“O Anibaleitor” de Rui Zink (Teorema)
Para quem ainda desconhece o facto, Rui
Zink é docente de Estudos Portugueses na Faculdade de Ciências
Sociais e Humanas na Universidade Nova de Lisboa, função que
acumula com actividade de escritor, apesar de, para muitos continuar
a ser um dos intervenientes do programa televisivo A noite da má
Língua, um sucesso de audiências da SIC nos anos 1990. Mas
aquilo que, muitos dos que viam o programa – cujo protagonismo Rui
Zink partilhava com Júlia Pinheiro e Miguel Esteves
Cardoso – ignoram, é
que, quer a sua obra ficcional quer a ensaística, publicitadas de
forma algo discreta no país, se encontram traduzidas em várias
línguas pelo mundo fora e que em 2009, Rui Zink recebia
o Prémio Ciranda pelo
seu romance, intitulado O
Destino Turístico na
altura em que dava aulas na Universidade de Dartmouth no
Massachussets.
O romance/novela de que aqui tratamos,
O Anibaleitor, tem por base a história de um jovem que
foge de casa e embarca numa viagem fantástica, num navio cujo
capitão persegue um animal de características míticas e,
simultaneamente, paródicas, dando início a uma conturbada odisseia.
Segundo o Autor, esta história foi
construída como um verdadeiro patchwork ou “manta de retalhos”,
onde “um texto pode esconder outros”. Ao longo da trama alude-se,
directa ou indirectamente, a várias obras literárias, em
cumplicidade com o leitor, cuja memória literária está
constantemente a ser espicaçada pelas inúmeras intertextualidades
em que vai tropeça à medida que avança na trama. A mais evidente –
além do trocadilho do título com a personagem do filme
O Silêncio dos
Inocentes, baseado no romance de Thomas Harris,
Hannibal Lecter. Mas o psicopata canibal deste livro é um pouco
diferente: trata de espalhar o terror aos devorar os inocentes
silenciosos que são as vozes dos autores amordaçadas pela falta de
quem os leia – é a analogia que fazemos da viagem do fugitivo
adolescente com a viagem empreendida pelo capitão Ahab de Moby
Dick de Hermann Melville, sobretudo no momento em que o
arpoador Quequeg salta das páginas do autor anglo-saxónico para o
barco onde o jovem ingressa como clandestino. Também A Caça ao
Snark de Lewis Carroll se encontra presente nas
entrelinhas de “O Anibaleitor”, durante o tempo da
travessia. Da mesma forma, o gigantesco símio “Kong” de King
Kong de Marion C. Cooper, um romance que ficou
mundialmente conhecido pela sua adaptação ao cinema. As semelhanças
físicas deste Anibaleitor com o King Kong de Cooper
– um símio gigantesco – são notórias, mas esgotam-se no
aspecto físico. O Anibaleitor de Rui Zink é um monstro que
se deixa encantar pelo poder da palavra, daí a sua estranheza e
desadequação a um mundo onde as pessoas cada vez mais deixam de ler
e as que o fazem passam a ser olhadas como seres aberrantes e, por
isso, excluídas e, e último grau, perseguidas. Outra
intertextualidade mas agora por via da Fonética, esta patente no que
diz respeito ao nome desta personagem, e da rima ou aproximação por
via da sonoridade com a personagem Adamastor, a qual figura n'Os
Lusíadas.
O adolescente, ao empreender a viagem
como clandestino no barco que visa perseguir e aprisionar o
Anibaleitor, fá-lo com o intuito de fugir ao controlo dos pais e ao
peso das obrigações escolares, encontrando assim a oportunidade de
fuga à rotina, aos horários, aos prazos de entrega de trabalhos de
casa e, claro está a todo um sistema de regras a que tem de se
submeter, pelo simples facto de frequentar uma escola. Mas não só.
Pretende também evadir-se do ambiente familiar algo pesado onde
reina a anomia, em vias de se desestruturar pela contradição vivida
pelo facto de os pais não estarem a atravessar uma fase pacífica no
que toca ao relacionamento. A evasão é a solução para a
instabilidade e um ambiente familiar onde impera a incoerência de
comportamento entre os cônjuges e a falta de diálogo.
Este romance juvenil, que está
incluído no Plano Nacional de Leitura, pode servir de espelho a
muitos adolescentes que provavelmente se encontrem a viver situações
similares. No entanto, as inúmeras referências literárias com que
o leitor se depara ao longo da narrativa, poderão já interessar
senão a um leitor um pouco mais maduro, pelo menos aos jovens que
sejam, já, detentores dessas mesmas referências, ou seja que tenham
já lido ou ouvido falar dos livros que são mencionados no texto, ou
ainda visto os filmes neles neles inspirados de forma a reconhecer
essas mesmas alusões que são mencionadas no texto. O mesmo acontece
com a citação de passagens de canções, como no em que o jovem
trauteia uma canção dos GNR Dunas ou o
narrador refere que no regresso o aguarda uma jovem de olhos
castanhos “de encantos tamanhos” um trocadilho com o fado cantado
por Francisco José. Trata-se de alusões que as gerações
mais recentes poderão desconhecer por completo.Poderá também
passar despercebida para alguns a alusão implícita à obra As
Aventuras de João Sem Medo de José Gomes Ferreira ou dos
Esteiros de Soeiro Pereira Gomes assim como àquela que
remete para o O Dinossauro
Excelentíssimo de José
Cardoso Pires ou ainda para O Malhadinhas de
Aquilino Ribeiro e até mesmo O Labirintodonte de
Alberto Pimenta. De qualquer forma, este O Anibaleitor
pretende, sem dúvida, retirar os livros de autores que eram
lidos e amplamente divulgados dentro do curriculum escolar há cerca
de três décadas atrás, das prateleiras empoeiradas das estantes de
bibliotecas públicas e privadas.
