“Receitas de Amor para Mulheres Tristes” de Héctor Abad Faciolince (Quetzal)
Tradução de Pedro Tamen
Dados Biográficos:
Héctor Abad Faciolince nasceu
em Medellín, na Colômbia, país onde realizou os seus estudos
deixando, no entanto, incompletas as licenciaturas em Medicina,
Filosofia e Jornalismo, tendo sido expulso da Universidade Pontifícia
Boliviana por escrever um artigo irreverente contra a figura do Papa.
Decide, então, viajar para Itália, onde aí sim, se licencia em
Literaturas Modernas, regressando ao seu país em 1987. Mas nesse
mesmo ano, é alvo de várias ameaças de morte por parte de grupos
de paramilitares, pouco depois de lhe terem assassinado o pai, a
mando da elite reaccionária. Refugia-se novamente em Itália, onde
conclui o doutoramento, ficando a seu cargo a cátedra de Espanhol,
na Universidade de Verona.
Anos depois, mais uma vez de volta ao
seu país, Faciolince traduz obras de vários autores de
língua italiana, entre os quais Umberto Eco e Giuseppe
Tommasi di Lampedusa, ficando a seu cargo também a reitoria da
Universidade de Antioquia. É então que inicia, finalmente a sua
carreira de escritor. Publicou já quatro romances, dentre os quais
Basura que lhe proporcionou o Primeiro Prémio da Narrativa
Inovadora da Casa da América, em Madrid. Publicou ainda um livro de
contos, um livro de viagens e a obrao de que aqui falamos hoje, que
alguns classificam “de género incerto”. Assim, Tratado de
culinaria para mujeres tristes conta com a belíssima tradução
do poeta Pedro Tamen mas o
título atribuído à edição portuguesa perde um pouco da força
original ao ser modificado para Receitas de amor para
Mulheres Tristes, oferecendo,
desta forma, aos leitores uma perspectiva bastante redutora da obra.
A fórmula em português dá a entender tratar-se este conjunto de
textos de uma obra do género “literatura de água com açúcar”,
um estilo light
que
nada tem a ver nem com o Autor nem com a obra. Porque em primeiro
lugar, não se trata apenas de receitas de amor, nem mesmo de uma
colectânea de afrodisíacos, destinados a servir de paliativos a
mulheres solitárias, amargas ou ma-amadas, com efeito placebo. Não.
Em segundo lugar, não se trata de buscar na culinária uma forma de
adoçar a vida ou encontrar no prazer da gula a fuga à tristeza,
seja ela passageira ou crónica. Trata-se de uma forma de olhar a
vida com uma pitada de estoicismo sim, mas imbuído de humor negro ,
rir das desgraças, escarnecer delas para assim esconjurá-las. Assim
se logra diminuir a força dos “demónios” interiores, dos medos,
muitas vezes infundados ou irrealistas mas que ampliam o lado
cinzento da vida. Assim se impede muitas vezes que a tristeza
interrompa o curso natural da vida. Claro que isto nem sempre
acontece e o Autor é suficientemente honesto para demonstrá-lo: a
maior parte dos textos encerram em si os constrangimentos a que estão
sujeitas as mulheres na sociedade colombiana, profundamente católica
e conservadora, onde se percebe que a maior parte dos dramas
existenciais das do género feminino naqueles país, ao longo das
últimas décadas, tem a ver com questões de desigualdade de
tratamento das questões sociais entre homens e mulheres ( a traição,
as relações sexuais antes do casamento, o assédio, sexual, o
receio da perda da beleza e do envelhecimento) aspectos aparentemente
pueris, mas que resultam de todo um condicionamento cultural a
desembocar numa série de contradições entre o desejo e as normas
sociais. Nas soluções propostas por Faciolince,
percebe-se que o ultrapassar desses constrangimentos sociais implica
um processo lento, desenvolvido com paciência, astúcia e muita
subtileza. Há, no entanto um texto que descreve sim, uma receita de
amor, para uma mulher entristecida pela doença, mas de cuja
identidade só nos apercebemos quando lemos a obra autobiográfica de
Héctor Abad
Faciolince
Somos o
esquecimento que seremos. Aliás,
todas as pessoas a quem são dirigidos estes textos estão presentes
naquela obra, que será tratada no âmbito deste blogue dentro de
alguns meses. O texto a que me refiro é uma reflexão onde se tenta
mitigar a dor recorrendo a medidas drásticas, mas sem qualquer
esperança de alegria.
A
comida e a culinária neste Receitas de Amor para
Mulheres Tristes
são apenas um pretexto para mostrar um olhar diferente face aos
muros ou obstáculos que vão surgindo ao longo da vida.
A cozinha é somente uma forma de abstracção das contrariedades que
se nos apresentam no quotidiano. A verdadeira fórmula contra a
tristeza está, na verdade, contida na capacidade de provocar o riso,
de despoletar a explosão de uma gargalhada em alguém. É essa a
finalidade das receitas “milagrosas” de Héctor Abad
Faciolince, cujo humor ácido e profundo sentido de ironia
revela um detalhado conhecimento da psique feminina, natural num
homem que cresceu rodeado de mulheres: a mãe, a ama, avós, tias e
cinco irmãs.
