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Monday, March 31, 2014

“Deusas Ex-Machina” de Alberto Pimenta (Teorema)




A obra de Alberto Pimenta estende-se pela poesia, prosa e ensaio, formando um vasto conjunto que, ainda assim, é muitíssimo pouco divulgado em Portugal. Leccionou Português em Heidelberg, contratado pelo Governo, em 1960. No entanto, mediante a oposição por ele manifestada face ao regime fascista foi demitido em 1963 passando a ser, a partir dessa data, contratado directamente por aquela Universidade alemã onde ficou a trabalhar até 1977, altura em que decide então regressar a Portugal. A sua obra poética foi reunida num único volume em 1990, mas a partir dessa data produziu já mais de uma vintena de volumes inéditos de poesia. Na prosa, é um pouco menos prolífico, mas mesmo assim destacou-se em 1977 com o volume Discurso sobre o Filho-da-puta, editado pela Teorema e traduzido para a Língua italiana e para o Castelhano.

Na categoria de ensaio, da obra deste Autor destacam-se O Silêncio dos Poetas lançado originalmente no ano de 1978, em Itália, e publicado em Portugal em 2003, numa edição revista e ampliada. A obra A Magia que tira os Pecados do Mundo foi classificada como anti-platónica, dividindo-se em vinte e duas partes, cada qual correspondendo a uma figura do tarot para falar de mitos e arquétipos na Literatura.
Alberto Pimenta ocupa, dentre os autores europeus contemporâneos, uma posição considerada de vanguarda, devido ao carácter crítico e insubordinado da sua escrita. Mas a partir da década de 1990,a temática presente na sua obra passa a referir-se maioritariamente a fenómenos relacionados com a globalização, parodiando ora discursos publicitários ou relacionados com a internet, como é o caso de Ainda há muito para fazer, ou sobre as consequências da guerra do Kosovo e as fragilidades da União Europeia. Em 2005 lança Marthya de Abel Hamid segundo Alberto Pimenta, um volume de poesia, onde alude à invasão do Iraque pelos EUA.

Devido sobretudo ao carácter experimental da sua obra e também às suas temáticas preferenciais, onde o inconformismo chega a raiar a insubordinação, Alberto Pimenta tornou-se um Autor polémico, gerando controvérsia dentro do meio académico português. Actualmente, é professor aposentado na Universidade Nova de Lisboa.


Deusas Ex-Machina de que hoje aqui falamos é um livro heterogéneo que assume a forma de crónica, diário ou relato. É composto por três obras do Autor, reunidas num único volume e que tinham si anteriormente publicadas como: As Quatro Estações (1984); Primeira Parte da Divina Multi(Co)Média (1991); e Reflexão do caos (1997). Nesta obra conjunta destacam-se o sarcasmo, a lucidez e, claro, o omnipresente discurso inconformista que caracteriza a prosa de Alberto Pimenta.

Nesta edição, as três narrativas apresentam, no entanto títulos diferentes. A primeira, “Deusas ex-Machina”, que dá também título ao livro, é introduzida com um texto absolutamente provocatório, descrevendo o quotidiano – e o pensamento! - de um feto dentro do útero materno. O discurso neste trecho em surge-nos como uma voz distinta das restantes que compõem a narrativa, apresentando-se em itálico, de forma a criar o contraste com a outra voz narrativa para assim tornar mais perceptível a alternância entre os narradores.

