“Fome" – Flanzine nº6
Não. Não tem nada a ver com os
Hunger Games. Mas, aqui, aborda-se todos os tipos de “fome”.
Para este número da Revista, o editor,
João Pedro Azul, seleccionou uma lista de autores novos,
alguns ainda embrionários, cada um deles convidado por um
participante dos números anteriores, alguns não totalmente desconhecidos
mas já com larga experiência nestas lides embora com escassas publicações e outros ainda a dar os
primeiros passos na escrita literária.
João Pedro Azul é o único que esteve
presente em todos os outros números anteriores, como autor ou editor, decide, neste número, evocar no
editorial a figura de um pai pragmático, profundamente ligado à
terra e às sensações físicas, à problemática de se ser ou não
capaz de viver e sobreviver alimentando-se de...literatura. Talvez um
dos motivos pelos quais haja tão pouca gente, já não digo a
escrever mas pelo menos a ler, seja a ideia preconcebida de que a
literatura não é "alimento", cuja consequência directa é o pouco
valor que se dá no nosso país à cultura em geral e à literatura
em particular.
Das ilustrações da Flanzine da “Fome”
destacamos a “eloquência” visual da figura de Daniel Bessa na
qual um humano de gravatinha florida e faca e garfo em punho se
prepara para trinchar, esquartejar um porquinho-mealheiro. Ou a
provocadora ilustração de Liliana Lourenço com um empregado de
mesa vestido a rigor de gravata “papillon” a servir a uma família
de pé descalço restos doe um contentor do lixo. Ou a “untitled”
de Mara Castilho, espacio-temporalmente localizada na Bósnia
Herzegovina de 2003, exibindo os contorno de uma figura feminina, uma
estátua, decapitada, caída sobre escombros. À volta tudo lixo,
desperdícios, manjar dos deuses para necrófagos. O símbolo de uma
Europa em ruínas, derrotada pela fome, consequência da guerra. Um "Coração Esfomeado" de Liliana Rodrigues exibe o principal
músculo do corpo humano com a parte inferior apresentar
irregularidades cromáticas fazendo-o assemelhar-se a um tórax no
qual sobressaem umas costelas que parecem estar em vias de rasgar a
pele. “Os Apetites”, poema de Ricardo Marques ilustrado por Alex Gozblau, são representados pela sombra de uns
talheres deixados ao acaso sobre uma superfície plana que se supõe
ser uma mesa. Leonor de Almeida prefere mostrar-nos “O Prato do
Dia” para executivos engravatados, intitulado “Português com
Larica”, onde se pode ver uma figura humana servida num prato,
enrolada como uma pescadinha de rabo-na-boca, em cima de uma toalha
quadriculada, na qual repousam umas mãos e a ponta de uma gravata
preta de alguém que se prepara para uma degustação de...um português,
já sem cuecas nem tanga, prestes a ser engolido por alguém que parece ser um executivo
apreciador do produto típico da “tasquinha” que é Portugal.
Jaime Raposo, autor da ilustração “A Cadeia” optou pela
apresentação irónico-satírica da cadeia alimentar em que se apoia
a sociedade de consumo: um ursinho “fofinho”, com corpo de abutre, prepara-se para beber as ideias de Carl Jung, os seus estereótipos
para melhor conseguir rotular e depois manipular o seu semelhante
de forma a alcançar os seus objectivos; Jung, que alimenta as suas
ideias e teorias através das palavras dos seus pacientes, que são o
cadinho onde se cozinha o bem e o mal; a avidez do lucro simbolizado
pela menorah (aqui o judeu leva com a marreta do estereótipo
clássico) de quem manda nas finanças do planeta alimentam (com
dinheiro) o consumidor que, por sua vez é sugado pelo abutre. Já a
ilustração de Susana Carvalhinho dá vida a uma mulher sedutora,
cuja solidão esconde a fome de afecto. A máscara e todo o aparato
de sedução que surgem na imagem servem para ocultar o peso da
solidão. Vítor Mingacho pinta as hiper-calorias de uma sociedade
industrializada e a sua pesadíssima pegada ecológica. Já o
frenesim de comer está eloquentemente inscrito nas expressões
vorazes da ilustração de Alexandra Belo. A figura de Inês
Magalhães apresenta a imagem de algo híbrido que tanto pode ser um
molusco a mover-se em meio aquático como um legume num jardim. Ivo
Hoogveld mostra o homem no centro do seu universo como o último ser
da cadeia alimentar, sobrepondo-se-lhe e, ao mesmo tempo, diluindo-se
nela. Na solidão de um quarto exíguo de onde se destaca a desolação
das paredes nuas, está incorporada uma mulher sem rosto,
despersonalizada portanto, tetricamente iluminada por uma lâmpada
eléctrica. A lâmpada conduz o olhar para uma mesa sem toalha, em segundo
plano, em cima da qual está um prato vazio e um copo com água. A
fome repousa sobre a mesa. André Chiote utiliza a imagem de um gato
e o seu negativo,ou o seu inverso, para inverter também o pensamento
inicial que utiliza na metáfora “rato no estômago” que, no
discurso oral, simboliza a fome, para escarnecer de um ser que comeu
“gato por lebre”.
