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Thursday, March 19, 2015

“Fome" – Flanzine nº6


Não. Não tem nada a ver com os Hunger Games. Mas, aqui, aborda-se todos os tipos de “fome”.


Para este número da Revista, o editor, João Pedro Azul, seleccionou uma lista de autores novos, alguns ainda embrionários, cada um deles convidado por um participante dos números anteriores, alguns não totalmente desconhecidos mas já com larga experiência nestas lides embora com escassas publicações e outros ainda a dar os primeiros passos na escrita literária.

João Pedro Azul é o único que esteve presente em todos os outros números anteriores, como autor ou editor, decide, neste número, evocar no editorial a figura de um pai pragmático, profundamente ligado à terra e às sensações físicas, à problemática de se ser ou não capaz de viver e sobreviver alimentando-se de...literatura. Talvez um dos motivos pelos quais haja tão pouca gente, já não digo a escrever mas pelo menos a ler, seja a ideia preconcebida de que a literatura não é "alimento", cuja consequência directa é o pouco valor que se dá no nosso país à cultura em geral e à literatura em particular.

Das ilustrações da Flanzine da “Fome” destacamos a “eloquência” visual da figura de Daniel Bessa na qual um humano de gravatinha florida e faca e garfo em punho se prepara para trinchar, esquartejar um porquinho-mealheiro. Ou a provocadora ilustração de Liliana Lourenço com um empregado de mesa vestido a rigor de gravata “papillon” a servir a uma família de pé descalço restos doe um contentor do lixo. Ou a “untitled” de Mara Castilho, espacio-temporalmente localizada na Bósnia Herzegovina de 2003, exibindo os contorno de uma figura feminina, uma estátua, decapitada, caída sobre escombros. À volta tudo lixo, desperdícios, manjar dos deuses para necrófagos. O símbolo de uma Europa em ruínas, derrotada pela fome, consequência da guerra.  Um "Coração Esfomeado" de Liliana Rodrigues exibe o principal músculo do corpo humano com a parte inferior apresentar irregularidades cromáticas fazendo-o assemelhar-se a um tórax no qual sobressaem umas costelas que parecem estar em vias de rasgar a pele. “Os Apetites”, poema de Ricardo Marques ilustrado por Alex Gozblau, são representados pela sombra de uns talheres deixados ao acaso sobre uma superfície plana que se supõe ser uma mesa. Leonor de Almeida prefere mostrar-nos “O Prato do Dia” para executivos engravatados, intitulado “Português com Larica”, onde se pode ver uma figura humana servida num prato, enrolada como uma pescadinha de rabo-na-boca, em cima de uma toalha quadriculada, na qual repousam umas mãos e a ponta de uma gravata preta de alguém que se prepara para uma degustação de...um português, já sem cuecas nem tanga, prestes a ser engolido por alguém que parece ser um executivo apreciador do produto típico da “tasquinha” que é Portugal. Jaime Raposo, autor da ilustração “A Cadeia” optou pela apresentação irónico-satírica da cadeia alimentar em que se apoia a sociedade de consumo: um ursinho “fofinho”, com corpo de abutre, prepara-se para beber as ideias de Carl Jung, os seus estereótipos para melhor conseguir rotular e depois manipular o seu semelhante de forma a alcançar os seus objectivos; Jung, que alimenta as suas ideias e teorias através das palavras dos seus pacientes, que são o cadinho onde se cozinha o bem e o mal; a avidez do lucro simbolizado pela menorah (aqui o judeu leva com a marreta do estereótipo clássico) de quem manda nas finanças do planeta alimentam (com dinheiro) o consumidor que, por sua vez é sugado pelo abutre. Já a ilustração de Susana Carvalhinho dá vida a uma mulher sedutora, cuja solidão esconde a fome de afecto. A máscara e todo o aparato de sedução que surgem na imagem servem para ocultar o peso da solidão. Vítor Mingacho pinta as hiper-calorias de uma sociedade industrializada e a sua pesadíssima pegada ecológica. Já o frenesim de comer está eloquentemente inscrito nas expressões vorazes da ilustração de Alexandra Belo. A figura de Inês Magalhães apresenta a imagem de algo híbrido que tanto pode ser um molusco a mover-se em meio aquático como um legume num jardim. Ivo Hoogveld mostra o homem no centro do seu universo como o último ser da cadeia alimentar, sobrepondo-se-lhe e, ao mesmo tempo, diluindo-se nela. Na solidão de um quarto exíguo de onde se destaca a desolação das paredes nuas, está incorporada uma mulher sem rosto, despersonalizada portanto, tetricamente iluminada por uma lâmpada eléctrica. A lâmpada conduz o olhar para uma mesa sem toalha, em segundo plano, em cima da qual está um prato vazio e um copo com água. A fome repousa sobre a mesa. André Chiote utiliza a imagem de um gato e o seu negativo,ou o seu inverso, para inverter também o pensamento inicial que utiliza na metáfora “rato no estômago” que, no discurso oral, simboliza a fome, para escarnecer de um ser que comeu “gato por lebre”.

