"O Homúnculo" de Natália Correia (REDIL)
O Homúnculo é uma peça de teatro,
escrita nos anos sessenta por Natália Correia, que se manteve inexplicavelmente na obscuridade até agora, mesmo após terem já passado quarenta
anos desde a queda da ditadura do Estado Novo. O Homúnculo teve apenas uma leitura encenada, à
porta fechada, antes do 25 de Abril, na Faculdade de Letras de Lisboa,
tendo a sua edição impressa sido imediatamente apreendida pela PIDE
antes sequer de chegar ao público e a Autora, detida para
interrogatório. A peça consiste numa sátira onde a figura de
Salazar (que é peça é incarnado pela figura de el-rei Salarim) é completamente destituída da majestade e solenidade que caberia a um chefe de estado. Salarim apresenta-se como a figura que representa o Reino da Mortocália, no qual as pessoas que o habitam vagueiam pelo território como
mortos-vivos.
Segundo Fernando DaCosta, autor da nota
de edição, para esta publicação da REDIL (editora de que é
proprietária a também escritora Luísa Monteiro), intitulada de
“Salazar não dormiu”, refere o mal-estar que acometeu o
ditador após ter lido a peça, pelo que esta obra nunca conheceu, com efeito,
qualquer contacto com o público:
«Os censores de então não precisaram
de perceber toda a subversão do texto para o cortarem. Salazar, que
o leu num serão, não conseguiu, impressionadíssimo, dormir nessa
noite. No dia seguinte, Silva Pais procurou-o
para lhe comunicar a apreensão da obra e a (iminente) prisão da
autora.
Depois de prolongado silêncio, o
Presidente do Conselho de Ministros respondeu: “Fizeram bem em
retirar o livro mas não toquem em Natália Correia porque é uma
pessoa muito, muitíssimo inteligente!"».
O episódio seria contado à visada,
que o divulgou, por um íntimo do director da antiga PIDE.
Natália Correia seria, como se sabe,
processada mais tarde pelo governo de Marcelo Caetano, escandalizado
por ela ter organizado uma antologia de poesia portuguesa erótica e
satírica.» (Fernando DaCosta, in O Homúnculo, 2015, p.8)
A obra consiste numa farsa a que a autora
havia categorizado de “tragédia jocosa” ao longo da qual é
impiedosamente satirizada a imagem de Salazar, tanto no que respeita
ao ethos que é projectado para o exterior através das suas
aparições públicas quanto à projecção do seu eu nas relações
pessoais e no exercício do poder com os actores com os quais a figura alegórica de Salarim contracena. Aqui, pode-se dizer que estamos nos antípodas do “Eu”
projectado pelo olhar da figura feminina do livro do jornalista Miguel Carvalho
A última Criada de Salazar cuja recensão publicámos neste
mesmo espaço há cerca de um mês.
Fernando DaCosta explica a
extraordinária longevidade do repouso desta obra teatral na
obscuridade: “O tom ora vertiginoso ora jocoso
de Natália (…) não era (não é) suportado pelos autoritários do
poder”. A asserção colocada entre parêntesis no presente do
indicativo parece explicar ainda o porquê do silêncio da
Comunicação Social Portuguesa e da crítica especializada face àquele que deveria ser considerado o acontecimento literário do
ano, como se esperaria que fosse a publicação de um inédito de
uma autora como Natália Correia.
