“Quo Vadis?” de Henryk Sienkiewicz (Civilização)
Enquadramento
Histórico e Dados Biográficos do Autor
Henryk
Sienkiewicz nasceu em Wola Okrzejska,
em 1846, na Polónia colonizada pelo Império Russo. Assiste à
Revolta dos Segadores, no século XIX, a qual desencadeia uma
violenta vaga de repressão por parte das tropas imperiais russas, na
altura em que Sienkiewicz
conta
apenas com dezassete anos. Foi jornalista e escritor, publicou os seus primeiros romances em jornais, tal como Camilo Castelo Branco.
Quando inicia a escrita de Quo
Vadis?,
o Autor procura inspiração no passado histórico longínquo da Europa para dar
a voz e fundamentar a razão da indignação do povo polaco, ao
projectar as razões de revolta dos camponeses do século XIX no seu país, nos cristãos do
século I, perseguidos por Nero e usados como bode expiatório para o
incêndio de 18 de Julho de 64. O romance pretende, de forma velada,
representar a revolta do povo polaco, o qual assume, na trama, a identidade
dos cristãos primitivos, ao usar a religião como baluarte contra a
tirania e assim defender liberdade de culto e de expressão.
De todos
os romances que Sienkiewicz escreveu, apenas Sem Dogma
se enquadra na situação presente vivida pelo Autor. Já a trilogia “A
Ferro e Fogo” (1884); “O Dilúvio” e “Pan Wolodyjowsky”
passa-se no século XVII, enquanto o romance “Kryzacy”
(Cruzados) passa-se na Idade Média e incide na luta contra a invasão dos Cavaleiros Teutónicos, a pretexto do combate ao “infiel”, como precursores da hegemonia
do estado prussiano na Europa Central.
Henryk
Sienkiewicz morre no exílio em Vevey. O reconhecimento
internacional e o Prémio Nobel da Literatura chegam-lhe em 1905, em
grande parte devido ao romance Quo Vadis?, o qual tem como
protagonista o Imperador Nero na Roma do século I da era cristã.
Segundo
Daniel Augusto Gonçalves, autor do prefácio para a Editora
Civilização, existem várias interpretações da obra. Mas DAG crê, no entanto, tratar-se da transposição da situação vivida pelo autor no século XIX na Polónia para o mundo romano,
normalmente olhado como opressor relativamente às províncias
colonizadas. Muitos analistas e críticos identificam as nações sob
o domínio romano com esta mesma Polónia colonizada, onde o Império dos
Czares, tal como o Império Romano (aliás, o Império Russo dos czares - Czar ou Tzar é a transposição para a língua Russa da palavra César ou Caesar, assim como Kaiser em alemão - era também cognominado de A Terceira Roma) espezinhava, não só próprio
povo mas também as nações ocupadas.
Ainda
segundo DAG, relativamente à sociedade romana, os senadores romanos da época a que se refere o romance
eram considerados bajuladores do Imperador. Tal como a nobreza feudal
e a alta burguesia da Polónia do século XIX eram considerados pela
burguesia emergente como estando em conluio com o Império do Czar.
No
romance, os cristãos perseguidos podem ser identificados com o campesinato e a
pequena burguesia polaca assim como a pequena nobreza empobrecida à qual
pertencia o Autor. Estas seriam as camadas sociais que sentiam na
pele o aguilhão dos colonizadores russos sob a forma de pesados impostos e
trabalho incansável, na maior parte das vezes de sol-a-sol,
sobretudo no tocante à agricultura.
Outra
hipótese de análise proposta pelo historiador tem a ver com o facto
de a obra poder ser lida como um estudo do binómio tirania versus
resistência. Mais concretamente, a luta pelo poder exprime-se na
revolta do apóstolo Pedro e da comunidade cristã face
aos desmandos do Imperador. A conspiração contra o tirano desdobra-se em duas frentes: primeiramente, através das conspirações
urdidas pelo Senado; depois, a nível popular, pela difusão do
cristianismo em termos ideológicos, pondo em causa os fundamentos de
uma sociedade esclavagista, embora sem colocar a escravatura em causa
como instituição. A queda de Séneca e Petróneo são,
aqui, introduzidas em contraposição à “salvação” das almas,
dentro do cristianismo enquanto organização e crença.
Os
senadores são descritos por como vulgares cortesãos sedentos de
poder, artífices de conspirações, especialistas na arte de adular. O Autor não deixa, apesar de tudo, de pintá-los com nuances: Séneca e Petróneo
não podem ser colocados no mesmo patamar que Tigelino.
