“Myra” de Maria Velho da Costa (Assírio &Alvim)
“Myra” de Maria Velho da Costa
(Assírio &Alvim
Antes da leitura deste livro, devo
confessar que, de Maria Velho da Costa,
conhecia apenas a sua participação em Novas Cartas Portuguesas,
obra conjunta com Maria Teresa Horta e Maria Isabel
Barreno, sobretudo a
controvérsia gerada pela ocasião da sua publicação, no início
dos anos 1970, pelo forte abalo causado às actividades da censura
portuguesa, durante o governo de Marcelo Caetano.
Myra foi, assim, o
romance de estreia na minha leitura de Maria Velho da Costa e
que me deu acesso à sua “voz” interior. Ao aflorar as primeiras
páginas, deparei-me logo com uma escrita de uma profundidade
assustadora, onde o cenário como que nos esmaga e, ao mesmo tempo,
nos contagia ao contaminar-nos com uma angústia que é fruto da
constante incerteza, relativamente ao futuro dos dois protagonistas:
Myra, a criança de beleza extrema, filha de emigrantes de leste e
Rambo (que a menina pronuncia Rimbaud, como o poeta francês,
andarilho, o qual trocou a escrita e a fama pela vida errante de
marinheiro), o Pittbull Terrier, maltratado pelos seus proprietários,
que se transforma no seu amigo inseparável. O nome, pronunciado por
Myra com sotaque russo, torna-se premonitório, pois Rimbaud foi um
poeta tão inconformista e sequioso de liberdade que nem o impulso da
escrita conseguiu sedentarizá-lo, como acontecerá com estas duas
personagens. O mesmo espírito do Poeta parece animar este Rambô
tornado quase selvagem, uma
fera, por aqueles que desejam transformá-lo em instrumento usado nas
lutas de morte. Rambô só
se deixa prender pelo amor que lhe dedica Myra. A sua alma gémea é
a criança, colocada em perigo pela extrema pobreza, que a deixa
vulnerável, e pela beleza que lembra um farol em noite de
tempestade. É Myra quem liberta Rambo, sub-repticiamente, do jugo
dos seus opressores e que, com ele, e partilha a escassa comida de
que dispõe. Rambô é uma fera mas sabe o que é a gratidão. Os
dois transformam-se em eternos foragidos, excluídos da sociedade,
insubmissos e para sempre inadaptados. Só o amor lhes traz a
redenção. E o retorno ao Éden.
O romance desenvolve-se assim como uma
odisseia, onde o ambiente físico, o relevo da paisagem, a
meteorologia hostil e ameaçadora da cena de abertura, todo o cenário
estão construídos de forma a espelhar os sentimentos, os anseios,
os medos sentidos por Myra e Rambo, seu implacável guardião.
A narrativa é também desenvolvida
consoante os padrões da tragédia clássica,apesar de se tratar de
um romance ao invés de um drama.
Nesta perspectiva, temos três grandes
momentos que formam esta narrativa tripartida, como um concerto em
três andamentos ou,que, em teatro, corresponderia a três actos. O
primeiro, pode ser identificado com a fase em que se encontram os
protagonistas, ambos fugidos dos respectivos tutores que os
maltratam. O ritmo é acelerado como num movimento de abertura de uma
sinfonia ou de um concerto de três andamentos. Os acontecimento
decorrem, nesta fase, num cenário lúgubre, onde o sentimento
dominante é o medo, sobretudo em relação aos perseguidores de
Rambô, que se adivinham extremamente violentos, enquanto a beleza do
rosto de Myra parece surtir o efeito de um constante chamariz à
Fatalidade, ao colocar diante de si inúmeros obstáculos à sua
demanda: encontrar o refúgio nos braços de uma célula familiar
onde se sinta amada e protegida, pois é sempre confrontada com
figuras oponentes no seu caminho. Ao longo da sua odisseia com vista
a encontrar as sua terra prometida, Myra encontra neste primeiro
momento da narrativa, o sucedâneo de um lar, uma espécie de
protecção temporária em casa de uma artista excêntrica, que a
trata como uma espécie de animal doméstico não muito diferente de
Rambô ou, na melhor das hipóteses, como uma criada. A casa
da pintora proporciona-lhe apenas uma segurança relativa, uma vez
que se trata de caridade e não de verdadeira protecção. Naquele
lar, a criança é vista como um objecto que desperta a curiosidade
da sua “benfeitora”. O crescimento de Myra aumenta-lhe ainda mais
a vulnerabilidade pois acende o desejo carnal no amante da pintora,
expondo-a ao risco de abuso sexual. Mas é sobretudo a consciência
de Myra de que não é amada que a impele a continuar o seu caminho
em busca daquilo que verdadeiramente motiva a sua sede de viver: a
Liberdade e o Amor. Deste modo, a fuga de uma casa onde
aparentemente, tem o necessário para continuar viva, a que se junta
uma pequena vingança nemésica, marcam a transição para o momento
seguinte da narrativa, onde o ritmo se torna mais lento e o discurso
adquire uma tonalidade muito mais descritiva.
