“Atrás dos Montes” de Gerrit Komrij (ASA)
Gerrit Komrij é um autor muito pouco divulgado pelos média portugueses, apesar de ter escolhido o nosso país para viver durante os últimos anos de vida. Holandês, nascido em 1944, foi poeta, escreveu ficção, ensaio, traduziu e organizou antologias, tornando-se uma figura de destaque, dentro da produção literária e intelectual holandesa.
O romance Atrás dos Montes mostra o retrato daquilo que hoje se poderia chamar de “Portugal
profundo”, ou seja um Portugal de difícil acesso, pelo facto de a
trama se passar numa povoação isolada pela serra transmontana, numa
pequena vilazinha, “atrás dos montes” ou “over de bergen” no
original.
A paisagem mostra-se bela, mas agreste,
senão mesmo hostil, devido aos rigores do clima e às condições
habitacionais, que tornam difícil suportar Invernos húmidos e
gélidos e oVerões infernais. A história passa-se nos anos
oitenta, pouco menos de uma década após o vinte e cinco de Abril,
mas ali o tempo parece ter parado na época da Ditadura. Ou mesmo da
Monarquia. É o olhar de forasteiro do protagonista – que pertence
a uma das famílias mais tradicionais da região, mas cujos membros ou
se encontram a viver na capital do país ou estão dispersos pelas
várias cidades ou regiões do Continente – a constatar o
desfasamento chocante entre o litoral (em pleno torvelinho de
desenvolvimento) e o interior (esquecido pelo centro decisor ou, no
mínimo, relegado para segundo plano).
Foi precisamente em meados da década
de oitenta que Komrij havia decidido refugiar-se num lugar remoto,
cujo isolamento extremo lhe garantisse a tranquilidade que a fama,
adquirida no seu país de origem, lhe roubara. O interior
transmontano parecera-lhe, então, a solução perfeita, elegendo a
localidade de Alvites para aí viver – e escrever – com o seu
companheiro. Mas foram cinco anos (de 1984 a 1989) durante os quais
rapidamente eclodiram os conflitos entre a forma de viver e convicções do escritor e os poderes locais. Mudam-se então para
Vila Pouca de Aguiar (Concelho de Oliveira do Hospital) uma
localidade também isolada, tranquila, mas já perto daquilo a que
chamavam de “civilização”, ou seja uma pequena cidade onde
havia, pelo menos uma livraria. Foi ali que Komrij desenvolveu o
conhecimento da língua e o gosto pela Literatura Portuguesa.
Atrás do Montes é um romance
onde o autor consegue de facto mostrar até que ponto a evolução
económica, social e, sobretudo, da mentalidade colectiva dominante, continuava renitente no seu estatismo, assente numa férrea resistência à
mudança, nas localidades mais isoladas que ainda hoje faz o país avançar a duas
velocidades: à velocidade do caminho-de-ferro, até onde a linha
férrea alcança; e à velocidade dos veículos de tracção animal, nos lugares onda as estradas só são alcatroadas mediante o estatuto
de quem lá vá morar.
O romance foi publicado em 1990 e
encontra-se actualmente esgotado.
A Trama
No romance, o protagonista, Pedro, é
um dos herdeiros do antigo solar numa pequena aldeia de
Trás-os-Montes, pertencente ao concelho de Vila Flor. A casa é uma
das muitas propriedades do clã, espalhadas pelo país. Seduzido pela
simplicidade da vida local e pelo acolhimento caloroso dos habitantes
daquela povoação, Pedro cedo se apercebe dos interesses nada
altruístas da classe dominante e dos maquiavélicos jogos de poder, levados a cabo pelas famílias da elite local, empenhadas até à
medula em fazer com que as coisas não mudem, uma vez que a melhoria
das condições de vida da população, implicariam uma perda substancial de poder e influência dos “senhores da terra”.
