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Wednesday, March 05, 2014

“Domingo no Corpo” de Aurelino Costa (Deriva)

Esta é uma Poética de poesia de fruição, que trata da indolência das tarde dominicais e portadora do vírus do inconformismo, que nasce da reflexão, do pensamento, da observação do Outro nos seus rituais do quotidiano, em interacção com o seu semelhante e todos os elemento anímicos e inertes que rodeiam o sujeito poético.



Serão aqui explorados e cruzados vários olhares incidentes sobre a poesia, simultaneamente bucólica e litoral, de Aurelino Costa onde encontramos os ecos do lirismo contemplativo Álvaro de Campos e da provocação e onirismo de Mário Cesariny, que se repercutem num ócio dominical que se instala no corpo, permitindo ao Poeta ser permeável a todo um mundo de impressões sensoriais. Onde o sentimento interno de revolta cria um forte contraste com a imutabilidade permanente do meio onde se sai a voz que dá a voz às palavras do Poeta e que constitui o seu campo de observação, no dia consagrado ao descanso, ao lazer, à paragem, quer vocacionada para a fruição quer para a reflexão.



as tardes de domingo (…)



sair de casa (…)



e voltar a ela, sem vontade de fazer nada.
(…)



e adormeço assim num silêncio quente



gosto de não existir neste tempo.



(…)



eu não entendo nada.



talvez, por isso, pareça



poesia.






Porque a Poesia pode não ser para entender , mas apenas para sentir, para fruir, privilegiando a sensação, numa óptica, epicurista.



Para a crítica literária Armandina Maia, a poesia de Aurelino Costa é simplesmente “poesia no corpo”, que «nasce de contradições nunca resolvidas: o passado/ presente que o devora e o futuro perigosamente enlouquecido que o rodeia...» Também no tocante à construção da imagem do ideal feminino, a mesma Autora identifica na poesia de Aurelino Costa trechos sobre mulheres, as quais “ realizam a proeza de existirem, rasgando todos os impérios para defenderem as suas crias, os seus mortos”. Dentro desta perspectiva podemos dizer que sobressai, sem margem para dúvidas, o dramático poema As Mulheres de Luto, pela gigantesca capacidade evocativa da imagética face ao drama quotidiano das mulheres poveiras da famílias dos pescadores, pela tragicidade nela contida que confere à poesia de Aurelino a beleza dramática dos antigos poemas Áticos.



As Mulheres de Luto



as mulheres de luto soltam
saias
não se compadecem
com brilhos subalternos



mascam a sardinha e o sargaço
não temem os ventos aspirais dos cérebros
mal dos velhos
em quilhas e madeiras secas de vis sacodem
a côdea,



não cospem ou latejam acenos
nas malgas sobre os joelhos
entornam os caldos de solda



Vão longe os beijos
inscritos nos cascos



cortados olhares secos



a remos o roliço
da língua



mulheres de sem retorno



mar



praças



ancas e lanternas em gamelas
apregoares de lesmas e têmperas enlatadas
volvem agora em oásis.



uma inscrição na testa derrama óleos.



Daqui sobressai a altivez e insubmissão ao Destino, à Fatalidade, nestas mulheres que permanecem no seu posto como estacas e às quais se atracam os barcos dos seus homens, mas também o seu estoicismo, a que se junta uma incomensurável capacidade de resistência ao sofrimento, que não deixa de as marcar de forma indelével. No mesmo poema, está também presente a contenção da dor até ao último momento, quando a morte ronda, no ritual da extrema unção, onde é silenciada a dor da memória dos que nunca chegam a regressar.



No geral, a poesia de Aurelino surge-nos como representativa de um caos aparente, um conjunto de impressões e sensações que são nada mais do que a reacção aos estímulos daquilo que rodeia o Poeta. Trata-se de uma Poesia, sensorial, como já foi aqui salientado, frequentemente revestida de uma sensualidade telúrica, por retratar uma vida que emana da terra, da natureza que mesmo domesticada na aparência, conserva sempre o seu lado selvagem e indomável.



Para Armandina Maia, este aspecto encontra-se patente numa constante dicotomia entre caos e ordem: um caos a partir do qual o Poeta reconstrói ou reorganiza ciclicamente o mundo num trabalho incessante, como o de Sísifo, no sentido de recuperar “a pureza das coisas originárias e a crueza que quase sempre as acompanha”, como podemos ver nos versos que se seguem:



o dissolver



ultimou insaciável a encomenda
o meu futuro é a morte



em girândola fosca piscou argonauta e saltarico.






Ou ainda:






O Fim acomete-se às sombras



sábias e fátuas as mãos prolongam uma fé intemporal



marcam a focagem dos templos



órgãos param nas veias, fuligem
estonteante e melancólica sobre a leva



hospitalizada a mancha escurece, a cama branca deita-se
ombros de esposa delicada



branca, muito branca, a espera brota
janela deste santuário opaco



aguardo que me leves, com fruto, ave
no mais leve, derramar



deixo a figueira, os gatos, um cão
folhas brancas, do dormitório
esta pedra



sem saber se a voz que escuto é luz ou trevas
contemplando as ardósias e o desenho no chão.



