“O Livro dos Peixes de Gould” de Richard Flannagan ( Dom Quixote)
Tradução de José Couto Nogueira
Richard Flannagan nasceu na
Tasmânia, Austrália, em 1961, numa família numerosa – era o
quarto de seis filhos. Passou a infância na cidade mineira de
Roseberry, deixando a escola aos dezasseis anos para trabalhar. Mais
tarde, viria a frequentar a Universidade de Oxford, apesar de antes
ter estudado anteriormente na Universidade da Tasmânia na área de
Artes, o que explica a obsessão da personagem principal do romance
de que aqui tratamos por este tema. Flannagan obteve reconhecimento
imediato no meio literário com o primeiro romance Death off a
River Guide o qual arrebatou vários prémios na Austrália entre
eles o National Fiction Award em 1996. Com
The Sound of the Hand Clapping obteve o Australian
Booksellers Book of the Year Award e o Venice Palmer Prize for
Fiction. O romance foi
adaptado ao cinema e co-realizado pelo Autor em parceria com Martin
Grath. Mas O Livro dos Peixes de Gould também não
passou despercebido ao conquistar o Commonwealth Wirtes Prize em
2002.
O desenvolvimento da trama de O
Livro dos Peixes de Gould estrutura-se em duas dimensões
distintas, criando uma narrativa secundária que serve para
introduzir e contextualizar uma outra que será a narrativa principal
e, depois, concluí-la no último capítulo, o qual fecha um ciclo, à
laia de epílogo. Esta narrativa secundária é construída e
implantada no tempo presente, com um narrador participante, e é a
partir dela de do narrador que lhe dá voz – o antiquário Sid
Hammet – que nasce o pretexto para a construção de uma história
onde o maravilhoso e o real se cruzam com a missão de reconstruir o
passado histórico da Tasmânia e a história pessoal de um artista
de talento invulgar, caído no esquecimento. É este o cerne do
romance, que se desenrola a partir do momento em que Sid Hammet,
antiquário e falsificador, encontra um estranho diário com
belíssimas ilustrações de bizarros peixes. O autor da obra é
William Gould, um presidiário da antiga colónia penal local,
condenado às galés no século XIX, criador de uma obra de arte cuja
perfeição artística ultrapassa o campo visual das artes plásticas,
legendada com as suas estranhas crónicas que acompanham as
ilustrações.
O Livro dos Peixes de Gould
é uma obra de carácter alegórico, a qual tem por objectivo
criticar a mercantilização da Arte e a forma como se faz história,
segundo o paradigma do darwinismo social, isto é, segundo as
premissas do marketing civilizacional daqueles que triunfam,
recorrendo muitas vezes à fraude ou distorção dos factos.
Acreditar neles ou não conforme se nos apresenta é, para o Autor, o
mesmo que acreditar no Milagre de Fátima tal como este é
apresentado à opinião pública. Não surpreende que o livro não
tenha sido amplamente divulgado em Portugal, já que é uma obra que
poderá incomodar pela capacidade de destruir mitos, por ser
iconoclasta, portanto. Logo no primeiro capítulo é feita a alusão
ao episódio dos pastorinhos de Fátima e à mistificação e
mitificação tecida à volta do que se passou na Cova d'Iria a
título de exemplo:
Estava sem trabalho, pois pouco
trabalho havia então na Tasmânia , embora haja ainda menos agora.
Talvez a minha alma estivesse mais susceptível aos milagres do que
estaria nutra situação. Talvez do mesmo modo que uma pobre
camponesa portuguesa vê Nossa Senhora, porque não deseja ver mais
nada, eu também desejasse ficar cego em relação ao meu mundo.
Talvez se a Tasmânia fosse um sitio normal onde se tivesse um
trabalho trivial, se passassem horas no trânsito para se passar mais
horas ainda num choque normal de ansiedades, para depois voltar ao
confinamento normal, e onde ninguém nunca sonhasse o que era sr um
cavalo-marinho, talvez situações anormais como a de alguém se
tornar um peixe não acontecessem as pessoas.
Digo talvez, mas francamente, não
tenho a certeza.