A tradução para português é feita a
partir da Língua Holandesa por Patrícia Couto, uma tradução com
algumas falhas em termos de coordenação sintáctica e gralhas
ortográficas nos primeiros capítulos, pelo seria aconselhável uma
revisão cuidada do texto para futuras reedições. A capa reproduz
um óleo de Artur Loureiro, intitulado “vista para o Gerez”, a exibir uma paisagem montanhosa e de difícil acesso, que poderia
também perfeitamente ser a de Trás-os-Montes. Mas este isolamento, exasperante do final dos anos oitenta, não
impede que apreciemos o excelente domínio da construção da
narrativa ficcional de Komrij e o evidente realismo com o qual construiu o
retrato social de uma época naquele locus específico, bem como da
nitidez com que "pinta" discursivamente a paisagem natural e o clima transmontano.
A história divide-se em três
andamentos, tal como um concerto de música clássica, cada qual
seguindo o seu ritmo próprio. Assim, a trama é modalizada, em termos
de ritmo e duração, em três movimentos diferentes: “Largo”,
“Adagio” e “Staccato”.
O primeiro movimento, “Largo” é
desenvolvido de forma lenta, a acção prolonga-se no tempo. É a
parte da história que é detentora de maior durabilidade, indo do
capítulo I ao capítulo VI. Inclui a viagem de Pedro, até chegar ao
solar da família, nove horas ao todo, partindo de Lisboa, com várias mudanças de transporte pelo caminho, lembrando quase a viagem de
Jacinto de Paris até Tormes em A Cidade e as Serras de Eça de Queirós. Todas as
cenas deste “Largo” são construídas à semelhança de uma longa
metragem onde cada plano regista o mais ínfimo movimento ou pulsar
da vida, captando o mais pequeno detalhe. Os pormenores sempre
enquadrados de forma a mostrarem o quanto são fundamentais, todas as micro-peças de uma engrenagem que compõem um todo, tal como num filme de
Manoel Oliveira.
O capítulo I, após uma breve
introdução, apresenta a verdadeira protagonista da história, a casa
da família de Pedro. O narrador, de terceira pessoa, inicia a
descrição de cada uma das fases da extenuante viagem, retratando as
pessoas em volta no comboio, mas através do olhar de Pedro, que
repara nos diversos tipos sociais que o acompanham na carruagem – desde a
camponesa que transporta animais de criação para consumo ao
descontraído médico reformado da aldeia. O narrador sublinha o
cansaço acumulado no protagonista que atinge o auge um instante antes de desabar na cama de
um dos quartos de hóspedes da casa, a qual se encontra gelada pelo frio de um rigoroso Inverno e na qual não se acende uma lareira ou um aquecedor. No primeiro contacto de Pedro com a casa esta mostra-se hostil, apesar
da simpatia dos serviçais, sobretudo de Graciosa, a governanta.
O capítulo II começa a narrar as
actividades do dia seguinte, a adaptação de Pedro à rotina e aos
hábitos da casa e ao temperamento das pessoas que a habitam. A
linguagem empregue e, sobretudo os adjectivos, acusam o desgaste, a
degradação do solar, fruto da acção do tempo e do abandono pelos
donos, da falta de manutenção, captada e registada pelo olhar do
forasteiro. A atmosfera é triste e desoladora. Sobretudo quando se
fala, em contraponto, de um passado de glória daquele solar no tempo em
que era habitado pela família, e que está inscrito nos objectos, nas paredes, nas vigas que a sustentam, tudo vestígios de um passado não tão distante assim: fotografias, um quadro a óleo da Tia
Augusta, um uma infinidade de vetustos e nobres objectos decorativos.