O narrador principal desta primeira parte deste Deusas Ex-Machina encontra-se a viajar a bordo de um avião onde conversa com outro passageiro (aliás, ao longo de todo o livro, nas três narrativas há sempre a ideia de movimento, de mudança de espaço geográfico bem como troca de confidências com um ouvinte de ocasião, apesar de o interlocutor, na segunda parte, não ser um completo estranho para o narrador, como iremos adiante verificar). O tema de conversa é um acontecimento insólito, presenciado pelo Locutor-narrador, que narra ao companheiro de bordo uma história bizarra, acerca da qual não se sabe muito bem se se trata de um acontecimento real, da percepção distorcida de um facto ou um sonho. O conteúdo onírico da narrativa capta o ouvinte-alocutário, companheiro de viagem, o qual regista tudo, como se de um psiquiatra de tratasse e estivesse com um utente numa sessão de psicoterapia. O discurso é todo ele conduzido, pelo ouvinte que adquire, por vezes, a posição de locutor para fazer pequenas intervenções no sentido de orientar a conversa e o rumo da narrativa como numa sessão de psicanálise informal. O discurso produzido pelo locutor principal pode ser perfeitamente o resultado um delírio, motivado por um estado de consciência que foi alterado por acção química ou pelo sono. Daí o teor surrealista do discurso principal, contraditório, por vezes absurdo onde habita o nonsense, cheio de elementos de cariz sexual, com evidente ligação a Freud e a Jung, no tocante aos arquétipos que são introduzidos no texto sob a forma de alegoria. Por exemplo, a figura arquetípica da Mãe, a representar a Deusa Gea, é mostrada comoforçadamente passiva na sua espera em ser fecundada. Toda a cena relatada pelo passageiro é uma alegoria à repressão da sexualidade feminina, típica da cultura judaico-cristã – note-se que a mulher está com os pulsos amarrados à mesa enquanto é possuída ( em sonho?) pelo protagonista, apresentando-se rodeada de toda a casta de instrumentos e utensílios que oprimem a figura feminina. O teor algo sado-maso da do cenário contudo aproxima-se do ambiente criado por Angela Carter no romance As Infernais Máquinas de Desejo do Dr. Hoffmann e também dos escritores do Surrealismo, onde esta protagonista feminina de Pimenta nos aparece como detentora de façanhas sexuais pouco credíveis ou exequíveis. A narrativa, de conteúdo inequivocamente dialógico, com interferências ocasionais de uma terceira voz, normalmente a hospedeira, a qual surge como uma voz disruptiva, proporcionando à narrativa um ritmo mais sincopado, quebrando a monotonia de uma fala demasiado longa e permitindo, simultaneamente, uma série de faits-divers. O teor da narrativa chega a tornar-se incómodo, sobretudo para o leitor feminino, nesta primeira parte, uma vez que põe em cena vários elementos culturais heterogéneos ao fundir elementos da mitologia greco-latina com a tradição judaico-cristã, mas sempre com cheiro a sangue e tortura ginofóbica. Alberto Pimenta coloca em evidência neste “Deusas Ex-Machina” algumas questões incómodas como o papel da Igreja no exercício da dominância masculina, relacionado com o desejo atávico de controlo do erotismo feminino, de forma a que este, no estranho sonho do protagonista, acaba por se transfigurar numa espécie de síndrome de Estocolmo, ao exprimir a forma masoquista do desejo verbalizado de auto-mutilação. O narrador principal desta primeira parte de Deusas Ex-Machina assume o papel de uma espécie de Ovídio mas cujas descrições são revestidas de um humor ultra-negro, cruas, cirúrgicas, tal como as minuciosas operações de tortura especificamente dirigidas a mulheres a mando de um qualquer Torquemada.

A segunda parte adquire nesta edição o nome de “Só Plágios” e é talvez a mais complexa dos três relatos que compõem este volume, devido à constante mudança da localização espácio-temporal ao longo de toda a narrativa. Nela, damo-nos conta da mudança abrupta do discurso logo no primeiro parágrafo, criando um forte contraste com a primeira parte. Aqui a escrita assemelha-se à estrutura de um diário, apesar da subversão completa da ordem temporal. Isto é, os registos não estão organizados de forma linear, em termos cronológicos, sendo que é frequente que as datas de entrada demonstrarem vários avanços e recuos no tempo. Este tempo da narrativa oscila entre 1937 e 1996, coincidindo, na sua maior parte com o período em que o Autor lecciona em Heidelberg até ao regresso a Portugal. A intenção do Autor será a de estabelecer um paralelismo entre diferentes momentos históricos ao longo doa últimos cinquenta anos que antecedem a data de 1996 e em diversos pontos da Europa tais como Portugal, Itália e Alemanha sempre numa óptica comparativa, abarcando o período que Alberto Pimenta leccionou na Alemanha, o regresso a Portugal com algumas incursões por Itália entretanto.

A pergunta contida na epígrafe desta narrativa prepara o leitor para o tema principal contido neste texto: o protagonista que é também o narrador regressa ao seu país de origem - Portugal, neste caso – deixando evidente uma profunda desilusão pelo facto de lhe parecer que os anos passam em vão para o País, onde tudo parecer permanecer igual, independentemente da evolução tecnológica ou da mudança de regime político.

Que estou eu a fazer aqui de novo?

