A. se tomam diligências
para limpar o nome de Michael, de forma a que este possa regressar
àquele país sem correr risco de prisão.
No livro V, sobressai a
velocidade dos acontecimentos após a morte de Santino (Sonny). A
guerra deflagra entre as famílias mafiosas de Nova Iorque, após
serem identificados os traidores dentro do grupos, violadores do
princípio da Omertà. Mas a tensão manter-se-á até ao final do
último capítulo. A identidade do traidor-mor é mantida até ao
fim, através de uma técnica utilizada pelo Autor a que podemos
chamar de “cortina de fumo”, que consiste em desviar as atenções
do principal suspeito, mantendo-o cuidadosamente “na sombra”, em
segundo plano. Uma estratégia frequentemente utilizada por Mario
Puzo e que se repete em romances posteriores como O Siciliano
e O Último Padrinho.
O grande vilão de O Padrinho”, romance no qual
praticamente todas as personagens – salvo Kay, Apollonia e Mrs.
Corleone são anti-heróis, pode definir-se como um indivíduo
inequivocamente reles: para além da ambição desmedida é alguém
possuidor de inteligência medíocre e sempre pronto a vender a alma
e o corpo pelo lance mais alto.
A actividade da Família Corleone
começa a deslocar-se gradualmente para Las Vegas e , através do
contacto de Johnny Fontana, a olhar para Los Angeles e Hollywood
como futuros foco de actuação.
No Livro VI, voltamos novamente à
Sicília onde ainda se encontra Michael, já casado com a bela
Apollonia, em recuperação. Neste episódio temos um breve
vislumbre de como o fundamento da Omertà favorece as relações de
poder insulares, que radicam num feudalismo serôdio que se escusa de
premiar o mérito pessoal ou o trabalho mas somente as relações de
poder.
Mike apercebe-se que esta Máfia, com
um código de honra ainda tão decalcado dos moldes do feudalismo é,
afinal, o garante da ordem política e jurídica existente…
No livro VI, é relatada a
paixão fulminante que acomete Michael pela primeira mulher, uma
mistura de gazela feita de ar, virginal, mas com algo de bacante,
pela luxúria que desperta a sua carne adolescente. Os acontecimentos
precipitam-se no entanto de forma funesta, precipitando o regresso de
Michael a Nova Iorque.
O livro VII mostra o filho mais
novo de Don Vito de volta aos Estados Unidos e aos braços da antiga
namorada, Kay, tal como um Ulisses que regressa a Ítaca e ao leito
de Penélope, após um idílico romântico e insular com a ninfa
Calipso. Ao contrário da relação com Apollonia esta é uma relação
baseada em afinidades: Kay não é fulminante como um raio, mas antes
um lago calmo.
Neta fase da história, assistimos à
evolução da saúde de Johnny e à ascensão profissional de Nino,
um protegido de Don Corleone e, também ao peso crescente do médico
Jules, amante da jovem Mancini, antiga paixão de Sonny. Este será o
médico que assiste ao pessoal e clientes dos casinos Corleone, em
Las Vegas, e gestor do hospital, fundado pela família, num genial
esquema de lavagem de dinheiro de origem duvidosa. Jules enriquece em
troca de ajudar alguns amigos de Don Corleone cuja saúde está
ameaçada. Como paga dos seus benefícios só tem de ignorar a
proveniência dos fundos que servem para criar - e manter - um
luxuoso hospital privado.
Freddie, o filho do meio, lidera os
negócios Corleone em Las Vegas, dedicando-se definitivamente ao
jogo, à hotelaria e evitando o narcotráfico, por ordem expressa do
patriarca.
Após o seu regresso, Michael começa
entretanto a preparar-se para suceder ao pai nos negócios, tarefa
que lhe exige grande esforço diplomático, devidamente aconselhado
por Don Vito e Tom Hagen.
O Livro VIII, marca a entrada de
um novo elemento na organização: Albert Neri, que substitui o feroz
Lucca Brasi: para não ferir susceptibilidades nem pôr em causa a
autoridade dos dois lugares tenentes da organização , Michael tem
de agir como se pisasse ovos, mas sem demonstrar receio.
Entretanto são descobertos mais dois
traidores ligados à família, entre os quais Carlo Rizzi, cunhado de
Mike.
A morte de Don Vito é o segundo
momento de grande beleza literária do romance , culminando numa cena
cheia de dramatismo, um quadro digno de uma ópera de Verdi ou
Pucinni.
O livro IX consiste numa espécie
de epílogo, onde é descrita a “limpeza final”, a terrível
vendetta e as tendências de evolução e mudança, ocorridas
na Família, cujo foco de acção se desloca, cada vez mais, para Las
Vegas. Uma palavra para os nomes das personagens a provar a extrema
ironia, caracterizada por evidentes traços de humor negro que
caracterizam a escrita de Mario Puzo: o devasso Santino
(Santinho) ou Sonny (filhinho) diminutivo anglicizado, o impiedoso
Clemenza (clemência), o funerário Buonasera (Boanoite), entre
outros…
Este não é o melhor livro de Mario
Puzo, estando muito longe da obra-prima que publicou postumamente
A Família sobre os Bórgia, durante o período do
Renascimento. Mas é um romance policial que se lê com prazer,
devido à forma cinematográfica com que são descritos os
acontecimentos, muitos deles em sequência alternada, o que dá
impressão de que os factos se sucedem a um ritmo voraz, tornando a
obra facilmente adaptável ao mundo da Sétima Arte. Com isto, Mario
Puzo forneceu a base do argumento daquele que foi, durante
muitos anos, considerado o melhor filme de sempre, realizado por
Francis Ford Copolla: O Padrinho I.
Cláudia de Sousa Dias
30.06.2011
4 Comments:
Sim, sim, sim. Encomendei o livro em inglês na amazon. Ainda não chegou... por isso não li todo o post porque não quero spoilers ^-^
beijos
Ahah...!
Aguardo então depois a tua opinião ;-)
beijos
csd
Mais uma falha minha; nem o livro, nem os vários filmes!
Beijinhos,
Madalena
oh...tens de ver o filme,então!
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