No capítulo III, é introduzida outra
figura central na trama, uma personagem que tem tanto de enigmática
como de esquiva: o Padre Rodrigo, encarregue de zelar pela Fundação
Pedra Viva, a qual sobrevive com parte dos dividendos da herança da Tia
Augusta, a falecida proprietária do solar. Impossível não reparar
que, apesar de Pedro ser um dos donos da casa e um dos
herdeiros directos, não se sente à vontade para agir como tal. Esta
atitude está patente nas delicadas manobras do jovem, sobretudo
discursivas, no sentido de evitar ferir a susceptibilidade do
clérigo, que ali se move como se fosse ele na verdade o
proprietário. Apesar da aparente delicadeza e bonomia do padre, este
move-se como se se sentisse perfeitamente à vontade na propriedade.
No entanto, são por demais evidentes os sinais de abandono se não
mesmo de descuido, como se a casa estivesse a mirrar, a morrer
lentamente. Não há ali um único objecto que Pedro pense em
mudar de lugar sem antes se interrogar se o padre ficará ou não
ofendido.
É também neste momento da história
que Pedro fica a conhecer outro clã influente na aldeia, o da
família do médico, o qual encontrara já no comboio. Este é uma
figura venerada na povoação. Este tem, no entanto uma atitude estranha pois avisa o protagonista, à
laia de oráculo, para não se imiscuir muito com a população de
forma a não ser “contagiado” pela miséria.
No capítulo IV, o leitor é confrontado com
a alteração da paisagem campestre e montanhosa, que vai mudando conforme as estações. Komrij sublinha a impressionante beleza da
transformação do ambiente da vegetação, das sensações térmicas
como poucos escritores serão capazes de o fazer: desde o pesado
rigor do Inverno transmontano, durante o qual as estradas não
alcatroadas e enlameadas favorecem ainda mais o isolamento, à
canícula do Verão, cuja intemperança vai engolindo a casa,
devorando-a, como os lobos devoram uma carcaça. Uma casa pela qual Pedro se apaixona e se dispõe a recuperar, para conservar o património da família e a
memória dos antepassados.
Ao longo de todo este movimento
“«Largo”, Pedro vai lentamente tomando nota, da forma como os
recursos naturais da região, sobretudo nas terras à volta da casa e
que ainda são propriedade da família, vão desaparecendo
misteriosamente sem que se saiba para onde vai o lucro – nem mesmo
para as obras de manutenção da casa ou sequer para a construção
de infra-estruturas que permitam uma escola decente, isolada do frio
e da chuva, que deveria ser financiada pela Fundação Pedra Viva,
segundo a vontade da Tia Augusta. Estranhamente (ou talvez não) o
nome do Padre Rodrigo surge quase sempre ligado aos negócios da
fundação e à exploração dos recursos naturais das terras da
família de Pedro.
Outro elemento que intensifica a
percepção de que algo de errado se passa, não só em relação à
propriedade mas no tocante à aldeia e seus habitantes, é a conversa
que Pedro acaba por ter com Joaquim, sogro do Padeiro, que o
recomenda a Pedro para ajudá-lo nas obras da casa. Joaquim põe o
herdeiro de Dona Augusta a par de uma história tenebrosa, um crime
sexual, seguido de assassínio, cuidadosa e convenientemente abafado.
Um facto a que não é alheio a família da vítima ser de poucos
recursos financeiros e, por isso mesmo, não conseguir mover um
processo judicial de forma a que seja conduzido com eficácia. A
pesada lentidão da resposta das instituições leva as pessoas de
condição social modesta a desistirem de recorrer à justiça como
se vê no excerto seguinte referindo-se ao que Pedro ouvira da boca
de Joaquim:
«Ninguém sabia dizer quando seria o
julgamento. A polícia não lhe queria dizer nada. No tribunal,
olhavam para ela como se nem existisse e fechavam os guichês.
- Somos pobres, compreende.
Pedro conseguira distanciar-se o
suficiente dessa história bizarra para perceber que nesse caso só
um advogado poderia ajudar. Era um caso de circunstâncias
atenuantes, de impedimento, de defesa própria, de honra de família
, resumindo, de todos os argumentos razoáveis e fingidos que os
advogados poderiam evocar para fazer desequilibrar os pratos da
balança da justiça tenaz, mesmo que aos olhos do espectador a
sentença fosse evidente. Parecia que a mulher adivinhou os seus
pensamentos.
