“Somos o esquecimento que seremos” de Héctor Abad Faciolince (Quetzal)
Tradução de Margarida Amado da Costa
Biobibliografia:
Héctor Abad Faciolince nasceu
em Medellín, Colômbia, tendo aí iniciado os cursos de Medicina,
Filosofia e Jornalismo, sem no entanto concluir nenhum deles, sendo
inclusive expulso da universidade Pontifícia Boliviana, por ter
escrito um artigo polémico contra figura do Papa, na altura.
Estávamos nos anos 1980. Paradoxalmente, decide emigrar para Itália,
país onde encontra finalmente a sua vocação e se licencia em
Línguas e Literaturas Modernas. Regressou depois à Colômbia, em
1987, ano em que as milícias paramilitares lhe assassinaram o pai em
que ele próprio sofre ameaças de morte.
Refugiou-se então, novamente em
Itália, onde exerceu o cargo de leitor da cadeira de Espanhol na
Universidade de Verona, até 1992, ano em que regressou, desta vez
definitivamente, ao país Natal. Exerceu, também, a actividade de
tradutor das obras de Umberto Eco e G. Tommasi di Lampedusa
para o castelhano.
Após o seu regresso, passou a dirigir
a Universidade de Antioquia tendo dado, a partir de então, início à
sua carreira de escritor, apesar de o interesse e a actividade da
escrita lhe tenha despontado muito antes. Héctor Abad Faciolince
começou por escrever contos e poemas com apenas doze anos e tinha já
vinte e um quando ganhou o primeiro Prémio do Conto Nacional
Colombiano, em 1980, com o título Piedras de Silêncio,
sobre um mineiro soterrado numa derrocada. Ainda em Itália,
escrevera já o seu primeiro livro ,a que dera o título de Malos
Pensamientos (1991). Mas só após regressar definitivamente à
terra dos seus pais é que daria livre curso a esta vocação.
Faciolince é um Autor que está
conotado com a fase posterior ao realismo mágico de cujo expoente
máximo constam autores sul-americanos (e não só) como Gabriel
García Márquez e Jorge Amado, indo mais ao encontro da
escrita de Santiago Gamboa e Laura Restrepo.
Faciolince é u escritor multifacetado que reparte a
construção do seu discurso por vários géneros literários e de
temática muito diversificada.
A obra Malos Pensamientos,
(1991) é vista pelos conhecedores da obra de Joyce como um
hipertexto de The Dubliners do Autor irlandês, com as decidas
adaptações à realidade da sociedade colombiana. Trata-se de uma
compilação de pequenas histórias sobre o quotidiano e do viver
colombiano nos anos oitenta. Já Assuntos de un Hidalgo Dissoluto
(1996) é inspirado em duas
figuras-chave da literatura do século XVIII: Tristam Shandy de
Lawrence Sterne
e no Candide de Voltaire.
O narrador e protagonista do romance é um ancião de 71 anos cuja voz
ressuscita o tom picaresco da literatura espanhola daquele período,
tratando-se de um milionário que faz uma retrospectiva de toda uma
vida debochada, chamando a atenção para a diferença entre o que
gostaria que na realidade tivesse acontecido e o rumo que tomou na
verdade a sua vida, o que se traduziu num romance de época bastante
aclamado pela crítica.
Héctor
Abad Faciolince escreveu
também Tratado de Culinaria para Mujeres
Tristes (data), já comentado neste blogue, sendo a versão
portuguesa brindada com o infeliz título de Receitas de
Amor para Mulheres Tristes. Este
é normalmente olhado pelos
críticos como um livro de género “incerto”, por adicionar a um
conjunto de falsas receitas que parece à primeira vista assumir a
forma de um breviário de mezinhas e feitiços, retirados do
património oral e imaterial colombiano, com receitas verdadeiras,
quase todas com efeito mais placebo que medicinal, mas cuja leitura
cura só por si a tristeza, dado o efeito hilariante do humor negro,
às vezes burlesco, que salta das entrelinhas. Dizem-no de género
“incerto” por não se enquadrar nos géneros de romance, contos,
relatos ou narrativas e muito menos de um livro de receitas, antes
num conjunto de hilariantes reflexões a infelicidade.
