“A Herança de Eszter” de Sándor Márai (Dom Quixote)
Tradução de Ernesto Rodrigues
A trama deste romance de Sándor
Márai Autor do qual já
falámos neste blogue a propósito de As Velas ardem até ao fim
e de A Mulher Certa, tem como cenário principal o universo
de duas mulheres idosas, Eszter e a prima pobre Nana, ambas
solitárias que esperam já muito pouco da vida. Nana fora ama das
crianças filhas da casa, tendo cuidado inclusive de Eszter e dos
seus irmãos, Vilma e Marius.
A existência das duas últimas
habitantes daquela casa de família é perturbada por uma visita,
inesperada pela longa ausência, que se faz anunciar por carta.
Trata-se de Lajos, viúvo de Vilma e o grande amor de juventude de Eszter, que a trocara pela irmã mais nova.
Mas desenganem-se aqueles que pensarem
tratar-se este romance da busca do tempo perdido cujo objectivo
consiste em resgatar uma paixão que ficou cristalizada no passado.
Trata-se sim, da descrição de todo um processo que edifica um
engenhos esquema de manipulação, partindo da fragilidade de um
sentimento imorredoiro numa mulher, vítima de uma desilusão amorosa
na adolescência e a qual carrega as feridas ainda mal cicatrizadas
dessa mesma paixão, ao longo de mais de duas décadas. Trata-se do
sentimento persistente de que algo lhe foi roubado, um sentimento que
sobrevive à custa da esperança de uma restituição eternamente
adiada. Lajos, que vai buscar o nome a uma personagem pouco simpática
da tragédia Édipo Rei de Sófocles, representa nessa
obra de Sándor Márai o papel de anti-herói,cuja
personalidade vai sendo gradualmente revelada por Eszter, a
narradora, que decide contar a sua história e a de Lajos, já no fim
da vida. Trata-se, portanto, de um romance auto-diegético onde o
narrador é também personagem e protagonista. A perspectiva dos
acontecimentos chega-nos através de Eszter, num tom assaz
fatalista, já que esta é uma narradora omnisciente, que conta os
factos já depois de estes terem ocorrido estando, por esse mesmo
motivo, na posse de todos os elementos que lhe permitem obter um
conhecimento profundo do ocorrido. No tempo presente, Eszter tem a
perfeita noção de todas as nuances do carácter de Lajos e
das jogadas que é capaz de fazer, algo que antes apenas intuía, sem
contudo conseguir escapar à teia de intrigas edificada por Lajos,
sempre envolto na aura de falsa amabilidade com que atrai as suas
vítimas. Os acontecimentos desenvolvem-se assim a partir de uma
analepse, isto é de uma regressão ou flash back,
arquitectados num encadeamento de situações ocorridas como que sob
efeito dominó, cujo desfecho se adivinha inexorável.
As condições para que isto se passe
desta forma, seguindo este caminho e não outro, têm a ver não só
com a extrema fragilidade emocional da protagonista, do seu extremo
isolamento, mas também com a sua noção de honra e dever, a forma
como encara a missão de zelar pelo património, pelo bom nome e bem
estar da família, como um todo. E Lajos e os filhos de Vilma fazem
arte dessa família. É nestes dois pilares que assenta a
personalidade de Eszter, que Lajos conhece muito bem e através dos
quais consegue manipular a antiga namorada. No início, quando
conhece a família, Lajos é apenas um colega da faculdade de
Marius, mas que forja a sua própria situação económica ao dar a
entender ser originário de uma família abastada e cosmopolita. No
entanto, para um um olhar mais experiente, com o advogado da família
e um jovem pretendente de Eszter, os hábitos e estilo de vida de
Lajos indiciam muito mais um carácter indolente dissimulado. No
primeiro caso, um certo grau de exibicionismo utilizado com
habilidade para conseguir cativar uma família de origem provinciana,
simples mas com posses, consegue fazê-lo passar-se por um homem
cultivado, vivido, experiente e apresentar-se como um verdadeiro
presente dos deuses para duas jovens que nunca saíram da povoação
e as quais passam, então, a disputá-lo. Por outro lado, o excessivo
cuidado na toillete, e o excesso de dramatismo como no dia do
funeral de Vilma, a teatralidade do discurso ilustram um carácter
voltado para a interpretação de um papel, como se fosse um actor a
vestir a pele de uma personagem de um filme ou de uma peça de
teatro.