Aqui” e de “de novo” são dois modalizadores: o primeiro, de espaço e, simultaneamente de tempo, indicador de proximidade, é o local onde se encontra o narrador-locutor no momento em que conta a história; “de novo”, implica um regresso, uma repetição algo que acontece de forma recorrente mas à qual está subjacente a ideia de ausência de mudança, como se esse lugar de regresso fosse um charco de água estagnada. As referências temporais após o ano de 1977 – ano que marca o regresso de AP a Portugal – dão-nos uma descrição do país que atesta isso mesmo e que o Autor evidencia, quase sempre, de forma caricatural. O objectivo é o de exprimir o choque e a indignação pela constatação do atraso do País face àqueles que são considerados “desenvolvidos” na Europa Ocidental. O Autor, pela voz do narrador visa, sobretudo, atingir o primitivismo da mentalidade, a rudeza e a falta de civismo mas, acima de tudo a desconfiança acerca daquilo que se desconhece. Ou seja traça o retrato ou, se calhar, a caricatura de um povo habituado a viver no medo. Subjugado.


«Entrei pela fronteira de Bragança. Tudo vazio. Esperava-nos um guarda-fiscal no meio da estrada, de pernas muito abertas, virado para o nosso lado. Quando chegámos, a cinco ou seis metros, escarrou.

Ora bem, ai está uma coisa que os animais não sabem fazer, à excepção do lama, segundo parece.»


Na equiparação do guarda-fiscal ao lama está implícito um violento sarcasmo, dentro do qual se inscreve um profundo desprezo e repúdio pelo hábito, frequentemente observado em Portugal, de cuspir para o chão.

Mais adiante prossegue:

«Na praça central de Bragança, oitenta ou noventa homens, encostados a toda a volta, quase todos de pau na mão e samarra pelas costas.

Aí está outra coisa que os animais não usam, a não ser ao natural e no corpo todo.


(…)

Ao passar por Coimbra, uma bicha de cerca de cinquenta metros, estendia pelo passeio a sua fronteira ao Parque.

Outra coisa que só os animais de circo conseguem e com dificuldade. E muito treino, claro.

Na aldeia onde parámos, em visita a pessoas da minha família, o amigo que vinha comigo foi dar um passeio a pé.

Quem o encontrava, perguntava-lhe quem era e o que fazia ali: queria a resposta.

Exigia. Ameaçava com o olhar.

Os animais cheiram-se, claro.»


De entre as várias situações aqui descritas, o Autor recorre a várias estratégias discursivas: na primeira descreve um comportamento individual que o choca por estar diante de uma figura de autoridade que enverga uma farda e da qual ele não espera tal comportamento tão pouco civilizado, mas que se assemelha antes a uma besta de carga, habituada a viver em locais inóspitos e inacessíveis. Aqui a dimensão antropológica do homo lusitanus é integrada numa dimensão mais ampla, a etologia, já que o homem é, ele também, um animal que, encontrando-se a viver num meio marcadamente hostil (o país sofrera dez anos com a guerra colonial e saíra, dois anos antes, de uma revolução da qual só por acaso, não foi derramado sangue), ameaçador, próprio de uma sociedade fechada, sente-se ainda dominado pela lembrança recente de um regime autoritário. Daí a comparação aos animais circenses, amestrados e sem vontade própria, no comentário acerca das filas (bichas) intermináveis em Coimbra, e da desconfiança, própria de animais selvagens face a um estranho ou estrangeiro que lhes invada o território.

Mas parte da acção de “Só Plágios” situa-se também em Itália. O narrador fala – em várias entradas deste mais do que atípico diário ou, se assim o quisermos chamar, compilação de relatos de viagens –, com um sujeito que se percebe ser crítico de arte e a quem chama Zezzos. Num destes relatos, ambos os interlocutores encetam um diálogo, ao longo do qual trocam impressões sobre a evolução do conceito de Arte ao longo do século XX e dos diversos movimentos estéticos que perpassaram ao longo das décadas, de onde se depreende que o crítico italiano crê ser a arte contemporânea uma espécie de depuração, em alguns casos, ou amplificação em outros, da obra de artistas de épocas anteriores, que define como uma “duplicação original”, um termo aparentemente contraditório, mas que esconde em si uma acutilante ironia face a um aparente esvaziar de ideias e criatividade estilística, que entende encontrar em muitos artistas contemporâneos. A data de 1978 descreve uma viagem a Itália, na qual o narrador se encontra com o crítico de arte.

1978: Para Zezzos, os lemas da crítica italiana eram três: se o ignorarmos, ele não dura muito. Depois: tudo o que ele diz já foi feito doutra maneira. E ainda: dentro do género, os mais autênticos ainda foram os primeiros.