Armando Nascimento Rosa, o dramaturgo e
encenador encarregue de levar a peça à cena em Setúbal, em Maio
último, e de dirigir várias récitas no Verão passado, explica num
detalhado prefácio a odisseia sofrida pela primeira edição em 1965
pela Contraponto, corajosamente encabeçada pelo indomável Luiz
Pacheco e que jamais chegou sequer a ser distribuída. Rosa executa
também uma cuidada análise literária, acompanhada da adequada
contextualização histórica, quer das personagens que compõem a
peça quer dos factos e acontecimentos por elas protagonizados. Por
exemplo, na peça, Portugal recebe a provocadora designação de
Mortocália (Terra dos Mortos), o lugar onde toda a população está
cerebralmente paralisada e todo o pensamento é estiolado na sua génese
por ordem expressa de Salarim. Este, o Bispo ( a máscara do Cardeal Cerejeira) O
General e o Professor são tipos criados por Natália Correia para
recriar a realidade da cena política do Estado Novo através da
ficção, revestindo-a de uma cobertura surrealista que se enquadra
no movimento artístico e literário da época (de que foi precursor
em Portugal o grupo de intelectuais que integraram a revista Poesia
61) ao mesmo tempo que tentava iludir, na medida do possível, a
acção da censura. No entanto, para Armando Nascimento Rosa a Autora vai
ainda mais longe, colocando em evidência o prazer com um ligeiro toque de perversão que a escritora tinha em provocar as consciências mais reaccionárias e de desafiar o poder sobretudo quando este se aproxima da tirania afectando o direito à liberdade expressão e pensamento do ser humano:
«Decorrendo a acção no palácio de
el-rei Salarim, “senhor absolutíssimo da Mortocália” (Correia,
1965:11), os jogos onomásticos e semânticos são provocatoriamente
transparentes: se o nome Salarim remete para o ditador, já o lugar
mortuário da fábula, Mortucália, é o epónimo fabulístico que
designa o Portugal da ditadura, que sacrifica a sua juventude numa
guerra colonial em África, iniciada em 1961. Reino de Tánatos
ainda, porque repressor do princípio do Eros, no qual o sádico
Salarim proíbe o acto de urinar, metáfora explícita do sexo:
“ordenando que se obstruíssem os orifícios por onde machos e
fêmeas, se obstinavam, em praticar essa antiga necessidade”.
(Correia, 1965:21)»
Já em relação aos estereótipos
sociais Rosa defende que a autora "(...) joga na cena essa cumplicidade
entre o poder político e o eclesiástico que caracterizou o fascismo
lusitano; nomeadamente numa submissão equívoca da Igreja face ao
status quo do Estado Novo.» (Rosa, in n, Correia, 2015,
p.14).
Por outro lado o Bobo, a que chama de Mnemésicus, que se limita a memorizar dados sem os repensar para formar novo conhecimento, representa o
poder cultural institucionalizado e académico, o cânon, em que se
apoia Salarim, e sobre o qual este último constrói o seu suporte técnico e
ideológico para justificar as suas políticas. Este poder
cultural e técnico será ainda assim neutralizado pelo poder eclesiástico, na
pessoa do Bispo, em conluio com o poder militar, transformando el-rei
Salarim num espantalho que se limita a afugentar, paranoicamente, as
aves que ameaçam o seu poder comendo dos frutos da terra que
considera apenas sua.
O General actua como fantoche do
Bispo, que o manipula sem grande dificuldades. Também Meneme
sicus, o Bobo é durante algum tempo outro dos seus
fantoches, até o Bispo decidir tirá-lo de cena num golpe palaciano, agindo em conjunto com o General.
Armando Nascimento Rosa aponta também para a
inter-textualidade existente nesta peça de Natália Correia com a
obra Fausto de Goethe:
«Contém esta peça a parábola do que
sucede ao intelectual que se alia ao poder ditatorial, para usufruir
dos privilégios deste. (…) a sua voz acaba por ser silenciada pela
conspiração dos poderes (eclesial e militar) que lhe disputam
influência e o controlo do déspota.»
Sendo assim, o Bispo desempenha o papel de um maquiavélico Mefistófeles sedento de poder e a quem todos acabam por entregar a alma. Após a suspensão do rival e adquirir controlo do General que acumula as funções de Ministro da
Agricultura, olhando o país como se do seu próprio quintal se
tratasse, desviando a sua atenção da defesa do Império, o bispo cresce em
influência junto do ditador. Mais do que isso: agiganta-se ao conseguir transformar Salarim
numa sombra, num fantasma de si mesmo, num homúnculo, um Golem. Aqui, Rosa faz notar que que a palavra "homúnculo" admire mais que o significado meramente físico
(homem
de muito pequena estatura) ou psicológico (homem sem importância, abjecto, vil, ridículo), mas surge antes na peça de
Natália Correia muito próxima do seu significado alquímico, isto é,
de uma criatura minúscula, desprovida de corpo, de sexo, sem peso, mas dotada de poder
sobrenatural, fabricada poro Bispo que tem mais de bruxo do que de santidade.