Fragmentos de Amor Furtivo (1998),
outra obra do Autor, vai beber a inspiração nos contos das Mil e
uma Noites já que todas as noites, ao deitar, uma mulher convence o
amante a adiar a partida, contando-lhe episódios dos seus amores
passados. Faciolince
acaba por traçar, assim, de uma forma poética, os retrato da classe
média colombiana dos anos 1990, em Medellín, uma cidade então
controlada pela pestilência (biológica e social) e pelo desencanto
em que a população se vê mergulhada, tiranizada pelos cartéis do
narcotráfico na, então, mais violenta cidade do mundo,. Uma
violência que acaba por enterrar vivos os seus habitantes. À
semelhança do que acontece em Decameron
de Bocaccio,
o casal protagonista isola-se da “pestilência” (aqui com o
sentido a que lhe dá Albert
Camus, a desumanização)
da sociedade, dedicando-se a contar um ao outro histórias que os
possam resgatar da morte.
Basura
(2000) foi publicado em português com o título Os Dias de
Davanzatti é o livro mais experimentalista do Autor, onde o
narrador alude constantemente a estereótipos ou então a escritores
universalmente consagrados para falar de um escritor amador que é o
protagonista do romance, Bernardo Davanzatti, o qual atira
sistematicamente tudo o que escreve para o cesto dos papéis. O que o
seu diligente vizinho, o locutor da narrativa se dispõe a,
diligentemente e cuidadosamente, todos os dias, a ir buscar ao lixo,
tornando-se o seu único leitor. Trata-se de um livro dedicado
unicamente ao acto da escrita e ao papel do leitor na interpretação
da obra escrita, ou seja, àquilo que é na verdade a única coisa
que dá sentido ao acto de escrever, conferindo vida ao livro muito
para além da “mão” que o escreve.
Depois dá à luz
as Palabras Sueltas (2002) onde mistura a escrita ensaística
com uma colecção pessoal de pensamentos e aforismos.
Héctor Abad
Faciolince escreveu também um livro de crónicas das suas
viagens pelo Egipto, também no ano de 2002, onde o narrador oscila
entre duas versões da realidade quotidiana numa mega cidade que se
empenha em trazer para a luz do dia a memória de outras realidades,
imagens e episódios passados no outro hemisfério, em Medellín. O
livro intitula-se Oriente, desde el Cairo e pode ser lido em
complemento com Tahrir, de Alexandra Lucas Coelho que
fala da mesma cidade, dez anos mais tarde, em plena Primavera Árabe.
Noutro livro de
viagens publicado dois anos mais tarde, intitulado Angola 2004,
a voz do narrador traz-nos o eco do hiper-realismo, ultrapassando o
Autor, definitivamente, a questão da influência do realismo mágico.
Aqui, estamos mais uma vez, tal como em Fragmentos de amor furtivo
perante uma alegoria por comparação com a sociedade colombiana.
Nesta obra, Faciolince descreve uma cidade cuja população se
divide em três castas, em tudo semelhante ao regime do apartheid,
mas reproduzindo a violência que se faz sentir na Colômbia, nos
anos de transição para o século XXI.
Todos estes livros
serão, a seu tempo, comentados neste blogue.
Somos os
esquecimento que seremos
E assim chegamos a
2006, altura em que Héctor Abad Faciolince publica o romance
autobiográfico e de tom memorialista que dá o título a este post,
El olvido que seremos, em português, Somos o esquecimento
que seremos. O livro foi escrito em homenagem ao pai, assassinado
vinte anos antes, pelas milícias paramilitares.
