"Gustav Klimt: The World in Female Form" by Gilles Néret (Taschen)
A arte, o Eros a rebeldia são as
dimensões mais focalizadas nesta publicação que tenta dar a
conhecer o génio de um artista misantropo. A Taschen explica neste fascículo o
percurso artístico do pintor austríaco Gustav Klimt, inserindo-o e
ao seu trabalho no contexto sócio-histórico da Viena no final do
Império Austro-húngaro afim de que se perceba o alcance do seu olhar crítico sobre as Artes, as Ciências e as coisas do quotidiano.
O pintor nasce em Viena, na segunda
metade do século XIX (1862) vindo a falecer no ano em que termina a
Primeira Guerra Mundial e se desagrega o Império Austro-húngaro.
As ideias-chave que surgem nesta
síntese e contextualização da obra do pintor por Gilles Néret, historiador da arte, editor e escritor, assentam essencialmente no divórcio dos vienenses entre a realidade
(o conflito latente no Império) e a ilusão (a falsa ideia de
prosperidade contínua), na sua ligação ao movimento artístico
caracterizado pelo secessionismo e simbolismo, no destaque dado ao
arquétipo da mulher fatal na sua pintura, a ligação a Beethoven e
à temática que perpassa na “ode à Alegria” na nona sinfonia
daquele compositor alemão, nas diversas técnicas usadas do seu
trabalho, na profusão dos detalhes e no erotismo na Arte de Klimt. Sem
descurar a forma como este artista rompeu com o cânone que dominava a Academia
das Artes Plásticas vienense, a qual assentava maioritariamente nas
correntes do realismo e do romantismo.
A parte biográfica do trabalho de
Néret refere de passagem os pais de Klimt: o pai, gravador e
ourives, trabalhando os metais e a mãe dotada de talento musical,
mas sem chegar nunca a profissionalizar-se, permanecendo o seu talento
oculto, na obscuridade, reduzido à esfera doméstica e familiar. Néret dá a entender que o talento de Klimt foi, desde idade muito precoce, estimulado pela convivência quotidiana com
as artes, o que cedo lhe despoletou o desenvolvimento da sua
sensibilidade artística: apesar de os Klimt serem uma família de
poucos recursos, o jovem Gustav manifava, na adolescência o desejo de se
tornar professor de desenho.
Viria a casar com Helena Flöge, em
1891, seguindo-se a morte do pai, um ano depois. Este facto
despoleta-lhe um estado de espírito depressivo, sombrio, que acabará
por se reflectir durante algum tempo, na sua pintura projectando-se na atmosfera dos seus quadros, que surgiam então com
tonalidades mais sombrias e lunares, aproximando-se do trabalho dos
pintores simbolistas, seus contemporâneos.
Um pouco antes, em 1890, um seu
tríptico, uma alegoria antropomórfica ou melhor
ginomórfica, representando a Medicina, a Filosofia e a Jurisprudência, desencadeou reacções bastante negativas na crítica e na elite
intelectual vienense que as considerava ofensivas e à sua obra, em
geral, pornográfica. Tal não impediu porém que Klimt participasse
na Exposition Universelle de Paris, para onde convergiram os pintores
modernistas dos quatro cantos da Europa.
Néret ao colocar em destaque a “golden
phase” do trabalho do pintor no capitulo dedicado às técnicas revolucionárias na
pintura de Klimt, mostra que este é largamente influenciado pelo
trabalho de gravador do pai, consagrando aos seus quadros a profusão
decorativa dos trabalhos de ourivesaria e a preferência pelos tons
de ouro nos seus quadros. Ao longo deste período, o seu trabalho é marcado pelo recurso à
técnica da “folha de ouro”, que usa frequentemente para revestir
os corpos das figuras femininas que protagonizam os seus quadros, mas Klimt recorre também à técnica do “mosaico”, inspirando-se
frequentemente nas figuras icónicas da hagiografia bizantina. O
texto de Néret é sobretudo descritivo, de carácter generalista e não
propriamente o resultado de uma detalhada interpretação da
composição de cada quadro do artista como faz, por exemplo, Yvette Centeno,
com um pequeno mas brilhante artigo publicado na Revista Mealibra (de
2005, nº16, série 3), onde faz a análise comparativa do celebérrimo
quadro de Klimt “O Beijo” com “O par” (Le Couple) de outro
pintor modernista, Arpad Szénes, casado com a pintora portuguesa
Maria Helena Vieira da Silva, consistindo este artigo numa reflexão
sobre a forma como ambos representam o feminino andrógino na respectiva obra.