Ao referir-se à figura de Lajos, Eszter denuncia, no seu discurso, um certo sentimento de
inferioridade não que parte não só de si própria, mas que se
estende à sua família após começar a conviver com Lajos. A partir
desta altura, as dívidas começam a acumular-se, não só porque o
patriarca, de certa forma, se envergonha de parecer mesquinho, mas
porque Lajos, sobretudo após casar com Vilma e começar a participar
nos negócios do clã, esgota as reservas financeiras do mesmo e, à
data da morte do pai de Eszter, resta já muito pouco do património
familiar. Um amigo da família consegue ainda salvar uma pequena
parte da herança e de forma a garantir a Eszter o mínimo de
sobrevivência.
As personalidades de Eszter e Lajos
situam-se nos dois extremos do mesmo continuum no tocante aos
escrúpulos. Eszter é tão sensível à possibilidade de ser
injusta ou de magoar alguém que cede facilmente à mínima pressão
emocional. Trata-se da presa ideal para alguém como Lajos. A
Herança de Eszter é assim um romance que assenta ,não
num conflito de personalidades opostas, mas numa relação de domínio
e submissão de uma perante a outra. Não se tratando, no nosso
entender, do melhor romance de Sándor Márai, que
provavelmente necessitaria de um desenvolvimento mais detalhado em
termos diacrónicos para que o leitor tomasse consciência do
processo lento e gradual de fragilização de Eszter fruto do
desamor, mas que é compensado pela verosimilhança e dramaticidade
do discurso da protagonista.
Eszter é o produto de uma sociedade
rural, conservadora, onde imperam os valores da honra , do sacrifício
e também uma mentalidade, especialmente vincada no género feminino
– exceptuando no carácter frívolo de Vilma – da noção de
altruísmo e piedade judaico-cristã. Lajos, pelo contrário, é o
produto acabado de uma sociedade urbana, onde domina o cinismo que
implica a sobrevivência do mais forte ou daquele melhor se adapta. É
o lugar dos camaleões sociais. Uma selva humana onde a competição
para conseguir ascender socialmente leva, muitas vezes, a seguir
caminhos tortuosos que nem sempre se pautam pelo mérito ou pela
transparência dos meios usados para atingir determinados fins. E
Lajos escolhe caminho à margem da meritocracia. Habituado à vida
boémia dos bares e salas de jogo é realmente um homem mundano,
sedento de aventuras, indisciplinado e temperamental, mas que sabe
representar o papel de homem íntegro para iludir aqueles que caem
nas suas armadilhas.
A ingenuidade é o traço que se
encontra patente na voz da narradora, que só muito mais tarde se
apercebe do verdadeiro carácter do ex noivo o qual mente não só
com palavras mas também com actos e factos. Aqui, Eszter recorda
a já mencionada da encenação de viúvo inconsolável de Lajos
durante o funeral de Vilma. Assim, Lajos mente não só porque é um
hábito que parece estar enraizado já no seu carácter por longos
anos de treino intensivo, mas porque o acto de mentir se lhe
apresenta útil para conseguir os seus intentos, dizendo o que lhe
convém consoante as circunstâncias,permitindo-lhe, assim triunfar.
Logo que lemos as primeiras linhas do
texto somos imediatamente capazes de intuir os demónios que
atormentam Eszter. Após manifestar a intenção de contar a forma
como Lajos a despoja da sua herança, a narradora refere imediatamente a mensagem do
cunhado a anunciar uma visita após uma ausência de vinte anos. Esta
referência a um encontro entre duas pessoas que não se vêem há
tanto tempo trás à memória o reencontro entre outros pares de
personagens de Márai: os dois participantes no jantar à luz de
velas em As Velas arde até ao fim. Mas apesar de a
personalidade base de Eszter ser muito semelhante ao carácter do
protagonista daquele romance, A Herança de Észter toma um
rumo completamente diverso. Lajos por seu lado assemelha-se mais ao
carácter escorregadio e dissimulado de Judith de A Mulher Certa”.
É também frequente, nos romances de
Márai, a presença de um adjuvante, um confidente do
protagonista. Em As Velas ardem até ao fim é a velha ama a
guardiã que ela pela conservação da casa, tal como a prima de
Eszter, Nana, no romance de que aqui tratamos. Em A Mulher Certa
é o escritor, amigo de Péter, que assiste à queda do amigo em
simultâneo com todo um sistema económico. Sándor Márai é
um escritor muito hábil na descrição dos meandros e contradições
que envolvem a natureza humana bem como na construção dos perfis
psicológicos das suas personagens. Os seu livros são autênticas
sessões de psicanálise onde o protagonista que normalmente coincide
com o narrador,se deita no divã que a mente da pessoa que lê o
romance.