Nesta
obra, o desenvolvimento da narrativa centra-se no olhar e na visão
do mundo do narrador que é filho da personagem principal. Estamos,
portanto, diante de um caso de autodiegese em que o narrador, sendo
também ele uma personagem da trama, se coloca na posição de
observador para proporcionar aos seus leitores/ouvintes uma
perspectiva panorâmica e diacrónica dos acontecimentos. É, também,
notória a construção discursiva, elaborada propositadamente de
forma assegurar ao leitor não se ter o locutor sujeitado a nenhum
constrangimento em termos de liberdade de expressão salvo num único
caso, em que dá a entender não revelar o conteúdo de uma gaveta
com o objectivo de preservar a memória do pai, fazendo-o apenas por
estar certo de que os factos omissos não terem tido expressão na
sua vida pública e assim salvaguardar a sua intimidade. Da mesma
forma, o Autor propõe-se contar a história da família Abad
Faciolince, enquadrada no contexto sócio-político da Colômbia, ao
salientar as históricas e culturais práticas de abuso de poder por
parte de uma classe dirigente despótica, mediante uma mentalidade
modelada na têmpera do colonialismo. Trata-se de uma narrativa de
género confessional, em cujas entrelinhas está contida uma profunda
ironia a que se liga um forte sentido crítico e simultaneamente uma
total honestidade em relação às próprias motivações e
sentimentos ao longo da diegese, ao expor alguns aspectos das suas
memórias que qualquer outro autor poderia ter camuflado. É aqui
realçada logo a partir das primeiras linhas, a importância das
mulheres na família de Faciolince,
provavelmente uma das poucas características que o aproximam do
também escritor colombiano Gabriel
García Márquez: as cinco irmãs, a mãe, as empregadas da casa e demais parentes femininas, ao todo dez mulheres que
faziam então parte do agregado, uma família alargada em cuja casa
conviviam várias gerações, a par de um afecto pungente tal a
intensidade, dirigido a pai.
Também
é colocada em evidência como factor favorável no crescimento e
desenvolvimento dos filhos do casal a complementaridade de feitios
(apesar de diametralmente opostos) entre os pais, descrita com o
humor de quem está habituado a ver as diferenças de personalidade
como indispensáveis. A mãe de Faciolince, esposa do Doutor Abad,
médico e professor, é uma senhora de espírito racional e
pragmático, gestora de condomínios. O pai é mostrado como um
profissional de brio extremo, consciente da sua missão como formador
de uma geração de novos médicos e ciente do dever modificar
culturalmente a forma de olhar para a medicina: a prevenção das
doenças infecto-contagiosas, e sobretudo a chamada de atenção para
a missão do Estado, em efectuar o tratamento das águas municipais.
O Autor mostra o pai, o Doutor Abad como um homem superior, um
sonhador que dedica a vida, à custa da própria vida, pela causa da
saúde pública, fazendo do tratamento da água potável que abastece
os lares colombianos o seu baluarte no tocante à medicina
preventiva, a par da vacinação universal, as suas duas grandes
cruzadas.
No
entanto, pelo retrato que é dele tecido ao longo do romance, a
dedicação a causas públicas ocupa a quase totalidade do seu tempo,
tendo de delegar na esposa as questões práticas do quotidiano, já
que se trata de um homem que, por vezes, se esquece de si para ajudar
os seus alunos, até mesmo financeiramente.
O
Doutor Abad, apesar de nunca ter estado ligado a nenhum partido
político, teve um posicionamento ideológico que o tornava num alvo
particularmente apetecível para a ala mais reaccionária da elite na
Colômbia dos anos oitenta, moldada por séculos de mentalidade
colonialista da classe dirigente, a qual pretende fazer da medicina
um negócio lucrativo e ao mesmo tempo, tornar o seu exercício uma
forma de exercer o Poder e um privilégio a ser usufruído por
aqueles que o podem pagar a peso de ouro. Segundo o Autor é desta
classe dirigente que emanou nos anos oitenta do século vinte o
financiamento das milícias paramilitares.