Por
último, a cena termina com uma demolidora alusão à política do
empobrecimento da população que foi levada a cabo pelo ditador cuja principal consequência foi a manutenção do povo na miséria e na ignorância, crente
na recompensa de uma vida inteira de sacrifício cujo contraponto
seria encontrado numa vida de abundância a ser vivida no Reino dos Céus. A última cena consiste precisamente num quadro ilustrativo da síndrome de
Estocolmo, sofrida pelo mesmo povo desesperado pela demanda de um paraíso no qual precisa de acreditar a qualquer custo para conseguir continuar a defender o seu opressor ao afirmar "Bendita a fome que nos faz ver anjos!"
Rosa
termina o prefácio a esta edição traçando a analogia entre a
fábula de Natália e a situação do País em dois tempos
históricos, o do Portugal do Estado Novo e o dos nossos dias:
«Mas
longe de esgotar-se nas figuras e no contexto epocal que serviram de
motivação criativa à dramaturga, O Homúnculo pode hoje, melhor
ainda, observado à distância temporal que o afasta do módulo
específico que o satirizou, considerar-se um impiedoso exercício de
inteligência cénico-política, destinado à pulsão do poder
absoluto que fabrica ditadores, nos diversos quadrantes do espectro
ideológico, que se tornam num só, quando o denominador comum é a
perigosa ficção totalitária.» (Rosa, in O Homúnculo, Correia, 2015, p.18)
A
detalhada didascália, presente ao longo da peça serve para
modalizar o tom do discurso, através da descrição das
alterações no ritmo e na prosódia, para assim permitir-nos
adivinhar o efeito pretendido naqueles a quem se dirige o discurso, que não são apenas os intervenientes da história, mas também e sobretudo os leitores ou
espectadores. Aqui é fulcral o papel da mesma didascália para que se perceba a mudança de tom na voz das personagens e a relação que se vai estabelecendo entre locutor-enunciador e respectivo(s) interlocutores, que no caso do Bispo se vai convertendo numa interessante relação de cumplicidade entre este e o leitor-espectador à medida que cresce em importância na história. Crescimento inversamente proporcional ao de Salarim à medida que o desfecho se aproxima.
De
entre todas as personagens tipo que são visadas na peça é o Bispo
quem projecta a imagem de homem extraordinariamente astuto, estabelecendo ele
próprio também uma relação de cumplicidade conspirativa com o
leitor/espectador, chegando a dirigir-se-lhe directamente, alterando o tom de
voz, por exemplo. O dialogismo presente
na peça ocorre assim a duas instâncias ou níveis (Marques cita.
Ducrot, 2000) 1): por um lado, em diálogo interno, entre as personagens; e por outro lado, num diálogo externo, com
o público como destinatário do discurso, nascendo daí a proximidade
cúmplice com o Bispo.
O
texto de Natália Correia foi escrito há mais de cinquenta anos mas
a sua actualidade é inegável. É privilégio nosso que as
palavras da Autora vejam finalmente a luz do dia e a peça seja levada à cena pelo Teatro Estúdio Fontenova, de que se
espera que seja feita uma digressão pelo país. Esperemos que o arrancar da obscuridade esta denúncia de um passado (e presente?) distópico seja um prenúncio para a reedição de A Pécora, que seria a sua continuidade.
Cláudia de Sousa Dias
Londres
22 de Novembro de 20015
Bibliografia e webgrafia consultadas:
1) Marques, Maria Aldina Bessa Ferreira Rodrigues, 2000, Funcionamento do Discurso Político Parlamentar: a organização Enunciativa no Debate da Interpelação do Governo, Braga, Universidade do Minho
2) http://www.sapo.pt/noticias/o-homunculo-de-natalia-correia-faz-50-anos-e-_5504203ffb22aa6c0c699315
2 Comments:
Completamente actual!!!
Beijinhos e feliz 2016!
Obrigada, Amiga! Um bom ano para ti!
Post a Comment
<< Home