“o nosso reino” de valter hugo mãe (Quidnovi/Alfaguara)
«O Inferno aterrorizou algumas
gerações de crentes e é um dos mais antigos pesadelos da
humanidade, ligado ao medo do mundo desconhecido que se abre depois
do fim da vida.»
in História dos Infernos
de George Minois, (Tradução de Serafim Ferreira para
Teorema, 1997).
Este primeiro romance de valter hugo
mãe é o retrato psicológico da sociedade portuguesa, numa
pequena aldeia de pescadores no Litoral Norte,do final do período do
Estado Novo. O que retiramos da leitura deste o nosso reino
é um pequeno povo atrofiado por quase meio século de ditadura,
dominado pelo medo do Inferno e obcecado com a ideia de adquirir a
Santidade e conquistar o direito ao Paraíso, numa vida livre da
miséria. Uma outra vida. No livro, percebe-se ainda que Revolução
dos Cravos acabou de eclodir, mas as suas consequências ainda não
se fizeram sentir no quotidiano da população. Salvo nas escolas,
onde o discurso mudou radicalmente.
O dia-a-dia dos adultos, sobretudo das
mulheres, é marcado pelo medo das perdas, pela preocupação
constante em afastar o pressentimento de desgraça eminente, da
Fatalidade, a qual tentam esconjurar com rezas, mezinhas ou rituais
onde o cristianismo se funde com tradições de origem pagã, numa
devoção profunda e contínua, denunciada pela profusão de imagens
de santos e amuletos com que se rodeiam, sobretudo a avó do narrador
e protagonista. O romance é autodiegético, estando a narrativa a
cargo de uma criança, impressionada pela profunda tristeza do olhar
no homem que transporta os mortos para cemitério da aldeia. A mesma
criança, ao acumular a função de narrador, coloca-nos dentro do
seu mundo – família,escola e grupo de pares – a partir de uma
família que sofre as dificuldades causadas elo empobrecimento,
resultante da divisão da propriedade, sobretudo após o falecimento
dos avós. Há um pouco de tudo e quase todas as personagens
despertam no leitor sentimentos de ternura e compaixão, havendo
membros do clã a debaterem-se com problemas de desemprego e
encontrando no álcool o lenitivo que lhes permite escapar à
realidade e entrever o tão distante o paraíso anunciado na missa
pelo “senhor padre”, tão íngreme que só a etilização da
mente permite a ilusão de o vislumbrar.
O peso da religião e da superstição
no vida dos habitantes daquela aldeia actua, também, como
tranquilizador, mantendo acesa a esperança de uma vida melhor. Mas
acaba, também, por ter o efeito de uma erva daninha ao ocupar
totalmente o espírito das pessoas sem deixar espaço ao pensamento
crítico e à criatividade. No seu lugar, está o medo omnipresente
da ideia preconcebida e do que julgam ser o “pecado”,
obrigando-se segundo a orientação do senhor cura a uma vida de
constante sacrifício. O peso do dever é tal que a omnipresença
desta ideia só aumenta a tentação de fuga a uma virtude que se
exprime quase sempre na observância de rituais, ao mesmo tempo que é
espicaçada a vontade do proibido, a actuar como o aguilhão que
empurra ao “vício”, mas encoberta com a maledicência e a
projecção dos próprios defeitos em casa alheia.
O narrador é uma criança que
frequenta o ensino básico, o qual na altura se estendia até ao
quarto ano de escolaridade. O menino deseja atingir a perfeição
espiritual, a santidade. Mas os sacrifícios para alcançar o Paraíso
são de tal ordem que o seu dia-a-dia ameaça tornar-se um inferno de
tristeza. É, no fundo uma criança infeliz, solitária, a crescer no
seio de uma família disfuncional e pouco dada a demonstrações de
afecto. A escola e a instrução são importantes, há uma tentativa
um esforço por parte da professora para mudar o pensamento nos mais
jovens, mas o peso da sociedade tradicional é muito forte. Por outro
lado, a escola não consegue substituir a função fundamental da
família na questão da afectividade e na forma mais primária de
pensar e olhar para o mundo. E o espaço familiar, sobretudo aquele
que é dominado pelo género feminino, encontra-se invadido,
sobrecarregado pelo peso dos símbolos religiosos (a galeria de
crucifixos da avó). O desejo de atingir a santidade na criança
é-lhe assim inculcado desde cedo e é o resultado do peso cultural
desta religiosidade na famílias, visualmente omnipresente e
apresentado como modelo de conduta ideal. Por outro lado, quando
observarmos a conduta do narrador percebemos também que o medo do
inferno, levado ao extremo, pode facilmente conduzir à desumanização
na forma de conduzir a vida, marcando-a com um permanente sentimento
de culpa, fruto da ablacção de qualquer tipo de prazer – condição
fundamental para atingir a santidade.