- Gente pobre não tem advogado.
Olhou-o fixamente, suplicante.
- Quem quiser ter um advogado
precisa de ter amigos. Contactos. Pessoas que são ouvidas. O
senhor não sabe de ninguém?»
Deste excerto é possível perceber até
que ponto Komrij foi capaz de captar, na transição dos anos '80
para os anos '90 do século XX, o quanto a sociedade portuguesa é
hierarquizada e rigidamente estratificada, ainda submetida a uma
pesada herança feudal.
No capítulo V, a casa começa a
recuperar, a reviver, a respirar como se fosse um ser vivo em
convalescença após doença prolongada, graças às obras de
manutenção e restauro levadas a cabo por Pedro. Este começa a
tornar-se, ele próprio uma pessoa influente na terra à medida que
vai fazendo valer os seus direitos sobre a propriedade e melhorando
as condições de vida dos que nela habitam. Porém, o jovem herdeiro
continua a achar estranho que a escola, frequentada pelos filhos dos
camponeses, que deveria ser financiada pela Fundação Pedra Viva se
apresente tão degradada a ponto de chover lá dentro no Inverno, assim como as refeições escolares, que também deveriam ser
suportadas pela Fundação dirigida pelo Padre Rodrigo, sejam tão
incompreensivelmente exíguas.
O narrador-locutor dá a entender, não
sem uma leve tonalidade de sarcasmo, ser o padre alguém muito ocupado
para se afligir com assuntos triviais como as necessidades dos
trabalhadores, sobretudo das mulheres que, com excepção de Fernanda e da falecida Tia Augusta desempenham, geralmente, funções serviçais na aldeia. Estes (e estas, sobretudo) tanto para o sacerdote como para os
notáveis da aldeia, são apenas instrumentos que servem para produzir, como se vê no excerto seguinte:
«As famílias de dezenas de
'jornaleiros' dependiam da apanha da azeitona no Inverno e da vindima
no Outono. Cabia a ele (ao Padre Rodrigo) fazer com que cada uma
recebesse o seu salário a tempo e horas. Sobre ele caíam as
responsabilidades. Um homem com o seu estatuto na aldeia não pode
ser incomodado, com cada contratempo das mulheres. E, como sacerdote
ocupado com aquilo que a Igreja considera essencial, ele
provavelmente nem reparava nos problemas delas. Não era por
negligência, argumentava Pedro, era causado pelo distanciamento que
existia entre os padres, crescidos e formados nas proximidades do céu
e da terra. Ele podia ser prestável mas tinha mais que fazer.
Isso explicava por que ele , na manhã
em que Filomena quis abrir um dos presuntos na cozinha e se tinha
aleijado, se limitou a mandar Graciosa ligar a mão de Filomana, que
sangrava profusamente, com um pano de cozinha.
(…)
Filomena levantou a mão no ar. O
sangue escorria pelo braço. Graciosa e Clara estavam as duas
encostadas à parede e abanavam a cabeça. Não restava mais nada ao
Pedro do que correr pela estrada fora, para o Bairro e avisar o
Luciano.
Pouco depois, estavam com Filomena no
táxi. Daniel, o filho mais novo, vinha pela estrada. Pararam e
deixaram-no entrar. Toda a viagem olhou o Pedro com ar carrancudo.
Quando chegaram à praça em frente ao
hospital de Vila Flor, já passava do meio-dia. O táxi parou na
entrada para as urgências, ao lado de uma ambulância, com as portas
traseiras abertas. Pedro correu para dentro. Não encontrou ninguém,
o posto estava deserto. Por uma porta lateral, chegou à entrada do
Hospital.