O
contra-poder é representado pela organização clandestina cristã
em Roma, a qual desenvolve as suas actividades, através de uma
doutrinação metódica e intensiva, da adequação à vida
quotidiana dos preceitos da doutrina; e, sobretudo pela convicção da
posse da verdade absoluta, da qual falaremos mais adiante, e que abrirá caminho à proliferação de mártires bem como uma disposição
mais ou menos generalizada dos membros da comunidade em sofrer a
perseguição, tortura e morte.
Fé
e História
Relativamente
à relação ente estes dois elementos - a crença ou fé religiosa e os factos
históricos, DAG faz notar que Sienkiewicz não se pronuncia
em termos de fé: na verdade, ao longo da trama, nunca assistimos
directamente a nenhum milagre. Estes fenómenos são relatados por Pedro. Mais:
o Autor não avaliza as palavras do fundador da ICAR mas, faz
Vinícius propagar, de boca em boca, os acontecimentos narrados peloApóstolo. Da mesma forma, não se pode classificar de milagre o
salvamento de Lígia: o Autor prepara antecipadamente os leitores
para uma explicação natural, já que Urso havia repetido várias
vezes a mesma proeza no passado.
Trama
e Personagens
A
trama entretece-se com ligações entre personagens fictícias
(Lígia, Vinícius, Ursus) e personagens históricas, cuja existência
está oficialmente documentada (Nero, Petróneo, Tigelinus,
Pedro...).
Petróneo
é o símbolo de todas as virtudes, elegância e bom-gosto romano, por
possuir um apurado sentido estético, que lhe dá não só a
elegância refinada no vestir, sem demasiada ostentação, mas também
um requintado gosto e sentido de equilíbrio que se espelha na decoração
da casa, cheia de objectos de arte, fazendo questão de que cada
coisa ocupe o seu lugar de forma a preservar a harmonia. Mas o
sentido estético de Petróneo acaba por influenciar, também, as
relações humanas, sobretudo com os seres mais frágeis. Por
exemplo, este conselheiro de Nero acha de extremo mau gosto maltratar
um escravo apenas para dar largas ao apetite por crueldade. Assim, de certa
forma, o ideal estético em Petróneo acaba por ser projectado nas
suas relações éticas: um humanismo disfarçado de uma certa frieza
displicente com as classes mais vulneráveis (embora deplore a rudeza, a ignorância e a brutalidade do povo miúdo), camuflado pela exibição de uma certa ironia com a prepotência,
a jactância e a soberba da tirania neroniana. Com o poder, Petróneo
tem a habilidade de emoldurar as mais duras críticas no pão macio
dos elogios mais adocicados. Daqui lhe advém a alcunha de “árbitro
das elegâncias”. Exigente até ao extremo no cuidado físico da
sua pessoa, a erudição e o requinte estão presentes em todas as
áreas da sua vida e servem-lhe também de protecção,
disfarçando-lhe o verdadeiro carácter o qual se revela na relação
que desenvolve com a escrava Eunice. Sob uma aparente frivolidade,
Petróneo disfarça as emoções, com o véu de um falso cinismo. As
amáveis críticas ao imperador escondem um desejo incomensurável de
Liberdade: de acção e, sobretudo, de expressão e criação
artística, inclusive uma irresistível vontade de caricaturar o
Imperador e outras figuras da corte. Petróneo é, sem dúvida a
personagem mais importante do romance – está presente na primeira
e na última cena –, a mais lúcida. O seu maior receio é, tal como o dos
antigos Gregos, a Phtonos dos deuses e dos homens, isto é a Inveja, de que são alvo todos
aqueles que se destacam do rebanho da mediocracia.
Nero, por seu lado, é a personagem que incarna o oposto de tudo quanto
aqui foi dito acerca de Petróneo. Nero é o anti-Petróneo e
Petróneo é o anti-Nero. Na verdade, Vinícius e Lígia, o par
romântico da obra, são personagens que gravitam à volta deste dueto de antagonistas. E é a este par romântico a quem a figura trágica de Petróneo lega a missão
de luta por uma nova ordem mundial, com o objectivo de expulsar a
tirania e garantir aos cidadãos o usufruto da Liberdade. Apesar de
tudo, Petróneo tem dúvidas de que a Igreja consiga manter-se ao
lado dos mais frágeis como até então, a partir do momento que que
atinja o poder. Daí a sua insistência em não aderir ao novo culto
e em manter-se como livre pensador até ao fim. Mesmo à custa da
própria vida.
O
distanciamento de Petróneo contrasta também com o temperamento
fogoso, passional do sobrinho, Vinícius. Esta impulsividade está
patente na forma como o mesmo Vinícius planeia o rapto de Lígia, assim como no momento em que assume a clandestinidade, desafiando a vontade do Imperador, para salvá-la,
primeiro do cativeiro e, depois, da arena, com a ajuda do
escorregadio e venal Chilon e do fiel Ursus.
