Duas Mulheres em Praga de Juán José Millás (Temas & Debates)
Tradução de Jorge Fallorca
Juán José Millás nasceu em
Valência, 1946, embora actualmente passe a maior parte do seu tempo
em Madrid. É escritor e jornalista, colaborador no jornal El
País. Foi galardoado com o Prémio Mariano de Cavia em
jornalismo. Em 1974, recebeu o Prémio Sésamo pelo livro Cerbero
en las Sombras e em 1990, o Prémio Nadal por Assim era a
solidão.
O livro Duas Mulheres em Praga
explora o tema da pulsão da escrita e do processo criativo,
alimentado pelas obsessões de quem se propõe escrever algo. As
personagens principais, formam uma tríade construída por uma mulher
nos seus quarenta anos, de nome Luz Acaso, que decide recorrer a um
atelier literário para escrever um livro sobre o passado que a
persegue. Alvaro Abril é um escritor que vive à sombra de um já
antigo sucesso literário e a sofrer no presente uma crise de
criatividade. Decide, então, abrir uma oficina de escrita para
conhecer vidas alheias que lhe possam abrir caminho à inspiração.
Estes dois seres vivem obcecados pela mesma ideia: Alvaro, com a
possibilidade de ter sido adoptado à nascença, baseando as suas
suspeitas em indícios mais do que vagos e, Luz, a sua discípula, a
quem a “luz do acaso” faz encontrar o seu mestre (o nome da
protagonista não é escolhido aleatoriamente). Luz está gravemente
doente e enceta uma corrida contra a morte na tentativa de legar algo
para a posteridade: a sua história. Ou seja, um livro que será o
filho que nunca (?) teve ou se teve não pôde criá-lo. Mas a
fronteira entre realidade e ficção vai-se diluindo para estas duas
personagens, à medida que vamos avançando na trama. A solidão é
uma constante na vida de Luz Acaso que procura, através da escrita,
reconstituir a família “perdida” e acaba os seus dias rodeada de
calor humano e cuidados, envolta num sucedâneo da célula familiar
que adquire a mesma importância de uma família de sangue.
A ideia fixa das personagens de Duas
Mulheres em Praga em encontrar uma família supostamente
perdida acaba por contagiar, também. uma terceira personagem, também
ela dominada pelo impulso da escrita: trata-se da jovem que partilha
o apartamento com Luz mas que está determinada em escrever uma
história com “o lado esquerdo do corpo” e da vida. Literalmente
e não só. O esforço que a obriga-a a portar-se como se não fosse
dextra é enorme, mas também a faz colocar-se na pele do lado mais
débil, fraco, do corpo físico e da social, olhando a vida do
avesso.
A ideia fixa de adopção, que se torna
cada vez mais obsessiva para estas personagens, está relacionada com
um facto real, e relativo à História recente de Espanha. Juán
José Millás interessou-se particularmente pelo assunto, tendo
investigado a respeito no âmbito da sua actividade como jornalista.
Na blogosfera há, também, uma enorme proliferação de artigos
sobre o tema, que reportam a factos ocorridos a partir da década de
1970, logo após a queda do franquismo, até ao final da década de
1990. Um período de cerca de vinte anos ao longo do qual a Igreja
Espanhola servia, alegadamente, de intermediária a um número
avultado de adopções ilegais. Segundo as fontes recolhidas pelo
depoimento de várias entrevistas, o processo envolveria instituições
religiosas que ficavam com crianças nascidas de mães solteiras ou
de parcos recursos financeiros, convencendo as mães de que as
crianças recém-nascidas haviam morrido durante o parto, após o que
eram contactados casais sem filhos, provenientes de famílias
abastadas, sendo-lhes então vendida a criança.
Juán José Millás aproveita o
assunto polémico para construir uma paródia, ou melhor uma
tragicomédia, colocando esta obsessão colectiva e autofágica no
centro da trama que invade, que por sua vez alimenta o pensamento das
personagens transformando-se numa quase mania. Assim não admira que:
No momento em que Luz Acaso e Alvaro
Abril se conheceram, as suas vidas enlearam-se como dois cordéis
dentro de um bolso.
O mesmo acontece em relação às suas
vidas reais (?), isto é fora daquela ficção que,dentro do romance
de Millás se propõem criar, de Alvaro. Tanto, que no final
do romance, já se torna completamente impossível desembaraçá-las.
Nessa altura, já os seus escritos lhes proporcionam uma “terceira
vida”, um mundo paralelo em que passam a viver, contendo elementos
da realidade e ficcionais. A partir daí, será só isso que importa
para eles.
A ironia ácida de Millás está,
como não podia deixar de ser, patente no discurso do narrador e das
personagens, o qual deixa entrever uma dura crítica à literatura de
massas, pelo recurso à sátira, usando a figura de um escritor que,
para sobreviver, corrompe ou, até mesmo, prostitui o conceito que
tem de escrita literária:
A literatura do
século XXI será a literatura industrial ou nada. É curioso que ,
enquanto o resto da realidade se encontra na era pós-industrial, a
literatura acaba de entrar no mercado. Estaremos com cem anos de
atraso, mas nunca é tarde.
Luz e a escritora que e escreve com o
“lado esquerdo”, Maria José, habitam um apartamento numa
estreita e sombria viela em Madrid, impregnada de uma luz cinzenta,
como a luz que banha a cidade de Praga, num bairro empobrecido e
enclausurado por ruas secundárias, também elas estreitas e escuras.
Vivo numa rua muito triste, que se
parece com as ruas de Praga.
(…)
- Que sorte, vives em Praga sem
necessidade de saíres de Madrid.
À estranha e nada ortodoxa interacção
deste trio, junta-se ainda um jornalista que parece ser uma espécie
de alter-ego do Autor, também ele interessado em explorar este tema
das crianças adoptadas. Assim, ao chegar quase à recta final do
romance o trio inicial transforma-se em quarteto, aumentando ainda
mais a complexa a teia de enganos, apimentada pelo corrosivo humor
negro de Millás. O discurso abunda em trocadilhos, situações
truculentas, com desdobramentos de personalidade, vidas duplas,
triplas e quádruplas, num contínuo jogo de espelhos. Dali emerge
uma prostituta (será?) com vários heterónimos, como se fosse uma
versão feminina de Fernando Pessoa mas dos anúncios das páginas
das sessões do relax dos jornais, um romance de escritores
com múltiplas facetas, máscaras e bigamias editoriais...
Duas Mulheres em Praga,
isto é, numa viela escura de Madrid que se parece com Praga, é um
livro onde o autor executa uma série de artifícios literários e
jogos semânticos, criando um quebra-cabeças impossível de
decifrar. Um pouco como no nosso quotidiano, sempre povoado de zonas
sombrias que o sol nunca chega a iluminar. Da mesma forma, nas
efabulações de Luz Acaso, durante as sessões de treino de
narrativa com Alvaro Abril, Millás diverte-se jogar com o
leitor o jogo de luzes e sombras entre verdade e ficção, ao criar
uma heroína que, tal como a Penélope de Homero, desfaz à noite a
trama que tece durante o dia, numa eterna busca de si mesma.
Assim é a ficção. A transfiguração
de múltiplas vidas que todos os dias se nos apresentam na realidade,
mascaradas.
Cláudia de Sousa Dias
27-11.2012-21.8.2013
2 Comments:
Apetece-me ler e, sobretudo, aprender muito com este livro!
Beijinhos ;)
P.S. Não tenho lido nada...
Eu também tenho lido pouquíssimo este ano...aliás vê-se pela data do primeiro rascunho dos artigos...!
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