A tranquilidade do ambiente rural surge, no entanto, como o contraponto da rebeldia e tumulto do Corpo . Este é sacralizado, numa profana eucaristia dominical, através do vocativo “amen-se” que se cruza com o assentimento, rendição do final de toda e qualquer oração cristã, amen, a significar “assim seja”. Mas neste caso ao une-se à partícula do pronome clítico da terceira pessoa do plural para adquirir a forma imperativa do verbo amar: um acto que assume também ele, a forma de uma rendição, mas perante a insubmissão do Desejo, o qual se torna, ele próprio sagrado, porque vital para os homens e mulheres. Trata-se de uma homenagem ao Corpo, no eterno dualismo da submissão/insubmissão amorosa do amor erótico, do corpo que obedece apenas à sua própria vontade quando se rende ao Outro:



Lesões incompatíveis com a vida



se me amas
dependura o umbigo na saia



lúcifer reluz de tanta beleza
maculada em teus seios de virgem
feroz e atenta.



Segura-me a mão e beija-me o tornozelo
num acepipe amargo, tanto cheiro a lava



ou esconde-me o peito num calcetar de godo
na noite do montemor



inundada de mosto
bosta e ferro



ouço
o teu olhar



num re_dor



o murmúrio canta_bilis



Neste caso, cabe ao Eros perverso na sua perfeita desobediência e exigência da rendição do Outro, a tarefa de reorganizar o caos de que falava a crítica literária Armandina Maia. Um caos criando pela sociedade que interfere directamente na vida do indivíduo e na livre expressão dos amores. A essa interferência opõe-se o impulso despoletado pela teluricidade desse dia dominical, durante o qual o Homem é livre para se dedicar ao prazer e ao ócio, tal como se vê nos versos que se seguem:




Angelica Lidell debruça-se sobre a pança veterinária



(…)


em vésperas ladeiam as tardes e fecundam a púrpura massa do pão 
que há nos olhos 
prestam-se a sentir enxaquecas violáceas de tudo o que lateja em
suas fontes magras



desde a preguiça à lata despejam sussurros sulcando
a pança veterinária e inquestionável
sobre o solo quente das asas em lábios de ponche
endoidecendo os anjos.



(…)



Encontramos também uma espécie de panteísmo na poesia de Aurelino Costa que se faz notar em alguns poemas como:



O dia de hoje!



Onde o absurdo perpassa pela alegoria a simbolizar um país onde se instala uma espécie de anomia que leva à subversão de todo um sistema social que caminha para a entropia, resultando na perversão de todo o cenário:



cenouras nas árvores
lustram as várzeas



bezerros lusófonos pastam
pedras ensaiam a imprecisão das cinzas



quando, sacro orvalho?



Secam feéricas as bentas
poejos de mel gotejam flácidos a desbulhar



O poema opõe-se à ambição desmedida de alguns castra o sonhos de progresso de muitos, daí a menção das cenouras nas árvores (as árvores não são o lugar das cenouras, que ocupam um lugar para o qual não foram talhadas), o ramo onde estão instaladas as cenouras que não são frutos mas bolbos, onde estão empoleiradas é o seu bezerro de ouro. Trata-se de uma posição que não lhe pertence mas que lhe dá visibilidade escapando às suas verdadeiras funções – armazenar água para alimentar a planta ou alimentar toupeiras, por exemplo. A desorganização das estruturas prossegue no poema, onde é substituída uma ordem funcional por outra completamente disfuncional a troco de uma posição mais vantajosa – para as cenouras. E só para elas. Já a repetição anafórica do verso quando, sacro orvalho?, aponta para um desejo, uma esperança na inflexão da tendência de um Inverno cujo gelo queima os rebentos e da ânsia pela tepidez húmida do orvalho primaveril que liberta os rebentos do gelo (ou do Mal para o qual a palavra sacro funciona como antídoto), que tudo queima e impede o crescimento. A pergunta retórica posta no final do poema não deixa margem para dúvidas, revelando o inconformismo de uma alma inquieta:



onde dispo o sonho?



Jogos semânticos, elementos humanos e paisagísticos, meteorologias encrostadas



No livro Domingo no Corpo a paisagem aparece-nos fustigada pela nortada poveira, a qual serve de instrumento para exprimir a ironia do Poeta como se vê nos versos de é comovente a tua poesia. Naquele poema, o sujeito de enunciação estabelece um diálogo consigo mesmo ou com uma audiência imaginária, pois antecipa o que o seu interlocutor poderá contra-argumentar, naquilo que parece ser um exercício metadiscursivo de distanciamento e autocrítica.


