“A Rainha do Cine-Roma” Alejandro Reyes (Oficina do Livro)
Dados Biográficos:
O Autor nasceu na Cidade do México. É
jornalista e escritor. Viveu durante alguns anos nos EUA e em França.
Posteriormente. mudou-se para o Brasil onde trabalha como assistente
social, sendo a sua população-alvo composta essencialmente por
crianças e adolescentes que vivem na rua. A sua ligação à
Literatura prende-se com o mestrado em Estudos Latino-Americanos na
Universidade da Califórnia. Encontrava-se, à data da publicação
deste romance, a efectuar o Doutoramento, também em Literatura
Latino-americana, incidindo na temática da Literatura Marginal.
Escreve ainda em várias publicações, ligadas a diversos movimentos
sociais no México e nos Estados Unidos, além de ter também
participado no Movimento Literário Baiano. No tocante a publicações
literárias, do seu curriculum constam já, para além de A
Rainha do Cine-Roma, romance finalista do Prémio Leya em
2008, os títulos Vidas de Rua e Contos Mexicanos.
A Rainha do Cine-Roma
trata da vida de duas crianças que, por razões diversas –
desestruturação da vida familiar ou simplesmente um meio social
hostil –, acabam por viver na rua. Ali, recorrem a estratégias de
sobrevivência reveladoras de uma notável força psíquica, audácia
e sentido táctico. No entanto, a falta de modelos de referência e
de estruturas de protecção colocam-nas em situação frágil, que
se traduz num elevado grau de exposição ao risco. A prática de
pequenos delitos – roubo, consumo e tráfico de drogas, que pode ou
não estar associado a práticas de prostituição – fazem delas
permanentes fugitivas aos grupos de extermínio (esquadrões da
morte) que dirigem os seus alvos aos chamados “trombadinhas”
,além de se colocarem inadvertidamente sob o domínio dos
traficantes doo sexo. Assim, as vidas de Betinho e Maria Aparecida
desenrolam-se a partir de um apuradíssimo instinto de sobrevivência,
que as faz caminhar constantemente no fio da navalha...No meio de
tudo isto, os jovens protagonistas alimentam o sonho e a esperança
como espectadores e hóspedes clandestinos do velho cine-teatro do
bairro degradado onde vivem: o Cine-Roma.
O mérito de Alejandro Reyes
consiste na forma esquemática com a qual consegue contextualizar as
circunstâncias familiares e sócio económicas que empurram duas
crianças que deveriam estar na escola para a marginalidade e
exclusão social: a miséria extrema, a violência doméstica, o
abuso sexual dentro do próprio agregado familiar, o desinteresse ou
descuido dos familiares mas próximos. A isto junta-se a alienação
das instituições, o corolário de um conjunto de factores que
ajudam a perceber um pouco melhor quem não contacta directamente com
esta realidade o porquê da escolha deste jovens – que, na verdade,
não têm escolha, pois quase não encontram diferença entre o risco
de viver na rua e a situação de perigo eminente que vivem
diariamente em casa. Um retrato lúcido de uma realidade difícil de
encarar pelas pessoas que sempre viveram dentro daquilo a que se
chama a “normalidade”.
A trama evolui tendo com móbil
principal a procura da liberdade e a não sujeição à prepotência
vivida em família, em acelerado processo de entropia.
Num cenário de plena selva social, as
formas de solidariedade emergentes em determinados grupos, são a
faceta mais comovente do romance, onde facilmente conseguimos
identificar ecos de Os
Miseráveis do escritor francês Victor Hugo. Assim, no
enredar da teia de prostituição em que se vê envolvida Maria
Aparecida – e, também de Betinho – não conseguimos deixar de
encontrar semelhanças com o percurso de Fantine. Se excluirmos a
cena, talvez demasiado lírica, de redenção no final do romance, à
qual Pepetela, algo
eufemisticamente, classificou de “um
fiozinho de açúcar, emoldurando uma réstia de esperança”,
trata-se de um romance duro, pouco dado a “maquilhagem social” e
totalmente distante do argumento cor-de-rosa das telenovelas.