Na poesia, a revista reúne vários estilos, desde a cantiga de escárnio e maldizer, num poema de inspiração marcadamente popular como a de Artur Gonçalves - “A Tua Fome” - ou a ironia de José Luís Costa" (Mais um para a Galeria)", ao estilo erótico de Eliana Bernardes “Palavra ao Homem Kirsch”, um dos melhores poemas da revista, juntamente com o “Banco Alimentar” de Catarina Nunes de Almeida a falar de uma inominada esperança, que a si própria e de si própria se alimenta. Os “Apetites” de Ricardo Marques tipificam as diferentes espécies de Fome e os diversos tipos de saciedade.
O poema de Susana Carvalhinho que acompanha a respectiva ilustração é um dos mais românticos da revista, tal como o eloquente poema de protesto/intervenção de José Anjos “Construção” a soar como uma marcha, ou como as trombetas de Jericó, desconstruindo a mentira, a mitificação e a mistificação. Enquanto isso, Diana Pimentel transforma o desejo em metáfora, metáfora essa que é, ao mesmo tempo, universal e telúrica.

Em relação aos contos e narrativas da antologia da “Fome” há várias surpresas. A primeira é logo a de Manuel da Silva Ramos a relatar a mirabolante estratégia de sobrevivência de um imigrante vindo de Moçambique, Emílio Pretor, uma aventura erótico-satírica a lembrar os desconcertantes “Contos Eróticos” de Alberto Moravia. Ou então a beleza da narrativa de Filipa Martins para contar a saga de uma família de “Bairro-Chinelo” na qual, ao jogar com os deícticos, num texto narrado na primeira pessoa, traça o auto-retrato de cada membro da família e a perspectiva que cada um tem dos demais e de que forma o fosso entre eles se vai alargando com a passagem do tempo. No centro está a figura feminina que alimenta a todos e põe o pão na mesa.

Miguel Bonneville dá a voz a uma rainha decapitada por ter escarnecido da Fome alheia em “Brioche”, num discurso cheio de drama e nostalgia.

Sara Castello Branco, indo beber a inspiração a FMI de José Mário Branco, traça uma narrativa de crítica social e política em “Quem cala e come dos cravos morre”, naquilo que chama de “bafo de descontentamento”, para apresentar um discurso de protesto, incitando à luta por melhores condições de vida. Sempre contra a Fome.

Isabela Figueiredo não sendo totalmente desconhecida, através do blogue “omeumundoperfeito”, e autora de “Caderno de Memórias Coloniais”, fala de fome e dietas, aproveitando para invocar a memória do pai, arrancando do passado uma relação de camaradagem entre pai e filha na infância, expressa num diálogo entre iguais.

O penúltimo texto em prosa nesta revista é uma tradução de Liliana Martins, a partir da língua norueguesa de “Fome” de Knut Hamsum, num estilo elegante, a partir de cujo excerto dá vontade de comprar o livro.

Por último, Pedro Teixeira Neves no mais belo texto da revista, duríssimo, “um prego na memória”, fala de duas mulheres que se passeiam por entre a miséria e a morte como dois espectros, alimentando-se delas.

O tema da revista é duro. Mas a literatura engloba o belo e o horrendo, a dor, a paixão, o sublime, o infame, a bondade e o cinismo. Os autores que aqui se incluem sabem-no. E cumprem aqui a missão de o demonstrar. Contra a fome física
e aquela vinda da pobreza espiritual, que grassa hoje em todas as sociedades. Contra a surdez do coração, a cegueira da mente, exorta-se aqui à guerra contra a fome de solidariedade.



Cláudia de Sousa Dias

09-02.2015

5 Comments:

Blogger Claudia Sousa Dias said...

3 pessoas a gostar na página do Facebook "o que andamos a ler".

https://www.facebook.com/groups/366036136807459/permalink/821284247949310/

4:18 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

E no mural de Flanzine:

a Cláudia continua a adiar a dieta e a devorar o Pudim.
se bem que o faz em digestão lenta.

Ao todo 7 "gosto" e 1 partilha


João Pedro Azul
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Carla Diacov
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Duarte da Encarnação
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Estelle Vargas
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MJ Ramos

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Marlene Babo
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Solanja Santos
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Aqui:

https://www.facebook.com/flan.zine/posts/430500717119838

4:22 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

No mural de Marta Vaz

https://www.facebook.com/marta.vaz.545/posts/10203947340222111?pnref=story

1:23 AM  
Blogger Seve said...

Cláudia já leu "O BREVIÁRIO DAS MÁS INCLINAÇÕES" do José Riço Direitinho?

4:24 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

Ainda não. Mas já faltou mais. Nao tenho é conseguido encontrá-lo à venda.

5:06 PM  

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