O elemento “fome” é aqui, também, introduzido como o resultado da carência de alimento do espírito embora se apresente com uma acepção aparentemente denotativa, como se se tratasse de uma dor física e implacável, a partir da qual o sujeito empírico que dá a voz ao poema o faça com a voz do cataclismo, da tempestade que ameaça instalar o caos para causar a instabilidade, instituindo a destruição total para depois reconstruir a partir do zero, num exercício experimental vindo a partir de uma omnipotente entidade superior de rosto desconhecido, que faz implodir, de forma inexorável, a sociedade de consumo. Vejam o poema:


mar ingente os hipermercados
bocas de fome as embalagens
as luzes que tremem são teus olhos
incapazes de (a)pagar a electricidade.


O design do nada nas palmas o silêncio
que fazem no verde, código verde?
Oficiar avés na ladainha dos preços?

(…)


Mas também se adivinha o implodir do consumismo desenfreado na contradição expressa no poema que se segue, onde o jogo dicotómico entre a inconsciência da descrença por parte do eu colectivo e o pressentimento adivinhado pelo Eu poético, que antecipa a tragédia, tal como Cassandra:




a senda da terra




a senda da terra
desfeita e espectral
abre a sua boca...


assim vai, de lua em lua
pelas manhãs de sábado
ao hipermercado....


traz carrinhos de mão
que circulam por um euro
dóceis
dão a impressão
que vão para uma festa de aniversário...




Mas por vezes a crueza da realidade invade o poema impregnando-se nas paredes brancas (ou páginas?) onde se percebe que a fome já mata:


nas paredes brancas




nas paredes brancas
poderia ser um atentado


uma mão tingida de falta de cor apertava
um lenço sem nada
por detrás do filho endomingo
uma gata com cio lambe-lhe o dedo


apontou os fósforos e levou-os à boca: cinco cabecinhas vermelhas, divisas


curado, orou à santa:


milagre senhor!, a minha boca arde!


(…)


O poema da página 39, pedras com mãos de homens que morreram é dos mais emotivos de todo o volume. O canto do Poeta, às mãos dos homens que trabalham a pedra e constroem as suas casas, é a valorização da obra que estes legam para a posteridade. Deste prisma, o trabalho do pedreiro e o trabalho do poeta, que lapida o verso como quem corta a pedra, aproximam-se e irmanam-se.


Na poesia de Domingo no Corpo os ritmos da vida, das estações, das marés vai-se desenrolando, independente da actividade humana, seguindo o seu caminho apesar dela. Livre. Onde o corpo do Homem, também livre durante o seu descanso dominical, ao invés de se sobrepor à natureza, colocando-se como seu adversário, funde-se com ela, incrusta-se na paisagem natural, como as lapas nos rochedos poveiros:


Sob delírio


sob delírio a barca
a língua e o calvário


deixa que poisem as aves
e amanheça o fermentar das claves
as asas apavonam os ventos


e as maçãs açucaram martelos


O livro termina com o desejo de recolhimento do Poeta, com a expressão da vontade em fechar uma porta, proteger-se e esperar a bonança de dias melhores.


A escrita de Domingo no Corpo pode ser vista tal como frisa Alexandre Teixeira Mendes como propulsionada pelo desassossego do Poeta. Este, actua como difusor de quadros/imagens onde “cada poema é um retrato onde se inscreve uma poética assente no compromisso entre purificação/depuração erótica, conversação e iniciação passional no empirismo da pulsão erótica do corpo” (ATM, 2013). O mesmo corpo que, na perspectiva deste Autor comporta ainda uma quase que insuportável “tensão entre elementos sagrados e profanos”, a que se junta a oposição contrastiva da natureza tendo como contraponto a sociedade de consumo:
“...em Aurelino Costa, defrontamo-nos com os nossos actuais descontentamentos (…) o fetichismo do dinheiro e da mercadoria”(ATM, 2013)


Domingo no Corpo é pois, o resultado de um trabalho de projecção, da transposição da voz e dos impulsos da Psyche do Poeta que todos os dias vê o mar mas que está profundamente ligado à terra, para o universo linguístico-discursivo que permite a partilha das imagens que se desenrolam diante de si como se de um conjunto de instantâneos – ou de curtas metragens se tratasse. Uma obra que convoca o esteta - o homem cultural, voltado para as coisas do espírito – e o homem carnal, na sua vertente animal, profundamente ligado à vida de uma pequena cidade junto ao mar mas que conserva ainda o seu elemento rural nas sua zonas mais periféricas, à terra, que se casa com os restantes elementos, água, vento, fogo. Uma obra que é o retrato da condição humana, do Homem como ser eternamente dividido entre o mundo do pensamento e o das sensações.




29-07-2013-25-01-2014
Cláudia de Sousa Dias



2 Comments:

Blogger M. said...

Muito apetecível a poesia de Aurelino! A ler, sem dúvida, num domingo à tarde ;)
Beijinhos e um óptimo dia!

11:22 AM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

A melhor altura da semana, sem duvida...!

11:37 AM  

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