Na beleza extrema de Maria Aparecida
encontramos algo de selvagem, um não sei quê de libertino, com
tiques de provocadora. Qualidades que, combinadas, resultam num
cocktail explosivo que a transforma num objecto de desejo a perseguir
encarniçadamente pelos seus predadores: a insubmissão. A situação
de pobreza e ausência se suporte familiar direccionam-na fatalmente
para a mira dos traficantes de carne humana, apesar de se tratar
apenas de uma criança. Mas ao mesmo tempo, Maria Aparecida desperta,
igualmente, a admiração e o sentido protector de alguns jovens
prostitutos que gravitam à volta do velho teatro degradado. Enquanto
partilha o abrigo com os pequenos travestis do Cine-Roma, a menina
ainda consegue, durante um curto espaço de tempo, escapar do assédio
de potenciais clientes e proxenetas. Por vezes, o sentimento de
amizade e união entre estas crianças que encontram afinidades nas
suas histórias passadas é tão grande que o sublime se instala em
gestos de altruísmo sem precedentes, como é o caso de Betinho que
se inicia na prostituição para proteger e alimentar Maria
Aparecida, garantindo a sobrevivência de ambos. Chega, inclusive, a
procurar refúgio numa organização religiosa, liderada por um
pastor de nacionalidade francesa. A propósito deste episódio, o
Autor dá a entender, nas entrelinhas do romance que, muitas vezes,
as boas intenções de uma instituição colidem com um mais do que
deficiente conhecimento da realidade. É o caso da religiosa que
convence a menina do dever cristão de ajudar um pai doente,
apelando ao cristianíssimo perdão, sem antes conhecer a fundo a
história familiar de Maria Aparecida, ignorando o facto de a
pré-adolescente se encontrar na rua precisamente por estar em
perigo na presença do pai. Este encontra-se gravemente doente, mas
não mudou nada, nem com o sofrimento nem com a doença. É o mesmo
homem que, após perder o trabalho como pescador, por questões que
lhe são alheias, descarregava na mulher toda a responsabilidade do
trabalho doméstico, incluindo tratar da casa, do campo, das
crianças, da venda dos produtos hortícolas para o sustento da
casa...para além de continuar a ter comportamentos inadequados para
com a filha.
O romance termina com um final “aberto”
deixando diante do leitor todo um leque de possibilidades quanto ao
desenrolar do futuro de ambos os protagonistas. Mas, seja qual for o
caminho traçado, será sempre mais povoado de espinhos do que de
rosas...
O estilo de Reyes é marcado por
uma escrita que se pauta por um discurso descontraído, no qual
Betinho é o narrador. Trata-se portanto de um romance autodiegético,
onde o narrador é também uma personagem da história. Betinho
descreve o percurso de Maria Aparecida – a Rainha do Cine-Roma como
lhe chamavam –, na prisão, com toda a crueza da linguagem de quem
passou pela experiência devastadora da destruição da infância,
mas que, ainda assim, é capaz dos mais inesperados gestos de
ternura. A escrita de Reyes é escorreita e o ritmo, dinâmico, o
conteúdo, verosímil na sua maior parte, acusando uma terminologia
composta pelo calão e gíria das ruas do Rio de Janeiro, como se vê
no excerto que se segue:
O Lingüiça e a turma dele estavam
sempre enchendo a paciência dos outros. Era um bando de meninos que
morava lá na Barraquinha, espalhado pelos cantos e que vivia do
roubo, da droga e da malandragem. Os tiras1
deixavam eles tranquilos porque o Lingüiça era esperto, repassava
uma parte da grana para eles, não mexia com quem não tinha de mexer
e cagüetava2
direitinho qualquer abestalhado que não entrasse na linha.
As vicissitudes pelas quais passam as
personagens de Alejandro Reyes têm muito em comum com os
meninos do romance Capitães de Areia de Jorge Amado, que
agora se movimentam num mundo muito mais feroz, fruto da indiferença
das classes privilegiadas e da corrupção das autoridades. Um livro
onde a luz e a sombra caminham lado a lado, um retrato do Brasil que
não aparece nas tramas kitsch das telenovelas, antes ao
período de recuperação económica que tem, nos últimos anos,
vindo a experimentar e a dar esperança ao povo brasileiro.
Aguardamos o desenvolvimento dos próximos episódios. Ou das
próximas décadas.
11.12.2011-14.12.2012
Cláudia de Sousa Dias
1Polícias
2Cagüetar:
delatar, denunciar
2 Comments:
Mais um livro para a minha lista enorme de livros que tenho de ler ^-^
beijinhos
é um murro no estômago sem dúvida. Não deixa ninguém indiferente. Mas uma obra-prima é mesmo o "Myra" de Maria Velho da Costa que irei comentar em 2013!
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