“Um céu demasiado azul” de Francisco José Viegas (ASA)
Mais uma aventura da dupla Jaime Ramos
e Filipe Castanheira, acerca da qual Francisco José Viegas fala
assim:
Enquanto escrevi este livro, dei-me
conta que estava a atribuir à imaginação o resultado de aparentes
pesquisas: em arquivos de jornais e entrevistas com personagens que a
ficção exige que sejam inventadas e a quem agradeço terem acedido
à conversa.
(…) há aquela intenção de
confundir personagens reais com personagens de papel, por quem
necessariamente me apaixonei a longo da história.
FJV
Francisco José
Viegas nasceu em 1962 na região do Douro, provavelmente a razão
pela qual muitos dos seus romances remetem para esse cenário,
marcado pelo céu de um azul cerúleo, indescritível dos dias de
Verão (demasiado azul) lusitano. No caso do romance de que aqui
tratamos, é este o cenário dominante, o Douro vinhateiro, onde se
encontra a chave do mistério, que está por detrás do assassínio
de um homem, encontrado morto na mala de um carro. O desenrolar da
acção estender-se-á, depois, com ramificações para o Porto,
Lisboa e até mesmo à América do Sul.
A missão de
desvendar o crime é atribuída a Jaime Ramos, inspector portuense e
bonacheirão cuja jurisdição da respectiva esquadra abrange aquela
região rural, pacífica só na aparência.
Filipe Castanheira,
que se encontra nos Açores, acaba também por ser recrutado para
ajudar o seu colega a resolver o mistério.
Caracterização
das Personagens
Jaime Ramos é um
polícia veterano, de meia-idade, que mantém uma cómoda relação
de vizinhança – e algo mais – com Rosa, professora de
literatura. Não partilham a mesma casa, mas mantém-se próximos
quer física sexual quer emocionalmente, como iremos verificar
alguns volumes mais adiante. E isto só acontece porque se trata de
personagens que só são planas se considerarmos os romances cada
qual isoladamente, sem relação com os outros volumes. Mas para já,
a ausência de compromisso deixa margem de manobra – a Jaime Ramos,
pelo menos – para ocasionais aventuras eróticas e escaldantes em
esporádicos flirts, que servem para lhe conferir uma certa
aura de Dom Juan, imagem que o inspector portuense ainda gosta muito
de cultivar. Neste livro, em termos afectivos, Jaime Ramos parece ser
uma ostra, sentindo-se impelido para paixões efervescentes embora de
curta duração, mas sem se envolver e compromissos de longo prazo
nem de se deixar arrastar para ligações muito profundas. Os deveres
profissionais e interesse pessoal também parecem conspirar para a
concretização de um desejo irresistível de conhecer novas
paragens, saindo da rotina diária e burocrática da esquadra
portuense, num impulso de evasão que Jaime Ramos sempre quis
realizar mas fora sempre impedido pela restrição salarial que lhe
proporcionava uma vida confortável mas sem grande margem para
extravagâncias. Uma viagem que jamais poderia fazer com Rosa sem se
endividar. Com o crime ocorrido no concelho de Amarante, Jaime Ramos
tem a oportunidade de unir o útil ao agradável, deslocando-se
primeiro a Cuba e, depois, ao México (deixando Rosa tristemente em
casa) onde tem a oportunidade de se envolver com uma jovem e
calientissima guia turística, que trata carinhosamente por
papayto (paizinho)!
Filipe
Castanheira é um polícia bastante mais jovem, tem menos dez anos do
que Jaime Ramos e vive uma relação apaixonada, cheia de altos e
baixos, com a sua companheira nos Açores, numa ilha que, exceptuando
no tempo de férias, parece quase abandonada, trabalhando numa
esquadra onde se instala a rotina. Ali, os dias escorrem de forma
ainda mais lenta do que no Douro, onde o mistério que envolve o
homem encontrado na mala do carro se vai adensando, tornando-se cada
vez mais intrincado. As paixões e ligações complexas cruzam-se
envolvendo várias personagens femininas e ligações inesperadas que
irradiam para outros pontos do país. O caso torna-se mais complexo
devido aos trâmites burocráticos, a que a falta de vontade do
guarda António Gomes em colaborar não contribui para a sua
resolução. Depois, junta-se a questão política, a intrometer-se
no funcionamento das instituições e obrigar Jaime Ramos a
deslocar-se pessoalmente ao interior do país, para descobrir as
pistas do crime cometido em Amarante e seguir o rasto do assassino. A
partir daí, o inspector portuense andará num torvelinho de viagens
e deslocações o que faz com que peça ajuda ao seu colega nos
Açores, qual resolve aceitar o desafio e sair da rotina
anestesiante de todos os dias.