A Herança de Eszter é
um livro que se pode ler numa tarde, mas cujo impacto é tão forte
que dificilmente conseguimos deixar de pensar nas suas personagens
durante as horas seguintes após a leitura do último parágrafo. Tal
facto deve-se à verosimilhança do discurso, como se o ouvíssemos
da boca de um familiar nosso ou de uma conversa ocasional escutada,
confidenciada no eléctrico a caminho do emprego, como verificamos no
texto que se segue:
Não sei o que Deus ainda me
reserva. Mas antes de morrer quero escrever a história do dia em que
Lajos veio ver-me pela última vez e me roubou. Há três anos que
venho adiando estes apontamentos. Agora sinto como se uma voz, contra
a qual não posso defender-me, me exortasse a escrever a história
desse dia – e tudo o que sei acerca de Lajos – porque esse é o
meu dever, e já não tenho muito tempo. Uma voz assim é inequívoca.
Por isso obedeço, em nome de Deus. Já não sou jovem nem tenho
saúde e, em breve, terei de morrer.
Talvez devido ao tempo, que não me
perdoou, talvez devido às recordações, tão cruéis como o tempo,
talvez por um particular estado de graça que, segundo os
ensinamentos da minha fé, também toca por vezes os indignos e
destinados, talvez, simplesmente pelo peso da experiência e da
velhice, olho a morte de frente, com serenidade. Presenteou-me a vida
maravilhosamente e, implacavelmente me despojou...o que mais posso
esperar? Tenho de morrer, que isso é a lei, e porque cumpri o meu
dever.
Sei que palavra é esta e, vendo-a
agora, escrita, sinto-me um pouco intimidada. É uma palavra
arrogante, pela qual vou ter de responder, um dia perante alguém.
Demorei algum tempo a reconhecer qual o meu dever e obedeci,
contrariada, sim, uivando e protestando desesperadamente. Senti,
então, pela primeira vez, como a morte pode ser redenção, e soube,
também, como a morte é resgate e paz. Que estranha foi essa luta!
Quem me obrigou e porque não pude esquivá-la? Tudo empreendi para
escapar dela. Mas o inimigo vinha atrás de mim. Agora já sei que
não podia ser de outro modo. Estamos ligados aos nossos inimigos e
eles também não podem fugir de nós.”
Aqui está, evidentemente, explícita a
ideia de redenção. Mas está também implícita, não a ideia de
vingança mas de justiça onde, através de um longo relato se
pretende desmascarar, de uma vez por todas, um vilão. A história é,
portanto, uma narrativa circular, na qual os últimos parágrafos do
epílogo se encaixam e explicam esta introdução, fechando o círculo
como uma bracelete rígida. Assim A Herança de Eszter
apresenta-se como um livro de grande intensidade dramática, um
desfile de desilusões, iluminadas pela tomada progressiva de
consciência, levada a cabo pela protagonista, e da destruição da
esperança de ter vivido um amor que nunca o foi.
Cláudia de Sousa Dias
06-08-2011 – 23-12-2012
7 Comments:
Impressiona-me a tua persistência, as tuas sinopses e críticas durante tantos anos. Li as três obras de SM que enuncias. Gostei bastante desta "Herança". Levou-me aos outros livros do autor. Obrigada pelo teu olhar. É sempre uma mais-valia. Beijinhos
Obrigada, Ro! A tua opinião é para mim de extremo valor...
Obrigada pela visita.
Gosto muito de Sándor Márai mas ainda não li este livro.Fiquei curiosa.
another blog in the sky
obrigada, um beijinho.
Grato pela explanação minuciosa do romance "A Herança d Eszter". Eu o utilizo em minha dissertação de Mestrado em Educação, e, com essa sinopse, tudo se torna mais fácil!
Ah... então depois eu vou querer um exemplar desse mestrado!
Para que a citação conte para o meu currículo...a sério. Isso valoriza muito o meu trabalho...!
CLAUDIA parabéns pelas tuas resenhas, li o livro e muito me impressionou... att: Boaz de Avila Guedes
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