O livro começa por falar na estranha e
intrigante personagem que é, “o homem mais triste do mundo”.
Alguém cujos lhos, de tão tristes, hipnotizam as pessoas que
mergulham neles sendo por eles sugadas tal como a poderosa força da
gravidade de um buraco negro exerce na matéria:
era o homem mais triste do mundo,
como numa lenda, diziam dele as pessoas na terra, impressionadas cm a
sua expressão e cm o modo como partia as pedras na cabeça ou abria
bichos com os dentes tão caninos de fome.
era o homem mais triste, diziam,
incapaz de fazer mal a alguém, apenas metendo dó, com os olhos de
precipício como se vazios para onde as pessoas e as coisas caíam em
desamparo.”
(…)
era com os olhos como lanternas, que
competia com os bichos da morte, perplexos com tal ser.
(…)
era um homem todo diferente. quantas
vezes se contava de como saltava pelas árvores. quem não jurara
tê-lo visto no tempo da caça a apreciar, empoleirado nas copas, e
como se faria viajar agilmente pelos ramos, muitas vezes intrometido
a afugentar os animais.
(…)
e eu juro que o vi voar por sobre o
casario numa noite de inverno.
(…)
eu descobri muito cedo, o homem mais
triste do mundo recolhia os mortos, juntava-os um a um nos braços e
dava-lhes a terra e o silêncio para comerem até que parecessem a
terra e o silêncio e os pedíssemos para voltar a ter entre nós,
para entre nós preservarmos uma ligação entre as almas, eram como
um perfume débil percebido apenas pelas gentes mais sensíveis.
Há várias leituras para interpretar a
figura deste coveiro de tristeza contagiante, pois trata-se na
verdade de uma figura alegórica, associada à morte. Pode ser o
ícone que simboliza o atraso estrutural na mentalidade do país, de
um imobilismo que leva à entropia. Ou simplesmente a encarnação do
desespero, cuja profunda melancolia leva ao desvanecer da vontade de
viver e da alegria. Este “homem mais triste do mundo” anda de mão
dada com a morte, cuja presença é assinalada pelo uivo dos cães.
Vive no fim do mundo – o cemitério, para onde leva os homens que
abandonaram o mundo dos vivos. O fim do mundo, segundo a mãe do
menino que narra esta história, fica para além da estrada da
“vila”, onde começam as árvores. Assim, tal como acontece nos
contos de fadas – pois aqui também há magia, fadas e bruxas, o
absurdo, o maravilhoso e o horrível –, a floresta é o lugar onde
se perdem e desaparecem as crianças. A mãe o menino e o resto das
mulheres da aldeia vivem assombradas pelo terror de que os filhos
sejam levados pelo homem mais triste do mundo, ou que os seus homens
sejam sepultados nas águas ao buscar o peixe com que sustentam a
família.
o nosso reino é o
primeiro de quatro romances de
valter hugo mãe subordinados ao tema do ciclo da vida,
sendo este dedicado à infância. Trata-se de uma obra que está
ainda muito “colada” à poesia, género com que este escritor das
Caxinas se estreou na Literatura. O toque poético na prosa de o
nosso reino está patente na figura alegórica do coveiro da
povoação, a entidade que rouba as almas e as leva para a sua
derradeira morada. As personagens da trama são tipos sociais,
encarnam a forma de viver de uma determinada época e num lugar
específico., mas movimentam-se algures entre o mundo real e o
surreal. O conteúdo onírico do texto adiciona marcas do discurso
oral das gentes da Póvoa de Varzim e de Vila do Conde, ligadas à
actividade piscatória e agrícola, assim como das lendas e tradições
que compõem a tapeçaria do património cultural imaterial da
região. Aqui, incluem-se as rezas e receitas de mezinhas
tradicionais, rituais de exorcismo e encantamento executadas pelas
mulheres da aldeia com o objectivo de expulsar o demónio ou
afugentar malefícios e, em última análise, o assédio da da fome,
da guerra e da morte.