- O médico! – gritou para o homem atrás do balcão. Contra vontade, o homem levantou os olhos do jornal e disse:
- Os médicos foram almoçar.
- É uma urgência!
- Foram todos almoçar.
- O médico! – gritou para o homem atrás do balcão. Contra vontade, o homem levantou os olhos do jornal e disse:
- Os médicos foram almoçar.
- É uma urgência!
- Foram todos almoçar.
E, no tom de quem, com a última réstia
de paciência, explica, mais uma vez, que no mundo dois mais dois
serão quatro, acrescentou, olhando para o relógio:
- É meio dia e meia.
- É meio dia e meia.
Pegou novamente no jornal e continuou a
ler.»
Além daquilo que já foi dito a
propósito deste excerto, o que dele sobressai é, sobretudo na última parte, na cena do posto médico, o desprezo das
instituições por quem não possui poder ou influência, como já se
havia verificado também no caso do tribunal, relatado na primeira pessoa por um familiar de Joaquim.
Outro aspecto a salientar é o facto de
as vozes do narrador e de Pedro serem normalmente coincidentes, estando quase sempre os pontos de vista de ambos os enunciadores
muito próximos. Excepto no que diz respeito ao Padre Rodrigo, com
quem Pedro simpatiza, pelo menos até este ponto da evolução da
trama. No excerto vemos que Pedro ainda tem esperança de que haja
alguma explicação para a estranha conduta do Padre. Mas, aqui, a
divergência de ambas as vozes, a do narrador e a de Pedro, que citada de
forma indirecta pelo narrador, o qualreproduz o pensamento da
personagem, incorporando-o no seu próprio discurso – “não era
por negligência, argumentava
Pedro”. O proprietário do solar está, ainda, em fase de
negação no tocante ao carácter do sacerdote, mas esta dissonância
de vozes é já um indício do volte face que irá ocorrer em breve.
Na última secção deste capítulo, é
introduzido mais um elemento de mudança: a única personagem viva feminina que, na trama, não ocupa uma posição de serviçal ou de doméstica, dona-de-casa:
Fernanda, a sobrinha do Padre. Trata-se de uma visita inesperada que altera as
rotinas de toda a gente e é motivo de “falatório” na aldeia.
Fernanda é, na aldeia, a única mulher que goza de autonomia,
desloca-se de motorizada (quase não há viaturas na localidade), tem
uma profissão cujo salário lhe permite viver sozinha no Porto,
veste de forma extravagante, a contrastar violentamente com os trajes
das camponesas ou das discretas esposas dos notáveis da povoação.
Após uma entrada triunfal, Fernanda começa por ocupar uma posição
periférica na trama, distanciada de Pedro e do solar. Será o Padre Rodrigo a promover a aproximação de ambos.
O capítulo VI, com o qual finaliza o movimento “Largo” assinala a chegada da Primavera e o alívio de um Inverno
impiedoso. O quadro descritivo final mostra a crescente azáfama
produtiva das gentes que trabalham a terra,seguindo o ritmo biológico
da Natureza e das estações do ano, extraindo da terra os seus
frutos, alimentando-se dela como de uma mãe primordial. A influência
de Pedro na comunidade continua a crescer, mediante a preocupação
demonstrada pelas condições de vida dos trabalhadores nas terras
que pertencem à família.
O capítulo VII marca a entrada na
segunda parte do romance: o movimento “Adagio”, muito mais breve
que o primeiro, contendo apenas um capítulo. Este “Adágio” é
como que um momento de suspensão face ao resto da narrativa,
antecedendo o desenvolvimento brusco do movimento seguinte. O ritmo,
nesta fase de curta duração, é ainda mais lento do que na primeira
parte mas mais fluido. O peso dos dias e a inactividade causada pelo
isolamento, devido a estradas intransitáveis, causadas pelo degelo e
pelos dias ainda álgidos, fazem as horas arrastarem-se. Por outro
lado, é nesta fase da intriga que o plano delineado por vontade
alheia à do protagonista, começa a ser posto em marcha. Pedro comete
um erro fatal, caindo na cilada que lhe preparam, cometendo um
deslize que depois irá precipitar a escalada de acontecimentos
negativos da terceira parte do romance e culminam no desfecho
trágico, ou a derrocada final, já no movimento Staccato.