Zezzos conhecia relativamente bem Portugal. Não estaria a confundir?De resto a máxima é sua:

no jardim à beira-mar; um ébrio
conduz outros ébrios
eles não se apercebem, claro está”.

Neste excerto, Alberto Pimenta usa Zezzos não apenas para descrever a atitude dos críticos italianos face à inovação artística e à emergência de novos nomes no campo das artes, mas dá também a entender que o mesmo se passa em Portugal, ao usar a pergunta retórica com valor de afirmação: “Não estaria (Zezzos) a confundir?” A limitação a três formas de receber um novo artista no meio por parte dos críticos italianos (e se calhar pelos portugueses) que é apontada por Zezzos parece contudo denunciar um certo distanciamento desta postura de grande conservadorismo e aversão à mudança. A adopção desta atitude descrita por Zezzos acerca da postura dos críticos italianos é por eles justificada para evitar o esvaziamento de conteúdo nas Artes, desde a Literatura ao Cinema e às Artes Plásticas. No entanto a forma irónica como ambos os interlocutores se lhes referem, dá a entender que o narrador principal se distancia deste tipo de posicionamento.

No ano de 1996, o narrador alguns anos já a viver em Portugal, parece notar uma ligeira estagnação no País a contrariar os anos imediatamente anteriores ao longo dos quais parece ter havido expansão e crescimento:

«1996: Aos chegar aos doze sustenidos e doze bemóis, partindo do dó em direcções opostas, as escalas encontram-se no mesmo dó

Nesta metáfora, Alberto Pimenta usa a sua personagem para chamar a atenção para o perigo de, após algumas (poucas) décadas de democracia, o risco do País vir a cair na armadilha que pode levá-lo à ditadura.


Só Plágios e Traições” é o título da terceira parte do livro na qual se dá uma espécie de fusão entre as situações ocorridas na primeira e na segunda parte. A acção desenrola-se novamente em viagem, mas desta vez de comboio. E, tal como na primeira parte, temos dois interlocutores: o narrador principal e o narrador que é citado pelo anterior, o qual está presente nas três narrativas. O narrador empírico, isto é, aquele que é citado pelo narrador principal e com o qual entabula o diálogo no comboio, é um completo desconhecido. Ambos os viajantes nunca se viram antes, mas trocam confidências. A voz do narrador principal é distinguida graficamente pelo recurso ao itálico, actuando como uma voz em “off” num estúdio ou como ponto ou mesmo didascália numa peça teatral. Mal trocam algumas palavras o companheiro de viagem passa então a “despejar” uma impressionante verborreia, captada pelo interlocutor que, mais uma vez se coloca numa posição semelhante à de um psicanalista, deixando o “paciente” divagar sobre os temas que lhe são mais próximos ou que o preocupam, limitando-se o narrador principal – que se apaga da cena durante a maior parte do tempo – a incentivar o seu interlocutor a falar:


«O Comboio saiu de Campanhã e, passado pouco tempo, o homem que jazia no banco à minha frente disse: 'Isto já não é o que era.'»

Na frase citada pelo narrador principal (L1) reproduzindo a fala do seu companheiro de viagem (L2), está implícita uma critica social e política, a qual é clarificada nos parágrafos seguintes. A estratégia desta alternância a duas vozes é usada como forma de apagamento enunciativo permitindo quer ao Autor quer ao locutor beneficiar de um certo distanciamento do ponto de vista que é apresentado no livro de forma a não pressionar o leitor a aderir à posição apresentada pela personagem. O distanciamento de L1 que se limita a citar o seu interlocutor, permite ao leitor apreciar os factos por si, adquirindo o seu discurso maior credibilidade confere ao narrador principal.

Alberto Pimenta pode ser considerado, para muitos, um autor incómodo, por obrigar o leitor a pensar “fora da caixa” ou pelo estilo provocatório ou ainda quando tenta implodir alguns tabus relacionados com a sexualidade ou determinados estereótipos.

O que só vem reforçar ainda mais a pertinência da leitura deste e de outros livros do Autor.


01.08.2013- 09.02.2014

Cláudia de Sousa Dias

2 Comments:

Blogger M. said...

Tenho mesmo de o ler! Não admira nada o incómodo que possa causar, e certamente causa! Tende-se a tentar silenciá-los, aos diferentes.
Beijinhos ;)

5:09 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

Ahahah...!

Se causa, M.

Beijinhos


CSD

5:16 PM  

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