Na poesia, a revista reúne vários
estilos, desde a cantiga de escárnio e maldizer, num poema de
inspiração marcadamente popular como a de Artur Gonçalves - “A
Tua Fome” - ou a ironia de José Luís Costa" (Mais um para a
Galeria)", ao estilo erótico de Eliana Bernardes “Palavra ao Homem
Kirsch”, um dos melhores poemas da revista, juntamente com o “Banco
Alimentar” de Catarina Nunes de Almeida a falar de uma inominada
esperança, que a si própria e de si própria se alimenta. Os
“Apetites” de Ricardo Marques tipificam as diferentes espécies
de Fome e os diversos tipos de saciedade.
O poema de Susana Carvalhinho que
acompanha a respectiva ilustração é um dos mais românticos da
revista, tal como o eloquente poema de protesto/intervenção de José
Anjos “Construção” a soar como uma marcha, ou como as trombetas
de Jericó, desconstruindo a mentira, a mitificação e a
mistificação. Enquanto isso, Diana Pimentel transforma o desejo em
metáfora, metáfora essa que é, ao mesmo tempo, universal e telúrica.
Em relação aos contos e narrativas da
antologia da “Fome” há várias surpresas. A primeira é logo a
de Manuel da Silva Ramos a relatar a mirabolante estratégia de
sobrevivência de um imigrante vindo de Moçambique, Emílio Pretor,
uma aventura erótico-satírica a lembrar os desconcertantes “Contos
Eróticos” de Alberto Moravia. Ou então a beleza da narrativa de
Filipa Martins para contar a saga de uma família de “Bairro-Chinelo”
na qual, ao jogar com os deícticos, num texto narrado na primeira
pessoa, traça o auto-retrato de cada membro da família e a
perspectiva que cada um tem dos demais e de que forma o fosso entre
eles se vai alargando com a passagem do tempo. No centro está a
figura feminina que alimenta a todos e põe o pão na mesa.
Miguel Bonneville dá a voz a uma
rainha decapitada por ter escarnecido da Fome alheia em “Brioche”, num discurso cheio de drama e nostalgia.
Sara Castello Branco, indo beber a
inspiração a FMI de José Mário Branco, traça uma narrativa de
crítica social e política em “Quem cala e come dos cravos morre”, naquilo que chama de “bafo de descontentamento”, para apresentar
um discurso de protesto, incitando à luta por melhores condições
de vida. Sempre contra a Fome.
Isabela Figueiredo não sendo
totalmente desconhecida, através do blogue “omeumundoperfeito”, e
autora de “Caderno de Memórias Coloniais”, fala de fome e dietas, aproveitando para invocar a memória do pai, arrancando do passado uma
relação de camaradagem entre pai e filha na infância, expressa num
diálogo entre iguais.
O penúltimo texto em prosa nesta
revista é uma tradução de Liliana Martins, a partir da língua
norueguesa de “Fome” de Knut Hamsum, num estilo elegante, a
partir de cujo excerto dá vontade de comprar o livro.
Por último, Pedro Teixeira Neves no
mais belo texto da revista, duríssimo, “um prego na memória”,
fala de duas mulheres que se passeiam por entre a miséria e a morte
como dois espectros, alimentando-se delas.
O tema da revista é duro. Mas a
literatura engloba o belo e o horrendo, a dor, a paixão, o sublime,
o infame, a bondade e o cinismo. Os autores que aqui se incluem
sabem-no. E cumprem aqui a missão de o demonstrar. Contra a fome
física
e aquela vinda da pobreza espiritual, que grassa hoje em
todas as sociedades. Contra a surdez do coração, a cegueira da
mente, exorta-se aqui à guerra contra a fome de solidariedade.
Cláudia de Sousa Dias
09-02.2015
5 Comments:
3 pessoas a gostar na página do Facebook "o que andamos a ler".
https://www.facebook.com/groups/366036136807459/permalink/821284247949310/
E no mural de Flanzine:
a Cláudia continua a adiar a dieta e a devorar o Pudim.
se bem que o faz em digestão lenta.
Ao todo 7 "gosto" e 1 partilha
João Pedro Azul
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Carla Diacov
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Duarte da Encarnação
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Estelle Vargas
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MJ Ramos
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Marlene Babo
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Solanja Santos
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Aqui:
https://www.facebook.com/flan.zine/posts/430500717119838
No mural de Marta Vaz
https://www.facebook.com/marta.vaz.545/posts/10203947340222111?pnref=story
Cláudia já leu "O BREVIÁRIO DAS MÁS INCLINAÇÕES" do José Riço Direitinho?
Ainda não. Mas já faltou mais. Nao tenho é conseguido encontrá-lo à venda.
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