Neste segundo momento da diegese
notamos, como já foi referido, um abrandamento no ritmo narrativo,
como um movimento “andante”, numa peça musical. A tranquilidade
e abrandamento são condizentes com os sentimentos dominantes, nesta
segunda parte. Este é tempo do encontro com o Amor, o Sublime e o
Belo. A acção passa-se no Alentejo, numa bela casa-refúgio,
parcialmente escondida numa quinta, especialmente cuidada para ser
aprazível e garantir aos seus habitantes o abrigo das agressões
climáticas e, simultaneamente, das ameaças da sociedade. Há
também, naquele cenário idílico, uma atmosfera misteriosa como a
dos palácios encantados dos contos de fadas, a incluir serviçais
que aparecem e desaparecem misteriosamente, cuidando dos donos da
casa sem propriamente participar da vida deles, animais que se
comportam como humanos ou possuem alma, pensamento e vida interior
como os seus donos, não somente Rambo mas também a gata Brunhilde.
O desenvolvimento da narrativa nesta fase apresenta várias
semelhanças com a história do mito grego de Eros e Psique, uma vez
que é dado a entender que, para Myra, será talvez melhor saber o
menos possível da vida do seu misterioso benfeitor, um jovem belo e
misterioso, de cuja vida fora daquele lugar nada se sabe.
A casa e a propriedade que lhe está
adjacente assemelha-se a uma espécie de Olimpo ou Wahlhala, lugar de
repouso dos heróis, confirmado pelo nome da gata, Brunhilde (nome de
uma das valquírias da ópera de Wagner, “A Valquíria”), criando
assim uma ponte ou intertextualidade face ao cenário da ópera do
compositor alemão, já que a quinta parece ser uma espécie de
abrigo onde se recolhem os bem-aventurados. Todos os seres que
habitam aquela mansão parecem empenhar-se em contribuir para o
restabelecimento anímico de Myra e Rambo, ao contrário do que
acontecia no espaço habitado do momento anterior da narrativa, onde
os seus residentes se limitavam a assegurar-lhe a sobrevivência.
Este lugar é um oásis que funciona na como contraponto, pela via
contrastiva, face ao momento anterior, no qual dominava o deserto
afectivo e como protecção relativa a uma sociedade onde domina a
selvajaria, que encontra o seu paroxismo nos meios mais urbanizados,.
E é precisamente nas duas principais cidades do país, ou na sua
periferia, que se dão as cenas mais violentas do romance, já no
último momento da história.
A terceira parte decorre de uma
alteração brusca dos acontecimentos, obrigando os protagonistas a
deixarem o “paraíso” onde vivem, e a enfrentar o mundo real,
onde o acaso ou a predestinação faz com que se cruzem com a
fatalidade. A tragédia ocorre mediante o choque inevitável com um
mundo corrupto do crime organizado, infiltrado nas estruturas do
poder pela colocação de testas-de-ferro, encarregues de sujarem as
mãos, enquanto os autores morais dos crimes se escudam atrás dos
seus cargos e imagem de aspecto impoluto. Myra e Rambo rumam então
ao Porto – a cidade invencível, a invicta – onde, ao
enfrentar os seus algozes, fazendo jus à fama histórica da cidade
banhada pelo Douro, identificando-se com ela.
O estilo de Maria Velho da Costa
é marcado pela beleza das palavras sombrias e pela dura exposição
dos mais negros aspectos da natureza humana, que o homem comum
prefere, normalmente, ignorar: a impunidade, o tratamento do outro
como uma mercadoria, o desrespeito pelos seres vivos em geral, a
insegurança e os desregramento social que nascem da indiferença
social e se reflectem na falta de protecção aos mais débeis. No
entanto, a Autora, apesar da beleza plástica da linguagem, não se
coíbe de usar o vernáculo, ao dar a voz às suas personagens e
sempre que o contexto assim o exige.