Nos jovens, naqueles que têm alguma
dificuldade em perceber os contornos da linha estreita que separa o
bem do mal, o temor do desconhecido toma a dianteira, sobrepondo-se à
busca pela perfeição espiritual:
foi nessa altura que os meus avós
trouxeram lá para casa um empregado novo. tinha um jeito torto de
responder, diziam que a má educação haveria de o pôr no Inferno.
via-o morbidamente, passava por todos os lados da casa, a biscatar o
dia inteiro as coisas do avô (...) e sempre o resmungo garantido,
como um serviço mal prestado por dentro, algo a que se junta um
veneno ou um mau-olhado. ficávamos a comentar. lembro-me de
pergunta, o meu pai entendia que as pessoas tristes durante muito
tempo ficavam de mal com a vida e podiam nunca se casar, dizia-mo com
uma gravidade assinalável, eu acabava sempre por ter pesadelos,
profundamente impressionado., com o que descobri nas expiações da
minha consciência motivos para ser feliz e me salvar do estragamento
da vida. achava-o ainda muito novo, o senhor luís estava entre o meu
pais e o meu avô, os cabelos não eram brancos e andava muito rápido
quando queria, o que o fazia usualmente suar.
(…)
o manuel quis matá-lo, uma vez
quando se assustou a sério, como eu a cada momento, e jurou que vira
um fantasma. chegámos a correr para a cozinha, a buscar a faca maior
de todas haveríamos de o apanhar pelas costas para que não tivesse
possibilidade de fuga e quando o matássemos esvanecer-se—ia em
fumo e subiria para o lugar das almas proscritas. sabes, há-de se um
lugar com paredes de chumbo, todo a arder no interior e sem janelas,
sem portas, só uma combustão contínua. como suplício,
inimaginável. como uma caixa. ou então, desceria para o centro da
terra, onde a lava de todos os vulcões se contém, eu julgava saber
que se continha, à espera de saber se no fim vence o bem ou mal.
ou o homem mas triste do mundo viria à nossa porta reclamar o
corpo.”
(...)
“a minha avó rezava ao seu cristo
para que me torasse as minhocas da cabeça.
O medo parece ser a raiz de todos os
problemas nas personagens de o nosso reino e o
principal móbil do desvio de conduta dos jovens que não sabem muito
bem como reagir àquilo que não compreendem. O narrador em
particular, porque dotado de uma extraordinária capacidade de
observação mas ainda sem conseguir descodificar mensagens, muitas
vezes cifradas, trocadas entre adultos. A inexperiência não lhe
permite compreender tudo, mas a fé absoluta dos adultos na inocência
e no aspecto apagado do jovem, torna-os descuidados e aquele
apercebe-se das inúmeras contradições entre as atitudes dos
adultos e as palavras que proferem.
O olhar e as atitudes da
criança-narradora é na verdade o olhar do adulto que relata os
acontecimentos da infância com os olhos da criança que foi. O
discurso do adulto, que recupera o menino que ficou no passado,
denuncia uma educação repressiva, baseada no temor omnipresente de
um castigo terrível e no terror de se saber permanentemente vigiado
como se tivesse microfones dentro do crânio, expondo-o à censura do
pensamento e à punição que se quer imensa, completa, exemplar. A
isto junta-se também o medo do Outro: todo por dentro era um
animal em pânico. Aqui não se trata pura e simplesmente do medo
do Outro enquanto homem ou sociedade. Trata-se do medo da existência
de um ser sobrenatural que entre por todas as frinchas das portas da
case e também pelo nariz, boca e ouvidos e que tudo vê, tudo ouve e
tudo sabe. Este ser sobrenatural – que para o narrador tanto faz
que se chame de deus ou diabo – gera um medo indescritível e
avassalador. Medo esse que é incutido na população a partir de
idades muito precoces e que, no romance, está representado por uma
figura carismática e que goza de grande prestígio no seio da
comunidade: o pároco. A incipiente rebeldia e desejo de
independência que desde cedo é demonstrada pelo jovem é
exemplarmente reprimida por aquele:
“ao padre tínhamos de contar
tudo, mas eu pedia a deus que me desonerasse de tal obrigação.
expliquei-lhe que não era pecado esconder algo, se pedíssemos
primeiro a deus que nos permitisse o segredo (…) deus sabe que se
ele quisesse muito que o senhor soubesse haveria de ter maneira de
lho dizer. quando o padre me bateu a primeira vez, fiquei perplexo.
fiquei uma pedra presa ao chão, os joelhos a tremerem como madeira
tola a querer partir o mármore, e calei-me. saí da igreja lento,
sem chorar, a acreditar que o homem mais triste do mundo poderia
trabalhar com ele e que a morte poderia ser uma coisa encomendada por
uma pessoa (…) eu morreria naquele dia (…) que um padre bater
numa criança só poderia ser trabalho de morte.
o manuel achava que agora teríamos
de matar o padre e eu sabia que fazia sentido, que o padre dominava a
igreja e, por algum misterioso processo, teria direito a decidir quem
vivia e quem morria.”