Talvez estas coisas estejam sempre a
acontecer em Berlim e Buenos Aires e as pessoas se sintam embaraçadas
demais em admiti-lo. Talvez a Nossa Senhora apareça constantemente
nos Bairros Sociais de Nova Iorque e nos horrores dos arranha-céus
de Berlim e nos subúrbios ocidentais de Sydney e toda a gente faça
de conta que ela não aparece e espere que se vá embora o mais
depressa possível para não os envergonhar ainda mais. Talvez a Nova
Fátima seja algures nos imensos baldios do Clube dos Trabalhadores
de Revesby, um halo no acanhado ecrã onde pisca “A Febre do
Blacjack”!»
O protagonista Sid Hammet chama atenção
para a existência de um mundo demasiado cartesiano, racional,
científico, no qual os humanos desaprendem a imaginação e o
maravilhoso: o livro
dos peixes de Gould desaparece-lhe, contudo, de forma
tão misteriosa que, a partir de então, a sua vida passa a ser a
recuperação dessa dimensão da existência humana. O livro de Gould
será, para Hammet, o Portal para um mundo desconhecido, fantástico,
surreal e bizarro.
Ao usar a voz do narrador do século
XXI, o Autor tenta comparar duas épocas diferentes com um fosso de
quase duzentos anos entre elas, aproveitando para ilustrar com um
exemplo passado num país católico, ocorrido no início do século
XX para mostrar a como são semelhantes os processos mentais, de
imaginação, criatividade e de exercício de poder,
independentemente da cultura ou época histórica. Para tal,
Flannagan tece uma analogia entre este episódio passado em Portugal,
que adquire significado simbólico, para aquilo que foi dito no
período anterior, por ser uma terra que se situa nos antípodas da
Tasmânia, que servirá para introduzir o episódio protagonizado por
um antiquário daquele país, perito em falsificar em mascarar
velharias inúteis e sem valor de antiguidades preciosas para vender
a turistas ingénuos, americanos sobretudo, famintos de História e
Autenticidade.
A transposição para a narrativa
principal apenas surge quando entra em cena o misterioso livro,
sobre o qual nunca chegaremos a saber ao certo se se trata do produto
de um delírio de Sid Hammet, de uma falsificação deliberada ou se
existe uma base real para os factos relacionados com o referido
livro, tal como no “milagre” de Fátima. O misterioso livro do
peixes de Gould, surge de forma inesperada e inexplicável, do nada,
portanto, com estranhas e fascinantes ilustrações de peixes
exóticos. O livro é uma espécie de talismã que faz diluir as
fronteiras do tempo entre dois tempos distantes contidos no romance.
A forma como o livro entra na vida do antiquário assemelha-se à
visita de uma entidade sobrenatural, na qual só acredita quem quer,
de facto, acreditar. E esta é a forma que o Autor encontra para se
salvaguardar, ao reescrever a história da colónia penal da
Tasmânia, sem a maquilhagem que os governos sucessivos daquele
antigo território do Império britânico a vestiram para, assim,
passar ao mundo a imagem de um Império progressista e “civilizador”
dos povos do Universo. Sid Hammet vê naquele livro algo de
extraordinário para fugir à mediocridade da vida quotidiana, da
mesma forma que outros povos poderão ver num milagre a fuga a uma
vida de miséria e sem esperança. A trama da narrativa principal
ocorre no século XIX e nasce a partir da narrativa secundária
passada no século XXI, e da obsessão de Hammet pelo artista
presidiário, que o escreveu e ilustrou. Esse mesmo livro vai
alimentar-se dos leitores que, tal como os fiéis e peregrinos que se
deslocam todos os anos àquela pequena cidade em Portugal, acreditam
no milagre fabricado pela imaginação, deixando-se aprisionar pelo
maravilhoso contido na lenda que se vai construído ao longo dos
tempos. A narrativa principal, contendo a história de William
Buellow Gould, tentará empreender o sentido inverso, servindo o
livro de ilustrações de máquina do tempo.
O que é que havia naquela suave
radiação, a fazer-me acreditar que tinha vivido a mesma vida vezes
sem conta, como um místico hindu, preso para a eternidade na 'Grande
Roda' que se tornara no meu destino? Que roubara a minha
personalidade? Que tornou o meu passado uma só realidade
indivisível?