Jaime Ramos não
parece ser um detective especialmente brilhante, se entendermos
brilhantismo como sendo aquela espécie de inspiração demiúrgica,
auxiliada por um raciocínio lógico, esquemático e acutilante como
acontece nos romances de Sir Arthur Conan Doyle, protagonizados pela
figura mítica de Sherlock Holmes ou mesmo de Hercule Poirot criação
da escritora britânica, Agatha Christie. Jaime Ramos é antes alguém
que espera pacientemente que os dias passem ao ritmo das estações
do ano e cuja alma epicurista se rende ao apelo contemplativo de um
céu demasiado límpido, na esperança que dali lhe caiam as pistas e
venham ter com ele para solucionar o caso. O Inspector é um
sibarita, que adora viver a vida com o melhor que esta lhe pode dar,
deslocando-se sensualmente pelos cenários que o conduzem ao autor do
crime, enquanto vai tomando notas das pistas que surgem e compõem o
puzzle: os seus gostos gourmet, o refinamento da arte
gastronómica que gosta de aplicar na sua cozinha, o degustar da
beleza extrema da paisagem duriense, a qual conjuga com os seus
conhecimentos alargados sobre vinhos. Tudo isto ajuda a confirmar
este temperamento, à medida que avançamos no romance: Jaime Ramos é
um homem paciente, que gosta de viver devagar, apesar de também, tal
com Filipe Castanheir,a gostar da evasão de sair da rotina uma vez
por outra, mas à qual gosta sempre de regressar. É o que acontece
neste romance.
Um dos aspectos
menos positivos do romance será, talvez, a escassez de densidade
psicológica das personagens femininas presentes em Um céu
demasiado Azul. Para isso seria, talvez, necessário
construir um monólogo interior para Rosa e Amélia tal com Gustave
Flaubert fez para Madame Bovary. Esta falha é, no entanto,
compensada pela habilidade com que o Autor mistura os restantes
elementos com que constrói não só a a personalidade de Jaime Ramos
mas também de Filipe Castanheira,, sobretudo nas divagações e
monólogos interiores de ambos. Dace a ist está aqui criada uma
evidente assimetria de géneros, característica que será atenuada
apenas nos romances mais recentes, sobretudo com a figura que Rosa,
cuja importância começará a ganhar consistência. Neste romance,
há contudo uma passagem em que Filipe Castanheira compara a actual
namorada com os seus amores do passado, e onde o temperamento das
amantes é projectado na morfologia dos respectivos órgãos sexuais,
que surgem personificados, impregnados das características físicas
e /ou psicológicas das suas possuidoras, muitas delas redundantes, o
que resulta na construção de um discurso simultaneamente evocativo
e caótico, a roçar o onirismo.
O céu, “demasiado
azul”, da paisagem duriense e de Portugal no Estio estão presentes
não só em Um Céu demasiado Azul mas no conjunto da
obra de Francisco José Viegas como a representar a força
telúrica de uma existência que só é idílica à superfície,
impedindo de vislumbrar as brumas cinzentas de um Outono que já está
à porta. Um Céu demasiado Azul é aquilo que se pode
chamar de o retrato de um Portugal “à beira do crepúsculo” de
que falava LeFigaro a propósito deste livro.
Cláudia de
Sousa Dias
28.07.2012 –
28.03.2012
2 Comments:
Obrigado por mais um texto, Cláudia. Ainda não li.
A propósito do 'à beira do crepúsculo', ocorreu-me o que escreveu Steiner 'Today, in western orientations... the reflexes, the turns of perception, are those of afternoon, of twilight.' Nesses momentos, quase todo o azul é excesso.
pois é...os blues à portuguesa.
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