Uma palavra sobre a personagem
Fernanda: contrariamente ao que seria de esperar não se trata de um
personagem que se torna simpática ao público feminino, ao contrário
da cozinheira Graciosa, uma mulher simples, mas transparente, que dá mostras do seu contentamento para com o patrão cozinhando-lhe
leite-creme. Fernanda tem uma presença arrogante, marcada logo pela
entrada em cena, pautando o seu comportamento e imagem pela
extravagância e não pela discrição, fazendo questão de
demonstrar ostensivamente o quanto se destaca das outras figuras
femininas. O visual kitsch com que se apresenta é muito semelhante ao de uma
personagem de uma série norte-americana dos anos oitenta Fame ou quando muito, o de uma
personagem do filme Grease. No entanto, a autonomia e a
profissão que desempenha despertam curiosidade não só no
protagonista como no leitor. Infelizmente a vulgaridade que deixa
transparecer na imagem exterior é, realmente, a projecção do “eu”
de Fernanda que o narrador vai deixando entrever neste "Adágio" e se
revela em toda a sua abjecção no “Staccato”.
O movimento “Stacatto” de Atrás
dos Montes é composto pelos capítulos VIII, IX e X. O ritmo da
narrativa obedece a uma cadência bastante mais acelerada que, mesmo
ao chegar ao final, sofre uma suspensão violenta ou, se quisermos,
uma paragem brusca. Staccato. Estacando. Estagnando. Suspendendo.
Nos capítulos VIII e IX, o narrador
passa a ser de primeira pessoa, autodiegético e, portanto, levado a cabo pela voz de
Pedro, que conta a forma como se processa a sua derrocada. A versão
do protagonista contraria a versão “oficial” da história, difundida na e pela comunidade. Dois pontos de vista opostos mediados por uma terceira voz, aquela que narra os restantes
capítulos. O ponto de vista de Pedro é crucial para se obter um
termo de comparação, porque é ele quem está na posse de
informação fundamental, que não é do conhecimento geral mas que muda
completamente a configuração dos factos: quem foi na verdade
contemplado no testamento de D. Augusta, quais os verdadeiros fins da
Fundação Pedra Viva e, por último, quem e durante quanto tempo
deverá estar encarregue da sua gestão.
Por motivos vários, que compreendem uma série de
peripécias, sucedidas entre o final da segunda parte e nos dois
primeiros capítulos da terceira, não é a versão completa dos
factos que chega ao conhecimento geral. A narração autodiegética de Pedro, à
laia de depoimento, ou diário, vem colocar as coisas no seu devido
lugar, descrevendo o processo, gradual e cumulativo, iniciado no
final do Inverno, descrito na primeira parte até ao Outono do ano
seguinte, que compreende uma complexa rede de intrigas. Tudo isto tem
como consequência o progressivo isolamento do protagonista,
encurralado na casa que é a sua fortaleza, onde conta com o apoio e
lealdade de Graciosa lá dentro e de Joaquim, fiel amigo, cá fora. Fora de casa, estala uma
autêntica guerra de nervos, uma guerra psicológica, cuja principal
arma é a difamação, que vai minando a resistência de Pedro. O tom, essencialmente narrativo, neste “staccato”, explica a aceleração
do ritmo da acção.
O desânimo é a nota dominante no
final do capítulo IX, com o ambiente dionisíaco da festa do fim
das colheitas, a transmitir um certo desalento Pasoliniano com um
toque burlesco de Buñuel, como no filme “Viridiana”.