Néret põe também em evidência o
apreço de Klimt por temáticas protagonizadas por mulheres
relacionadas com a mitologia clássica (Dánae, 1907), com as mulheres
fatais e sedutoras perversas da Bíblia (Judith, 1901), ou dando corpo a alegorias
(O Beijo, 1908). O talento de Klimt torna-o procurado pelas famílias
ricas da elite vienense, sobretudo de milionários judeus que lhe
pedem que lhes retrate as esposas e filhas. Estas encomendas
garantiam-lhe a independência económica de que necessitava para
viver exclusivamente da sua arte, sem limites no que tocava à sua
própria liberdade de expressão. A ênfase que é colocada neste fascículo por Néret na
preferência de Klimt pela representação do corpo, da nudez e da sensualidade femininos mostram uma mente cujo Eros transfigurava a
mulher vulgar, a cortesã vienense ou simples prostituta de rua em
deusa, figura bíblica, ou abstracção, imortalizando-a. Esta ideia é, de certa
forma corroborada pela já mencionada interpretação que Yvette
Centeno faz do quadro “O Beijo” no artigo intitulado “Androginia:
de Klimt a Arád Szénes” (Mealibra, 2005:25-28), onde analisa
detalhadamente a forma como é representada a Mulher em ambos os
quadros., sublinhando o enquadramento mandálico de ambas as obras e
o aspecto andrógino de ambas as figuras femininas para passarem os dois trabalhos a divergir, em primeiro lugar, nas tonalidades empregues – Szénes,
recorrendo aos tons sombrios, apostando nos contrastes violentos
entre tons claros e escuros onde predomina o negro que se destaca na sua composição estética, e Klimt, que opta pelo amarelo-ouro, a espalhar-se como poeira, envolvendo ambos os
elementos humanos do quadro, a ponto de os contornos físicos de ambos
os corpos se tornarem indistintos. Centeno compara-os, frisando que, enquanto o par representado no quadro de Szénes personifica a
união de dois seres que se amam, no quadro de Klimt o que se dá é
uma fusão onde os dois seres quase perdem a sua identidade. O Beijo é, portanto, o exemplo perfeito do lugar central que ocupa o Eros na obra
de Klimt, ocupando o lugar de primazia que na obra e no imaginário
do artista:
«O simbolismo andrógino de Klimt é
mais directo e o de Arpad mais discreto. Com Arpad sublinha-se o
atelier e a obra (ainda que sublimados); com Klimt evoca-se um
paraíso luminoso e sensual. O Par é, a seu modo, um “colectivo”.
O Beijo, uma fusão que leva à divisão do par e à unidade de uma
única forma primordial. Um andrógino, à imagem do que Platão
escreve no Banquete.
(…)
Klimt funde os amantes no beijo, Arpad
une, não funde, deixando o par atrás da mesa, não deixando que a
projecção total se manifeste: a mesa corta a unidade que o abraço
sugere.
(…)
A androginia do quadro de Klimt é
colorida, o chão do seu paraíso mandálico é um tapete florido,
como o Cântico dos Cânticos, celebra a fusão extática.»
Yvette Centeno in Mealibra, 2005.
Sendo Klimt uma figura esquiva no
tocante à vida pessoal, quase um
misantropo, como artista é, no entanto, um homem bastante interventivo
e sociável: abominava qualquer forma de protagonismo ou narcisismo,
não revelando o mínimo interesse em representar-se a si próprio. Como ele próprio afirma (ver 1 ), não desdenhava contudo a participação em eventos associativos ou de carácter intelectual, sobretudo no tocante à discussão e divulgação das
artes em geral: em 1905, fazia parte do movimento secessionista que, depois, se dividiu em duas facções, cabendo-lhe ocupar o lugar
central numa delas. Cada vez mais esquivo e reservado em relação à
vida privada, Klimt projectava a imagem pública de um artista de
vanguarda do século XX.
Em 1918, o pintor sofre um avc e é
hospitalizado. Durante o internamento, contrai uma pneumonia,
morrendo pouco depois, sendo enterrado no cemitério de Hietzing em
Viena.