O desejo infantil de superar o medo da
morte, a intervir no destino, pretendendo decidir quem vive ou morre,
é dirigido sobretudo a quem tem o poder de matar espiritualmente.
Esta atitude evidencia-se de forma angustiante no comportamento
destas duas crianças, cuja fragilidade se opõe ao peso da cultura
ancestral e à herança de incomensurável aridez, no tocante ao
pensamento crítico, legada pela ditadura. Assim, há no romance duas
forças opostas que se digladiam ao longo da trama, mais psíquicas
do que físicas, e que representam dois tipos de sociedade: a da
obediência incondicional e a sociedade que problematiza, que coloca
questões incómodas, esta última ainda incipiente mas que começa a
despertar.
Nas actividades diárias das mulheres e
das crianças em particular quase não há espaço para se dedicarem
a outras assuntos que não a religiosidade, associada ao combate
permanente contra as forças do mal e ao trabalho contínuo,
extenuante sem tempo para diversão ou reflexão.
Isto reflecte-se nos aspectos mais
elementares dos habitantes da aldeia, a começar pela avó do
narrador, que vive para a lida da casa e para a família e é
enterrada abraçada ao seu cristo favorito. As dificuldades sentidas
pela família são denunciadas pelo esgotamento da mãe, da sua
solidão absoluta e dedicação aos filhos. Por outro lado, a
obsessão das pessoas em geral pela observação dos comportamentos e
conduta alheios, leva à mais absoluta falta de solidariedade e
compaixão entre elas, ao férreo controlo social e à crítica
constante dos mais diversos aspectos das vidas dos outros.
No meio de tudo isto, há a criança
que atrofia por falta de manifestações de afecto, carência que
tenta colmatar com a busca contínua de um ideal de perfeição, mas
que a vai matando lentamente por dentro, até se assemelhar, ela
própria ao “homem mais triste do mundo”, quando se aproxima do
seu objectivo, fazendo lembrar uma personagem do romance Thaïs
de Anatole France.
A relação do narrador com as demais
personagens atinge sempre uma dimensão secundária, a tal ponto que
corre quase sempre o risco de exclusão, fruto da obsessão que toma
conta da sua mente. A troca de afectos passa, assim, para segundo
plano mesmo na relação com o grupo de pares (nunca exerce uma
posição dominante mas torna-se seguidor dos líderes adoptando os
comportamentos do grupo para aí ser aceite). Neste aspecto, a
personagem de valter hugo mãe tem algo do adolescente
Agostinho de Alberto Moravia. Com os adultos, também o afecto
não está em primeiro plano ou, pelo menos à superfície. A sua
relação com os adulto mais próximo é estabelecida para assegurar
as condições de segurança, conforto e socialização.
Outro aspecto, que é muito relevante
no romance é o evidente sincretismo religioso, que funde elementos
do cristianismo com os vestígios de antigas culturas pagãs
remanescentes que estão enraizados na mentalidade colectiva, como
sucede no ritual em que as mulheres da aldeia tentam ressuscitar um
jovem que fugiu da guerra, recorrendo a práticas de ocultismo. O
realismo mágico está presente em vários momentos da obra,
acrescentando-lhe beleza estilística, como o uivar dos lobos antes
de acontecer uma tragédia, a fúria destruidora do ciclone que, tal
como a revolução de Abril anuncia uma mudança se precedentes na
sociedade durante as décadas seguintes.
Uma obra de excelência a marcar a
estreia na ficção de um dos melhores escritores emergentes da
actualidade que viria a obter o Prémio Saramago, em 2007 com o remorso de baltazar serapião e em 2012 o Grande Prémio PT Literatura com a máquina de fazer espanhóis.
Cláudia de Sousa Dias
12.11.2012
4 Comments:
Essa vida pequenina e obcecada pela salvação lembra-me o que a minha avó costumava contar-me quando eu era miúda*...
beijinhos
*eu sou mais pecado e perdição e afins :P
:-)Lillith...
Mas é bom que alguem nos passe o filme de como era. Para que não deixemos que volte a ser...
Gosto muito dos textos do vhm.
Me too...
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