No capítulo X, a narrativa de Pedro é
suspensa e surge, à laia de epílogo, novamente a voz do narrador de
terceira pessoa, a dar uma visão mais global e distanciada dos
acontecimentos e a dar conta da evolução das personagens, num tempo
mais recente, a posteriori portanto, da casa e daqueles que a
habitam, incluindo Pedro, que foi, outrora, um jovem promissor mas que, agora, se afunda na ruína. A casa e ele envelhecem juntos, fundindo-se as almas de
ambos, como se fossem um casal, inseparável até à morte.
Atrás dos Montes é um
retrato pessimista, mas próximo da realidade do Portugal mais
afastado do centro de decisões e do olhar dos media, onde o controle
social e o exercício do poder locais são feitos com mão de ferro e pelas
vias mais tortuosas, o que explica o facto de o
tempo ali parecer stacatto, suspenso e estagnado, paralisado de forma
abrupta, como no movimento final desta narrativa.
Cláudia de Sousa Dias
17.12.2014-22.01.2015
Podem ler um pouco mais sobre a ligação do autor a Portugal, aqui:
http://www.cmjornal.xl.pt/cultura/detalhe/funeral-de-gerrit-komrij-amanha-em-vila-pouca-da-beira.html
http://www.cmjornal.xl.pt/cultura/detalhe/funeral-de-gerrit-komrij-amanha-em-vila-pouca-da-beira.html
11 Comments:
Já há comentários:
na página "o que andamos a ler"
Ofelia T Cabaço Cabaço e Isabel Victor gostam disto.
Ofelia T Cabaço Cabaço O seu blog é fantástico. tem boas leituras e é muito personalizado. Gosto muito. Quanto a este livro, nada sei do autor. Fiquei curiosa e vou procurar o livro e ler. Obrigada
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Claudia De Sousa Dias Obrigada, Ofelia T Cabaço Cabaço!
Agora mesmo · Gosto
Claudia De Sousa Dias
Escreve um comentário...
E no mural de Cláudia de Sousa Dias
Antonio Pinto-Correia gosta disto.
This comment has been removed by the author.
Penso que os leitores se estão a apaixonar pelo Autor!
A página "o que andamos a ler" já tem mais gostos em Komrij:
Ofelia T Cabaço Cabaço, Isabel Victor e 2 outras pessoas gostam disto.
Ofelia T Cabaço Cabaço O seu blog é fantástico. tem boas leituras e é muito personalizado. Gosto muito. Quanto a este livro, nada sei do autor. Fiquei curiosa e vou procurar o livro e ler. Obrigada
8 h · Não gosto · 1
Claudia De Sousa Dias Obrigada, Ofelia T Cabaço Cabaço!
4 h · Gosto · 1
Ana P. P. Ribeiro Parece muito interessante...
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essoas que gostam disto
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Ofelia T Cabaço Cabaço
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Tu, Dalila Sepulveda, Luisa Brandão e 3 outras pessoas gostam disto.
Claudia De Sousa Dias Obrigada, Marta!
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Claudia De Sousa Dias
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Gostei muito de conhecer este autor. E esta sua obra, "Atrás dos Montes", me parece de leitura obrigatória, perscrutando esse olhar sobre a nossa realidade.
Bj
Olinda
Bj, Olinda.
Este é o país que Komrij descreve nos anos oitenta.
Ainda restam uns bocadinhos.
Esqueci-me do link. Aqui vai:
http://www.publico.pt/sociedade/noticia/se-ponho-luz-ainda-aparecem-ai-a-dizer-quem-mandou-1687879
Cara Cláudia,
Por favor dê-me o seu email.
Como adorei tudo o que escreveu sobre os meus livros de contos e entrou dentro deles melhor que ninguém, gostaria muito de a convidar para o lançamento do meu novo romance "A Matéria dos Sonhos" que será no dia 8 de Julho e quero enviar-lhe o convite!
O meu mail é:
mariahelenamalheiro@gmail.com
Um abraço,
Helena Malheiro
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