Pompónia
e Aulo, o casal que adoptou Lígia, são dois aristocratas romanos
recentemente convertidos ao cristianismo. Representam as ancestrais
virtudes romanas, as quais para os elementos da corte, se encontram
caídas em desuso.
O
Fogo
O
único elemento que retira alguma autenticidade ao romance tem a ver
com o facto de o Autor optar por atribuir, de forma categórica, a
autoria do incêndio em Roma de 18 de Julho de 64 a
Nero, classicamente apontado como o principal suspeito. Na verdade,
a questão é controversa. É inegável que este incêndio
desencadeia na comunidade cristã de então, uma forte onda de
repressão, sendo-lhe oficialmente imputada a autoria do sinistro.
Mas muitos historiadores clássicos não hesitam em apontar o dedo a
Nero como o principal suspeito, dado que na altura o Imperador
acumulava já um forte sentimento de desconfiança e hostilidade por
parte do Senado e da população, tendo em conta um vasto historial
de crimes que lhe eram associados. Entre os quais, o assassinato da
mãe, Agrippina, da esposa, Octavia e do irmão adoptivo,
Britannicus. Sem falar na utilização despótica dos recursos,
incluindo as reservas do erário público e do património material.
As acusações à sua pessoa e os apupos durante cerimónia públicas
eram frequentes (Suetónio) inclusive com particular incidência nos
epítetos de “matricida”, “fraticida”, “assassino”,
“sodomita”...
Há,
no entanto, uma facção de historiadores para os quais a hipótese
de ter sido Nero o autor do incêndio é pouco consistente por não
considerarem exequível a tarefa como tendo sido arquitectada pelo Imperador. Isto porque a execução do plano implicava a utilização
de uma logística da qual o filho de Agripina não dispunha, sem dar
nas vistas. Era absolutamente necessária a disposição de um
elevado contingente de recursos humanos para avançar com uma
execução concertada, o que tornaria impossível que, tanto a acção
como a sua autoria, conservassem um carácter hermeticamente secreto:
quanto maior o número de executores materiais, maior o risco de se
descobrir o plano e em se provar a culpa do Imperador, o que poderia
desencadear violentas revoltas populares. Por outro lado,
dificilmente o Senado (conservador), e até mesmo o Exército,
poderiam ser coniventes com este tipo de acção. Este tipo de medida
daria aos opositores de Nero a oportunidade ideal para derrubá-lo.
Além do mais, até àquela data, o Império era religiosamente
tolerante. Actualmente, a hipótese mais consensual é a de que o
incêndio tenha sido acidental, resultante de uma combinação de
factores ambientais: a existência de um velho e extenso aglomerado
de insulae (ilhas), prédios de vários andares construídos em
madeira, carunchosa e tornada ressequida, num Verão particularmente
seco e numa semana em que, logo após o inferno da canícula, sopravam
fortes ventos vindos do mar.
Desenvolvimento
e Estrutura da Trama
Há
três momentos críticos no desenvolvimento do romance: o primeiro o
banquete, no Palácio de Nero; o segundo, o Incêndio, na parte velha
e degradada da cidade; e o terceiro, o espectáculo das execuções
massivas no Circo Máximo.
Estes
três momentos da narrativa conferem ao romance, características
épicas susceptíveis de o converter numa mega-produção
cinematográfica. Estas características cénicas foram amplamente
aproveitadas pela MGM e pelo realizador William Wilder, no período
após a Segunda Guerra Mundial, no início de década de 1950,
aproveitando a analogia que se poderia estabelecer entre Nero e
Hitler, assim como o acontecido com os Cristãos no século I, com o Holocausto, ocorrido nos campos de concentração nazi durante a Segunda Guerra Mundial, visando os judeus. Com o filme de Wilder que tão evidente torna esta analogia, os Estados Unidos justificam, assim, uma vez mais, aos olhos do mundo, aos olhos do mundo a vitória do Aliados.
No
primeiro momento épico da narrativa, o banquete, existem dois focos
de interesses: num extremo do triclinium, no canto mais
discreto da sala, estão Vinícius e Lígia, ocupados com as suas
questões pessoais; no centro da sala, ou melhor, no segmento central
do triclinium, estão
Nero, Poppaea e os principais cortesãos, Tigelino e Petróneo
inclusive. O Amor e o Poder são, aqui, os dois extremos do mesmo
continuum. A orgia que se desencadeia após muitos litros de
vinho sem água, acaba por diminuir a distância física entre Nero e
os restantes convivas. O Imperador repara em Lígia, protegida por
Vinícius. Esta é a primeira cena do romance no qual assistimos à movimentação de uma relativamente considerável massa humana,
constituída pelas classes mais favorecidas da sociedade romana, assistidas por um exército massivo de escravos. Lígia e Vinícius
fogem durante a confusão, refugiando-se num local que tem como pano
de fundo um cenário diametralmente oposto ao do Palácio Imperial, onde a opulência e o excesso são substituídos por uma atmosfera de
silêncio, penumbra e austeridade: o local de reunião da comunidade
cristã, presidido pelo apóstolo Pedro.