Personagens e Trama
Relativamente à caracterização das
personagens, o protagonista é-nos apresentado como um adolescente
rebelde, que tende a meter-se em sarilhos enquanto os pais se
distraem com as suas guerrinhas pessoais.
Quanto à localização da acção no
tempo, trata-se de uma história passado no início nos anos oitenta,
obrigando-nos a recuar cerca de três décadas, mas que poderia
perfeitamente passar-se nos nossos dias.
Na primeira parte do livro, intitulada
“A Viagem”, o leitor embarca numa aventura marítima com
sabor a clandestinidade e cheiro a perigo, naquilo que poderia ser
uma versão juvenil de um romance marítimo de Joseph Conrad ou
Edgar Allan Poe mas num discurso paródico. O lado de sátira
deste romance-novela está patente na forma como são descritas pelo
narrador certas atitudes das personagens ou características
psicológicas. Uma das mais desconcertantes – e hilariantes – do
romance é a forma como o narrador se refere ao capitão do navio,
cujo discurso se assemelha, curiosamente a alguém que já foi
encarregue por várias vezes pelo povo português de comandar o navio
que é a nação portuguesa, em riscos de afundamento:
«O Capitão pouco saía dos seus
aposentos. Às vezes, eu entrevia pela janela a mão dele, apoiada
num mapa cor-de-terra, os dedos tamborilando ao lado de uma taça de
vinho, como se estivessem com febre miudinha.
Quando o capitão vinha à proa,
parecia por vezes o única a caminhar direito, pois o seu coxear
lembrava por vezes o balanço do barco. Era estranho vê-lo muito
firme, muito sério, naquele ininterrupto carrossel. O capitão não
era mau homem: tinha apenas a irritante mania de achar que nunca se
enganava e de raramente ter dúvidas. Na altura, como eu era miúdo,
até achava que essa era, se calhar, uma qualidade essencial para se
ser capitão. Hoje já não penso assim e, creio, o capitão também
não.»
A viagem começa a adquirir uma
estranha dimensão surrealista a partir do momento em que o grumete
descobre que o porão do navio onde viaja transporta uma grande
quantidade de livros que revestem o respectivo lastro. A intenção
do capitão é a de atrair o Anibaleitor, o monstro terrível
devorador de livros e homens e capturá-lo a todo o custo, tal como o
capitão Ahab fez com Moby Dick. Este Anibaleitor adquire as
características dos seres mais terríveis dos clássicos da
literatura universal partilhando os instintos assassinos do monarca
marido de Sherazade das Mil e uma noites
as quais acumula com instinto canibalesco de Hannibal
Lecter de Thomas Harris a quem não souber entretê-lo com uma
boa história. Apesar de, na verdade, o Anibaleitor gostar mais do
que tudo, de devorar...livros.
O capitão, tal como o Ahab de
Melville, deseja aprisionar o monstro para depois exibi-lo como
troféu. Toda a segunda parte é conduzida no sentido de desvendar o
verdadeiro objectivo da viagem e o que espera os tripulantes do
navio.
A terceira parte inicia com o regresso
da ilha onde se encontrava o Anibaleitor, em cujo discurso
encontramos ecos da célebre Carta de Pêro Vaz de Caminha a el-rei
D. Manuel, após a descoberta do caminho marítimo para a Índia,
passando pelo Brasil. A recepção, à chegada a Lisboa é festiva e
os marinheiros têm muito para contar.
O final sugere o lançar de sementes
para a proliferação de inúmeros “Anibaleitores”, transformados
de monstros, bárbaros e violentos em seres adoráveis, pelo poder da
magia das palavras contidas nos livros.
Em suma, O Anibaleitor
é uma parábola bem disposta contada num estilo ligeiro mas
cheio de humor inteligente que se destina a jovens e adultos com
vista à reflexão através do riso. Uma leitura de férias, para
qualquer “anibaleitor” em potência “devorar”, durante uma
curta viagem de comboio ou avião.
Desfrutem, então. Ou degustem, como
preferirem.
27.12.2012-28-09-2013
Cláudia de Sousa Dias
2 Comments:
Muito interessante mesmo este livro!!!
De facto, quem se apresenta de forma simples ou humilde é pouco considerado no nosso país. Usasse Rui Zink uma gravata ou um colete caqui acolchoado e a história era outra ;)
Beijinhos e bom domingo!
É verdade. Tem um bom domingo, M.! bjos
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