Mas se, por um lado, a riqueza e a
força da escrita de Maria Velho da Costa reflectem um vasto leque de
intertextualidades – desde a semelhança da sonoridade em o nome
Rambo, pronunciado por Myra, que transforma um cão de luta de morte,
inspirado na célebre personagem do cinema norte-americano, Rambo,
em Rimbaud, no poeta de vida errante que perseguiu sempre a
ideia da liberdade absoluta a escolher uma vida sem amarras nem
residência ou pátria fixa, a Virginia
Woolf, quando a Autora escreve a partir do ponto através
do olhar do cão, como já havia feito a Autora britânica num dos
seus contos, ou coloca a androginia do namorado de Myra em destaque,
evidenciando a beleza daí resultante assim como as suas qualidades
humanas, tal como acontece com a personagem Orlando de VW.
Pier Paolo Pasolini também é aludido num dado momento da
narrativa, na segunda parte, como prenúncio ao ordálio que virão
os dois amantes sofrer no terceiro momento da história.
A vulnerabilidade social de Myra lembra
também situações semelhantes utilizadas por cineastas como Theo
Angelopoulos em Passagem na Neblina e Bahman Gobahdi
com As tartarugas também voam, embora estes não estejam
referidos no texto, pode-se contudo encontrar várias analogias com
situações presentes nas obras destes dois cineastas, nomeadamente a
situação de extrema pobreza vivida por Myra e as heroínas de palmo
e meio do grande écran, assim como a respectiva vulnerabilidade face
à acção de eventuais predadores sexuais.
Myra obteve, com total
merecimento, o Prémio Correntes d'Escritas 2009, num dia em
que Maria Velho da Costa se viu impedida de recebê-lo
pessoalmente, devido ao ciclone que nesse dia fustigou a Póvoa de
Varzim sob o aviso meteorológico de alerta vermelho, interrompendo
durante horas o funcionamento da linha férrea, os elementos em fúria
e tão hostis como no capítulo introdutório do romance:
«Myra atravessou os carris
desconjuntados em direcção ao mar.
Cresciam ervas e tojo e havia
chorões apodrecidos nas juntas e as traves e ferros estavam negros
das marés vivas sujas de crude. Corria contra o vento, procurando
saltar as arestas de cascalho e os cacos de vidro, pulando alto e
entreter frio e o seu desgosto.
O céu estava baixo e muito escuro.
Havia estrias roxas e verdes na distância mais clareada do horizonte
e pareciam, céu e mar, uma única onda a levantar-se para cobrir a
terra. Myra tirou os sapatos e as meias rotas e ficou parada a ver
aquele assombro. Se corresse por ali dentro, ninguém daria com ela
nunca mais, nem no país dali, nem em nenhum outro.
Assoou-se à bainha da saia e limpou
o resto da cara ao casaco esburacado que a mãe lhe fazia usar em
casa e que dizia que viera de lá. Myra lembrou-se da neve em cima
dos telhados de ouro e loiça. E os blinis que não tinham nome nesta
terra. Ao princípio nada tinha nome. E a avó, com ela pela mão,a
esconder-lhe a mão. Tanto medo.»
O livro lê-se à velocidade de um
relâmpago, com a mesma emotividade e angústia com que se viaja numa
montanha russa e a sensação permanente de se caminhar no fio da
navalha, onde o abismo ameaça engolir-nos ao mínimo passo em falso.
11.12.2012-11.09.2013
Cláudia de Sousa Dias
6 Comments:
Ando já há algum tempo com vontade de ler este livro. Acho que é desta.
De Maria Velho da Costa, também só as Novas Cartas Portuguesas, que me deixaram muita curiosidade de ler mais das três! Excelente crítica, como sempre!
Beijocas ;)
Cristina, vais adorar!
Madalena és sempre a mesma querida!
Outra visão deste magnífico livro é a de Teresa Sá-Couto, aqui:
http://comlivros-teresa.blogspot.pt/search/label/Maria%20Velho%20da%20Costa
Obrigada pela partilha da leitura! Também me sinto tentada a pegar em Myra.
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