Outro
momento de grande movimentação de massas é, sem dúvida, a
tentativa de fuga da turba dominada pelo pânico, encurralada durante
o incêndio, o qual rapidamente se propaga a quatro quintos daquela
cidade, que contava já com mais de um milhão de habitantes.
Henrik Sienkiewicz e, posteriormente, o realizador Billy
Wilder, exploraram até à exaustão o caos gerado pela fuga
desordenada dos cidadãos em escaparem às chamas descontroladas, o
desespero dos habitantes perante as casas em derrocada, os movimentos
erráticos da população em histeria, as ruas congestionadas, a água
em falta, o vento a atiçar as labaredas, as ruas cobertas pelo
terror incandescente e o cheiro a carne queimada a pintar um cenário
apocalíptico.
O
terceiro momento de movimentação de massas acontece na plateia da
arena do Circo Máximo, com a multidão a gritar enlouquecida,
sedenta de sangue e a incentivar a brutalidade nas execuções, procurando desesperadamente um bode expiatório para a tragédia por ela vivida: é o momento da
vingança das Erínias que pairam sobre os escombros de Roma.
Segue-se uma orgia, desta vez de sangue, que jorra pela acção das
armas dos gladiadores e pela acção das presas e garras da feras. Ou
dos pregos das inúmeras crucificações. Neste ponto da narrativa, o
leitor sente que uma sociedade que oprime desta forma os seus
opositores está destinada a desaparecer, já que cresce à custa de
sangue. É, sobretudo a partir daqui que surgem bolsas populares de
resistência as quais buscam a sua força na crença numa vida para
além da morte. Os mártires multiplicam-se, o medo da morte torna-se
relativo, perante os fins a que se destina a sua própria acção, dotando a
luta daqueles grupos de uma tenacidade sem precedentes. A explicação
para este tipo de atitude reside num forte sentimento de pertença a
uma entidade colectiva, um todo homogéneo que lhes garante
perspectivas de continuidade: a consciência de que o grupo irá
persistir para além do indivíduo na prossecução dos fins que
justificam a sua existência.
Conclusão:
DAG
é defensor da teoria de que o indivíduo isolado, o homem kantiano,
como um fim em si mesmo, se torna presa fácil, mesmo que dotado de
coragem e resistência, numa sociedade que não acredita em nada para
além dos limites do próprio indivíduo. Dí o fim trágico de Séneca e Petróneo. O historiador pretende, assim, demonstrar
que o objectivo de Sienkiewicz consistia em fazer ver que o
homem, para fazer valer os seus direitos na luta contra qualquer
espécie de tirania, teria forçosamente de se integrar numa
colectividade que agisse como um todo, e assim equilibrar os pratos da
balança do Poder. Quo
Vadis? é, deste ponto de vista, a prova viva que as
grandes obras de literatura universal não morrem, mantendo a voz dos
seus autores viva ao longo dos séculos.
21.10.2011
– 24.07.2012
Cláudia
de Sousa Dias
9 Comments:
Gostei muito deste livro.
eu li-o a primeira vez quando tinha vinte anos. Foi a minha primeira obra literária nobelizada.
'Quo Vadis' é um livro que li há muitos anos, voltei-o a lê-lo não há muito tempo e o mais certo é lê-lo de novo, agora, espicaçada pelas informações e análise que aqui nos trouxe. :)
A leitura será, agora, com novos olhos, uma nova compreensão da trama e dos propósitos do autor, cuja biografia desconhecia.
Obrigada.
Olinda
:-)
beijo, Olinda.
Um livro que é necessário ler. Parabéns, Cláudia, pela excelente resenha!
Beijinhos,
Madalena
thnks, M. está na altura de publicar outro. bjo.
Cláudia, não consigo identificar o seu email, ou o do blog. Seria possível indicar-mo, para que lhe escreva?
obrigada...
Ola Claudia. Muito obrigado por este "post". GHostaria de obter o livro que ja li ha 30 anos, mas gostaria de re-ler. ja fui a fnac de coimbra e a fnac.pt e tb a wook, busquei tb na amazon.co.uk e nao encontri a versao portuguesa. tenho a versao digital em ingles, mas gostaria ter a versao pt em papel ou digital. Podes ajudar-me a encontrar?
difícil...só em biliotecas ou alfarrabistas..
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