O livro é dedicado à primeira e às últimas e parece que, a
acompanhar cada receita há, senão uma gargalhada, pelo menos um
sorriso, usado como fórmula mágica para dissolver ou, na menor das
hipóteses, atenuar a tristeza ou a melancolia em cada situação
específica, seja ela a infelicidade crónica, a traição ou
suspeita de, o ciúme, o nervosismo, o receio da competição com as
sogras na cozinha, o mau hálito, a culpa...
Os textos dirigem-se a diversas destinatárias nas mais variadas
circunstâncias, onde o verdadeiro remédio para afugentar a tristeza
é simplesmente...ler o livro.
Aqui ficam, pois, três textos extraídos de Receitas de Amor para
Mulheres Tristes para alegrar a semana:
«Se estiveres
nervosa, ainda serve o velho chá de macela, mas não deves cortá-lo
com limão ou com doce. Não funciona se o que te preocupar for mais
forte do que tu. E, se assim for, convém que estejas nervosa.»
ou
«Essa tendência para traíres, para mentires – e para seres
perfeitamente franca. Para te esconderes ou para te mostrares muito.
Esse cuidado de te preservares tanto – para acabares a contar a tua
história, com todos os pormenores a um desconhecido. Essa vontade se
fugires, de saíres a correr quando alguém mostra que começa a
conhecer-te, embora não te reveles, e essa vertigem de ficares. De
envolveres as carícias em palavras. Essa vontade de mudares sem
renunciares a nada. Essa fome de impossíveis. Como pensar no meio
desta confusão contraditória? É verdade e mentira, está bem e
está mal, e não há saída.
Nada a fazer.
Toma um copo de água.»
e ainda
«Àquele
insolente que anda atrás de ti sem perceber que tu não queres; a
esse que te encosta a coxa ao joelho e te põe a mão no corpo sem
graça e sem efeito, ou com efeitos de rejeição; a esse, mais
fastidioso que um mosquito ao adormecer, mais incómodo que uma pedra
no sapato, importuno como uma bolha no nariz, como comichão em má
hora e pior parte, nauseabundo como fedor em hora de almoço, como um
cabelo na sopa, a esse enjoativo como mel com açúcar e marmelada,
detestado como ave de mau agoiro, a esse bocejo humano, a esse
impertinente, eu te digo como o hás-de afastar.
Prepara este
caldo: duas onças de estricnina, seis gramas de cicuta, uma pitada
de arsénico e três colherinhas de sais de mercúrio, tudo muito bem
misturadinho com azul de metileno. Eu bem sei que és muito educada e
que o farmacêutico não há-de querer aviar-te a receita. Por ambas
as razões, aquele impertinente voltará à carga com as suas
baboseiras e mãozinhas.
Podes pôr de lado por um instante as tuas boas maneiras e dar-lhe
um grito imenso que o envie para aquela infinita e
inultrapassável distância designada pela palavra merda.
Mas, melhor
ainda, sem perderes a estribeiras, podes usar uma receita –
horrível – para o fazer desandar, um prato que vá fazendo
estragos em língua e palato, e produza catástrofes no esófago e na
barriga.
Faz uma
maionese com ovos nem podres nem muito frescos e com o azeite rançoso
que usaste para fritar peixe. Muita, muitíssima maionese.
Entretanto, põe ao lume um punhado abundante de talharins e deixa-os
a ferver três vezes o tempo recomendado na caixa. Liquefaz o feijão
que sobrou do almoço de quarta-feira, com pedacinhos de fígado e um
pouco de mão-de-vaca. Retira do lume os talharins esbranquiçados e
babosos, deita-lhes a maionese e o feijão e rala-lhes em cima um
pouco do queijinho que sobrou do outro dia.
Nega que tenhas
fome e serve-lhe a mistela, bastante morna e quase a puxar para o
frio. Não proves esta mezinha. Olha antes para a maneira como se vão
nublando os olhos do impertinente. Há-de fazer elogios ao teu prato
porque é bajulador. Até pedirá para repetir. Beberá dois copos de
água morna (põe na mesa assim, temperada na cozinha). A certa
altura, há-de perguntar onde é a casa-de-banho. Pouco depois há-de
lembrar-se de uma coisa de que se esqueceu, de um assunto urgente, e
sairá pela porta fora. Nunca te esquecerá, nem a ti nem ao teu
prato. Mas não voltará. Ufa, não voltará, enxotaste-o para
sempre.
Se voltar,
cianeto ou estricnina (imaginários).»
H.A.F.
06.08.2012-06.01.2012
Cláudia de Sousa Dias
5 Comments:
O meu tipo de livro :P
As receitas devem resultar...
beijinhos
eheheh...!
deparei-me também com o último parágrafo e dá vontade de rir.
mas não um riso qualquer.
mas um, bem alto!
mesmo!
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