A ponte estabelecida entre ambas as
narrativas e as duas vozes que as representam – o passado e o
presente – parte deste achado inverosímil e leva os leitores a
pensar poder ser o antiquário do mundo contemporâneo descendente de
Gould ou de um dos milhares de prisioneiros irlandeses deportados
para aquela ilha, nos dois séculos que precederam o actual. Falamos
concretamente da Terra de Van Diemen, hoje Tasmânia, durante o
século XIX.
A identificação entre ambos os
narradores é de tal forma evidente que ambas as personalidades
acabam por se fundir, como se fosse a mesma personagem a viver em
séculos diferentes através de um processo semelhante à
metempsicose. Ou será antes o antiquário que se apropria da alma do
artista, falecido há mais de um século, na tentativa de fazer
passar por sua uma obra arrancada ao esquecimento da História.
A trama principal vai-se desenrolando,
de surpresa em surpresa, e William Gould, prisioneiro condenado às
galés por um crime menor, tal como Jean Valjean de Victor Hugo,
escreve a partir da sua cela, diariamente inundada pelas marés, num
caderno onde vai codificando a personalidade daqueles com quem
convive e dirigem aquele estabelecimento prisional, guardando os
traços mais monstruosos de cada um deles nos seus desenhos e
habilidades de ictiólogo. Nesses desenhos são projectadas as
características mais monstruosas dos seres humanos com quem convive.
Na verdade aqueles não serão homens mas peixes, de sangue frio,
autênticos monstros marinhos. Na verdade todo o “livros de peixes”
de Gould é uma colectânea de metáforas ontológicas onde os peixes
não são mais do que personificações. A descodificação das
mensagens, cifradas nas ilustrações, é feita pelo falsificador do
tempos modernos, e tem como missão desvelar aos leitores o retrato
de seres humanos muito mais horrendos, ridículos, ou burlescos do
que qualquer forma estranha à nossa espécie: cada peixe ilustrado
faz-se acompanhar por uma descrição física e comportamento típico,
associado a estratégias de sobrevivência, mas na realidade, Gould
descreve sua própria relação, enquanto artista presidiário, com
os seus carcereiros, incluindo o director prisional, o responsável
por toda a colónia penal, governador da ilha, a amante nativa.
Mas este não é o único aspecto que é
destacado no romance. O próprio editor declara a respeito da
temática explorada por Flannagan que:
«Inspirado por esta personagem real
do início do século XIX, Richard Flannagan constrói um panorama
devastador do colonialismo inglês e do racionalismo científico que
o sustentou (…). O Livro dos Peixes de Gould” é uma fábula que
levanta questões acerca da autoria da História, da Ciência e da
substância que dá vida à criação artística.»
E que:
“A História não é escrita por quem a conhece,mas por
quem pode”.
A reconstituição histórica da
actividade e percurso da colónia penal da Terra de Van Diemen,
contempla também as dificuldades em escrever na época, agravadas
pela condição de presidiário do narrador. Em 1828, encontrar os
materiais necessários para a actividade da escrita revela-se quase
um trabalho de Hércules, devido à raridade e preço das
matérias-primas. A isso junta-se a actividade de ilustrador, cujo
material de trabalho se obtinha a preços absolutamente proibitivos,
daqui nascendo a necessidade do protagonista em encontrar técnicas
alternativas, passando por complicadas negociações com o carcereiro
de forma a obter o que precisa para trabalhar. A curiosidade
científica e a busca de melhores condições para o trabalho de
Gould acabam por abrir-lhe uma a porta de entrada proibida para a
história oculta da administração da ilha e da colónia penal,
dando a conhecer crimes hediondos e impensáveis por personagens
socialmente inatacáveis. Crimes esses cuidadosamente mascarados com
uma requintada operação plástica a que a patine da história
oficial e da passagem do tempo ajuda a disfarçar, esbatendo os
contornos originais dos acontecimentos.