Tal como indicia o subtítulo desta
publicação da Taschen, The World in Female Form, (O Mundo em
formato Feminino) mais do que a sugestão do protagonismo feminino na
obra do artista é o facto de a Mulher ocupar o lugar de destaque e
de poder no seu imaginário e no mundo que pretende retratar. Uma
Mulher que se apresenta como uma construção híbrida entre o divino
e o terreno, partindo das “Nini” (nome atribuído às cortesãs e
prostitutas da Viena do início do século XX) que surgem nos seus quadros deificadas e
imortalizadas. Estas suas “deusas” despoletaram o embaraço e,
por vezes, alguma indignação nos sectores mais conservadores das
elites vienenses quer intelectuais quer nda aristocracia. Uma reacção que
o pintor soube enfrentar com humor seco, mesclado com uma pontinha de
desprezo, atirando-lhes com uma citação do poeta alemão Schiller:
“Kannst du nicht allen gefällen
düch deine Hat
und deine Künstwerkmach
es wenigen recht
vielen gefällen ist.”
[Se não conseguires agradar a todos
enfia o teu chapéu e a tua sabedoria
Haverá pelo menos alguém
que saberá apreciar. (Tradução
minha)]
Por cima desta inscrição, no quadro,
o retrato de uma Eva com ar de “Nini”, desafiante na sua
nudez, ostentando um pequeno espelho na mão, exibindo uns arruivados
pêlos púbicos, com a serpente (símbolo ambíguo: ora do
conhecimento, ora da tentação ora da sedução erótica)
estendendo-se insidiosamente a seus pés, junto à inscrição que dá
título ao quadro: “Nuda veritas” (a Verdade nua).
Pela forma como Néret descreve o
trabalho de Klimt e faz o seu enquadramento histórico, social e
estético, pode-se facilmente deduzir que Gustav Klimt era um homem muito pouco convencional. Mais mais do que isso: dificilmente enquadrável
em estereótipos, de pensamento crítico acutilante, um verdadeiro iconoclasta e um homem muito à frente do seu tempo.
O autor desta mini-biografia
dá-nos algumas pistas que permitem ao leitor entrever algumas das
razões pelas quais se torna tão fascinante o estudo da sua obra, permitindo-se ao mesmo tempo lançar um pouco de luz sobre a
personalidade do artista o qual, ao contrário do que afirmava, é
alguém muito mais interessante do que aquilo que o próprio deixava
transparecer.
Fica aqui a sugestão de leitura e o desafio à
investigação com vista à escrita de uma obra biográfica ou mesmo
ficcional. A quem tiver fôlego para tal empreitada.
Cláudia de Sousa Dias
12.09.2025
1“Anyone
who wants to find out about me – as an artist, which is all that
is of interest – should look attentively at my picturtes.”
6 Comments:
Muito interessante, este ensaio, carregado de boa informação, parabéns, e obrigada pelas amáveis referências!
Obrigada eu, Professora Yvette Centeno, pelo material que me disponibilizou e, sobretudo, pela visita!
Comentário de Paulo Rufino, no blogue "Um jeito manso":
«Anónimo Anónimo disse...
Claudia Sousa Dias,
Klimt disse um dia que “toda a arte é erótica”. Duvido (e discordo até), mas enfim, são opiniões, embora não me repugne (de todo) a ideia. Klimt produziu inúmeras cenas com mulheres nuas, ou em poses eróticas. Tem obras e variadíssimos desenhos desse tipo. Porquê este comentário? Bem, porque não consegui meter no seu Blogue, visto o acesso ser diferente do que aqui, no do UJM, se pode fazer. Sobre Klimpt haveria muito a dizer. Tenho grande respeito pelo artista em questão.
Cordialidade!»
P.Rufino
outubro 09, 2015
E se eu lhe dissesse que não me chamava Paulo, mas outro nome?
Excelente Blogue este seu! Vou passar a segui-lo com mais regularidade. Felicidades! E bom fim de semana.
P.Rufino
Obrigada, P. Rufino, pelo comentário em "Um jeito manso" e por passar aqui.
CSD
Agora sou eu que vou fazer copy paste daquilo que aqui escreveu, sobre Klimt. Gostei, bastante!
P.Rufino
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