Assim,
o que temos neste livro, por detrás do tom memorialista e
autobiográfico é um livro que trata do fenómeno da circulação
das elites num país sul-americano no último quartel do século
vinte, à semelhança do que acontece com O Leopardo
de Giuseppe Tommasi di
Lampedusa em Itália.
Somos o esquecimento que seremos
é um livro que demorou mais
de vinte anos a amadurecer para criar o distanciamento de
acontecimentos cuja excessiva emotividade poderia prejudicar a
escrita e a transmissão da mensagem. O livro foi, assim, cuidadosa e
pacientemente depurado na sua simplicidade estilística, expurgado de
todo e qualquer sentimentalismo fácil. O tom é evocativo, trazendo
ao presente episódios da vida famíliar que vão surgindo uns
encadeados nos outros, como as cerejas.
Faciolince
traça ainda o retrato de uma Colômbia essencialmente agrícola
durante os três primeiros quartos de século, um pouco como Portugal
até 1974. Um país essencialmente rural, mas que ao contrário
sucedido em terras lusas, emerge da pobreza após uma sangrenta luta
de classes (em Portugal isto acontece com o fim da colonização e da
Ditadura do Estado Novo), luta essa que assenta em ideologias
antagónicas, representadas por dois tipos de elites: as que
acreditam que para existir progresso, tem de se garantir condições
de vida digna à população e aquelas que são um misto de
inspiração colonialista, deslumbradas pela pujança da locomotiva
económico-financeira norte-americana, assentes na doutrina
calvinista de que o usufruto dos bens são para aqueles que os podem
pagar, usando as assimetrias socio-económicas para melhor controlar
as massas e exercer poder. A oposição entre estas duas formas de
ver o mundo degenera, numa primeira fase, e descontentamento e, mais
tarde em sangue e morte, sendo o Doutor Abad, Defensor do Direitos
Humanos e membros de várias ONG's apenas uma das milhares de vítimas
que caem perante o triunfo do ódio.
O
título do romance é apenas o primeiro verso de um soneto de Jorge
Luís Borges o poeta cego
argentino, cujo poema adquire uma dimensão épica com este romance,
o qual expõe as fragilidades e ataques a que está constantemente
sujeito um regime democrático (ver aqui http://itinerariopoetico.escribirte.com.ar/10215/el-olvido-que-seremos.htm).
No
tocante à construção da identidade sexual e posicionamento
socio-político da voz do narrador é também nítida a influência
do pai e da ideologia do racionalismo iluminista e do Humanismo dos
filósofos do século das Luzes. Por outro lado, o Auto empenha-se em
esmiuçar papel do controlo da Igreja que entra no lar através da
figura materna e se reflecte na forma como algumas das irmãs
conduzem a própria vida, desde o grau de autonomia e autoconfiança,
até à forma de se vestir ou exprimir-se em público. Este aspecto
está particularmente vincado em alguns textos de Tratado
de culinária para mujeres tristes
ou Receitas de amor para mulheres tristes
(ver aqui http://hasempreumlivro.blogspot.pt/2013/01/receitas-de-amor-para-mulheres-tristes.html) que, segundo o Autor se está directamente relacionado com
o grau de conformismo da população local.
Sobressai
ainda o paroxismo da dor em dois momentos narrativos, desencadeados
pala fatalidade. É, também, por essa razão, um livro catártico,
que fala de amor e morte, das diversas formas de amar,
independentemente dos condicionamentos impostos pela cultura. Um
livro cuja escrita implica um longo processo de cura, face a feridas
que ainda assim permanecem em carne viva, embora já não sangrem.
Somos o esquecimento que seremos
é uma história que expõe o choque da perda da inocência, em
detrimento da dolorosa aquisição da lucidez.
Cláudia
de Sousa Dias
21.11.2012-14.08.2013
2 Comments:
Um livro que amadurece durante 20 anos só pode estar no ponto!
Que bem escreves estas resenhas!
Beijinhos ;)
Obrigada!
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