Há, no entanto, um imprevisto que
assola Sid Hammet, já no século XXI: o livro original desaparece
misteriosamente, por isso cabe ao narrador que dar a voz ao tempo
presente e reconstituir, de memória, a obra original, obrigando a
utilizar com o requinte e precisão das suas habilidades de
falsificador, para o reescrever tornando-o tão semelhante quanto
possível com o original, tal como fizera o seu antecessor, condenado
ao inferno da prisão em vida e ao esquecimento após deixar este
mundo. Cabe a este perito em imitação, efectuar o autêntico
reescrever da história e da História e mostrar a outra face o que
não se sabe da Terra de Van Diemen..A exposição da galeria de
horrores que é o interior de uma colónia penal e cujo quotidiano
está vedado as olhos da maioria dos cidadão é a própria imagem do
Tártaro, a que foi condenado Gould por ser um imitador talentoso,
actividade que acabou por conduzi-lo a caminhos perigosos e ao
cárcere. Na prisão, é encorajado, mais uma vez a fazê-lo, pelo
médico da colónia penal, Lamprière, que tenta fazer fortuna à
custa do prisioneiro. Em troca, recebe os materiais que utilizará
ara ilustrar o seu “livro de peixes” com o qual acredita poder
ser catapultado para a Royal Society of Artists. Assim, Gould entra,
quase sem dar por isso, numa complexa rede de relações perigosas,
situação que agravada pelo facto de se envolver sexualmente com a
sensual e despudorada amante do seu carcereiro.
O principal mérito deste romance de
Flannagan consiste em desmistificar aquilo que consistiu na maior
falsificação de sempre até àquele momento histórico, um tempo de
rigor aparente: a moral vitoriana.
O romance começa e termina com um
cavalo-marinho, embora de duas subspécies diferentes fazendo
corresponder cada um deles ao prólogo e ao epílogo da trama, e são
ambos narrados pelo antiquário que se dedica a fazer do entulho que
lhe vai parar à loja antiguidades de valor inestimável. Os
restantes capítulos ou “peixes” são narrados por Gould: é como
se, no século XXI, Hammet estivesse a ler o diário de um antecessor
seu que vivera quase 200 anos antes Ou de si próprio, numa
existência anterior.
As referências a outros autores,
clássicos da literatura universal, traduzem-se em inúmeras
intertextualidades, desde Flaubert, a propósito do processo
criativo e da projecção do eu na escrita; Victor Hugo
também é evocado a propósito da condenação de Gould, cuja pena é
assombrosamente desproporcional em relação à falta cometida, como
vemos acontecer em Os Miseráveis; é também feita a alusão
a Dostoiévski a
propósito de Crime e Castigo e a Ovídio e ao seu
Metamorfoses, aqui sob a forma de homens-monstruosos,
transformados em peixes cuja morfologia põe a sua personalidade a
nu. Também encontramos alusão a Hermann Melville, nas
entrelinhas, aquando da incursão de Gould no ambiente hostil da
selva aborígene da Tasmânia, lembrando o inferno verde e quase
intransponível que Melville
descreve em Taipi e Conrad em O Coração
das Trevas. Apesar de tudo, as populações nativas parecem ser
bem menos selvagens do que os colonos europeus de então, de acordo
com os relatos de Gould reescritos por Hammet.
O Livro dos Peixes de Gould
é a caricatura do colonialismo britânico em terras remotas, mas
contado em tom de sátira um pouco à semelhança de Gargantula
de Rabelais, o que faz com que Flannagan seja um Autor
cujos livros não basta ler só uma vez. É um escritor ao qual se
deseja voltar para usufruir uma e outra vez das mesmas emoções,
como quem admira uma obra de arte. E, por isso, Uma escrita a
(re)descobrir e a explorar.
05.08.2012-05.05.2013
Cláudia de Sousa Dias
5 Comments:
Desconhecia. Parece-me interessante, diferente, pouco convencional.
Nada convencional.
:-)
Mesmo...
csd
o livro que mais me prendeu o Verão passado. delicioso
Sim também foi um dos melhores que li em 2012.
mas há outros que aí vÊm: Cabrera Infante (já postado), Millás, Faciolince e Maria Velho da Costa foram alguns deles.
Ótima análise desta obra!
Li já faz alguns anos e não sei bem porque me lembrei deste livro hoje. Resolvi então procurar alguma resenha para recordar um pouco do que senti ao ler.
Sou brasileiro e curiosamente conheci O Livro dos Peixes de Gould em viajem a Portugal em 2014. Comprei minha edição em Lisboa, quando fui visitar a Livraria Bertrand no Chiado.
Abraços
Post a Comment
<< Home