“O livro do fim – Relatos, impressões de viagens, de lugares e das gentes que as habitam” de Jorge Fallorca (ed. de Autor)
Jorge Fallorca é, além de
tradutor reconhecido, como tivemos oportunidade de verificar no
post anterior, um escritor que gosta de criar ao seu próprio
ritmo, sem pressões editoriais, liberto da vampirizante máquina
do marketing. É natural do Concelho de Mortágua coladinho ao concelho rival de de Santa
Comba Dão, como já foi referido neste blogue, a propósito de dois
outros livros seus : A Cicatriz do ar e A Mulher Descalça.
Além destes dois livros, o primeiro de poesia e o segundo um
intrincado puzzle policial a que eu chamaria de protoromance
negro, publicou também Água tatuada (&etc, 1976), A
Luva in Love (Assírio & Alvim, 1977). Foram também
reeditados ao seguintes títulos, esgotados: Fruta da Época
(Frenesi, 2009), o já referido A Cicatriz do Ar (Blackburn ,
2001 e Ed. De autor, 2009), Entre Chipiona e Tarifa Teorema,
2002). Segue-se inéditos como Al-Khaim (Teorema, 2004), Blues
para uma puta velha, (& etc, 2010), Nem sempre a lápis
(Tea for one, 2011) e “A Mulher Descalça” (ed. De Autor,
2011). Jorge Fallorca é, também, autor do blogue
nemsemprealapis.blogspot.com
O Livro do Fim, que dá
título ao post de hoje, fala de caminhos percorridos por um
escritor andarilho, uma figura que já foi projectada e obras
anteriores. Desta vez o protagonista sem nome, não estando integrado
em nenhuma trama policial, como em A Mulher descalça, é
apenas a alma errante cujo discurso na primeira pessoa, dentro de uma
escrita diarista, denuncia na voz do locutor uma insaciável sede de
viver e fome de vida que vai devorando ou bebendo nas suas diversas
formas, das fontes que jorram dos lugares por onde passa e das searas
de onde germina o pão, fabricado pelas mãos locais.
As cores da paisagem, casas moldadas,
às vezes envelhecidas pelas intempéries ou cuidadas pela amorosa
mão humana, cães, semi-vagabundos, a verem passar as horas
deitados à soleira das portas, ouvindo o indolente zumbido dos
insectos, nas tardes de canícula. Todas estas impressões são
transpostas para as folhas de papel de um caderno, escrito quase
sempre a lápis, formando um pequeno livro de viagens, contendo uma vívida galeria de detalhes, as quais vão
formando quadros animados, embora de movimentação lenta, como num
andante num concerto de Vivaldi, . Mas, ao mesmo tempo
o discurso narrativo é, simultaneamente, dotado de um inequívoco
realismo, que se evidencia na qualidade documental dos textos, a
descreverem o Portugal rural do Sul, até ao Mediterrâneo, no início
do século XXI, chegando a passar a fronteira e, depois para lá do
Estreito de Gibraltar. A cor e o movimento vão dotando a escrita de
Jorge Fallorca da dimensão de um realismo impressionista,
lembrando cenas animadas mas plenas de tranquilidade captadas por
Degas ou Matisse:
« As mulheres bebiam chá pelas
cabaças, e os homens conciliados em redor da fogueira, contavam
histórias».
Mas, nalguns trechos, o surrealismo de
Dali está também presente:
«As aves de rapina sobrevoavam a
planície, soltavam gritos que fugiam pela aridez do vale, imenso.
Alguns ficavam presos nas árvores raquíticas, as crianças
reflectiam-nos como um 'cântico hipnótico'».
A correspondência entre o grito das
aves de presa (águia, falcão, bútio, milhafre), a percorrer a
planície, transmite simultaneamente a aridez e a desolação locais
mas também a vida das regiões do Mediterrâneo em pleno processo de
desertificação, salientado-se a solidão imensa que emana da voz do
narrador.
O animismo que projecta atitudes
humanas nas árvores, e outros elementos vegetais ou, nalguns casos
minerais, está aqui muito visível no no acto de aprisionar o grito
– de agonia ou de alegria? – das aves , atenuando-o. Por outro
lado este som é, repercutido e reproduzidos pelos guinchos que
acompanham as brincadeiras das crianças das povoações
circunvizinhas, ecoando nas pedras, no território que o homem,
lentamente, vai ocupando, invadindo o habitat até aí, ocupado por
outros seres.
Enquanto isso, a paisagem natural
apresenta-se, por seu lado, viva, animada por características de
sensibilidade próprias do homem, mesmo quando este se encontra
ausente, como se a própria Mãe Terra fosse um corpo humano gigante.
Uma Terra com voz própria. E Alma. Gea, a titã, como que respira
nos textos de Fallorca, exalando o seu esplendor numa paleta de
verdes e ocres:
“Nas fissuras do prado, latejam
flores de enxofre.”
Nesta dicotomia entre a paisagem
natural e aquela que foi modificada pela mão do Homem, a presença
humana encaixa-se num quadro mais amplo, que engloba todo o
ecossistema do qual ele faz parte, dando vida aos rituais do
quotidiano e moldando o ritmo das horas, nas tarefas de todos os
dias:
“...os homens cortam o ferro, com
gestos cadenciados, o gume da gadanha a embalar o prado”.
Os dias parecem declinar, à medida que
as impressões são recolhidas e registadas no papel, traçando-se a
rota da viagem, percorridas pelo narrador e protagonista que goza da
clássica liberdade do povo romani. O despojamento e a imensa
solidão, demonstradas no afastamento da sociedade para melhor a
observar, denunciam também a recusa da sociedade de consumo, a qual
transparece das entrelinhas de cada micro-texto deste “livro do
fim”. Um “fim” que nunca chega, pois trata-se realmente de uma
história interminável: a de salientar a beleza extrema e inóspita,
de uma natureza ainda pouco tocada pela civilização industrial,
pela selva de betão-armado, pelo progresso. Onde são retratadas a
vida dos “homens simples”, um pouco como o “bom selvagem” de
Jean-Jacques Rousseau, o oposto do homem moderno, fruto de uma
sociedade que perverte a sobrevivência.
O Livro do Fim será
assim, antes de mais, o ponto de fuga, no quadro da vida terrestre,
da qual faz parte um homo sapiens sapiens (ao qual eu acrescentaria
em alguns casos, uma sub-sub variedade denominada sans sapientia),
visando sempre o horizonte, para lá do sistema doentio, que priva o
homem da Liberdade, o Bem Supremo.
07.05.2013-05.09.2013
Cláudia de Sousa Dias
5 Comments:
Beijo :)
Beijo e felicidades para novas publicações ou reedições.
Obrigado, Pantera :)
E terás conhecimento se e quando chegar a altura
Obrigada...!
beijos, também.
Tenho mesmo de ler Jorge Fallorca, quem sabe ainda este ano!
Beijocas, boa semana!
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