“a pata da cabra” de Maria Quintans (Cama de Gato)
Maria Quintans não é uma
poeta que possamos ver com frequência largos círculos de
distribuição livreira do país. No entanto, tem já um vasto currículo de
publicações em editoras independentes. e é presença assídua no
encontro luso-hispânico de poesia, realizado anualmente em Vila Nova
de Famalicão, as Raias Poéticas. Maria Quintans publicou
em 2008 Apoplexia da Ideia, em 2011 publica Chama-me
Constança e três anos depois, em Junho de 2013, lança O
Silêncio sobre os seus leitores. a pata da cabra
surge em 2014, com o lançamento no encontro internacional de
escritores Correntes d'Escritas, na Póvoa de Varzim. Tem
ainda poemas publicados em várias antologias e textos dispersos
pelas revistas Big Ode, Inútil e Golpe
de Asa.
a pata da cabra é
um livro consagrado à imaginação, emergindo a partir da inspiração
de André Breton e estendendo-se debaixo da sombra abarcada pela mesma
imaginação, denunciando também a influência do simbolismo de Paul Éluard.
Nas duas epígrafes, a servir de introdução ao livro, está patente a temática central que orienta o impulso criativo que se inscreve no discurso do sujeito poético:
«Chère imagination, ce que j'aime surtout en toi
c'est c'est que tu ne pardonnes pas.»
André Breton
«Je sors aux bas des ombres,
se suis aux bas des ombres»
Paul Éluard
Da primeira citação, de André Breton, podemos tirar duas ilacções: a primeira é que este é um
livro que projecta a voz de alguém para quem o imaginário e o
impulso criativo não se curvam perante quaisquer limites sejam eles
de ordem ideológica ou estética; a segunda é a de que se trata de
um livro cuja missão é incomodar, causar desconforto, rebelar,
expor aquilo que a maioria dos seres humanos se recusa a ver.
Na segunda, a referência à “sombra” indicia que a leitura irá obrigar a um
certo esforço de descodificação de onde o significado latente das
frases exige ao leitor a capacidade para “ler nas entrelinhas”...
Surrealismo e por vezes dadaísmo marcam a a forma de expressão de
Maria Quintans: as imagens sucedem-se com as que nos vão surgindo
nos sonhos, como quadros ou fotografias durante uma apresentação de
diapositivos. Um caleidoscópio de imagens oníricas, cujas formas
vão desfilando diante dos nossos olhos. Algumas sugerem a ligação
com uma realidade duríssima do quotidiano. Essas imagens vão-se
metamorfoseando diante dos nossos olhos sob a forma de palavras que
deslizam no nosso imaginário como as sombras da caverna de Platão, pequenos estilhaços do real, para ilustrar fragmentos de
vida (ou de não-vida) no quotidiano através do olhar do sujeito
poético que enuncia o discurso:
«1. O sonho tem um caminho que se descreve em meia dúzia de
palavras. A ideia encanta-me e encanta-nos a todos, porque é por aí
que se encontram nas águas fechadas do tempo. Ainda há pouco, por
ali, naquela rua que desce das amoreiras para o rato, encontrei um
homem com um lago de lágrimas na boca. O homem gemia e aconchegava
um cobertor sujo ao pescoço. Nunca o tinha visto mas sabia que
pintava cordas à volta do pescoço das mentes que andavam no
autocarro que parava nas amoreiras e descia para o marquês. O homem
estava morto. E todas as paragens do autocarro se taparam com
bandeiras negras entre o rato e as amoreiras, para todos se lembrarem
do homem que pintava cordas presas ao pescoço dos mortos que andavam
de autocarro. Ninguém mais andou de autocarro entre o rato, o
marquês e as amoreiras.
A carris queixou-se. O Homem continuava a pintar.»
O último enunciado muda toda a perspectiva do texto, contradizendo
aparentemente aquele diz que o homem está “morto” e todo o
discurso que se lhe segue até ser desmentido pela frase/enunciado em questão com que termina o texto. Na verdade, o homem em estado "morto" trata-se de uma imagem de
conteúdo onírico, como um sonho ou uma visão, onde ao pintor se
lhe extingue a esperança, tal como acontece às pessoas que pinta no autocarro, com a corda à volta do pescoço, enforcadas, asfixiadas e silenciadas, com os movimentos
limitados, as palavras exíguas ou que nem chegam a ser pronunciadas devido ao garrote que lhes impõe o quotidiano ou a necessidade de sobrevivência. O autocarro é uma espécie de antecâmara da morte.
E se este primeiro texto chama a atenção para a ataraxia, para a
imobilidade, para a tentação da inércia, que submete os
passageiros do autocarro, os cidadãos à condição de robots como
peças de uma engrenagem numa linha de produção, no texto 3., no qual o
sujeito poético adopta um tom bastante mais contundente, marcadamente assertivo, sendo esta a tónica dominante no discurso poético deste livro:
«3. É preciso criar o corpo do poema como se fosse pedra onde a poeira se acumula de vícios e razões.
É preciso ter o prodígio da cama onde todos os poemas se confundem de moléculas e cabelos abertos ao pente da estrada.
É preciso ser poeta para ouvir música e decifrar as passagens da luz entre as frestas da janela onde dorme a cabra que se esqueceu de escrever os versos que o animal mia.
É preciso ter frio e comer da barriga das aranhas todas as moscas tecedeiras de solidão. É preciso ter osso e um par de mãos de pedra adornadas de mordeduras fundas e tão falsas como improváveis.
É preciso ter fome.»
Sendo o poeta um pintor de imagens mentais construídas a partir de palavras, este pode identificar-se com o ponto de vista do pintor que é o objecto da atenção do poeta no primeiro texto: o pintor revela a morte mascarada de vida que vagueia pela cidade, como um vírus que infecta os cidadãos. Até o amor se encontra revestido, contaminado pela morte, nestas circunstâncias, tornando-se pàthos surgindo associado a palavras como “agonia” e “humilhação” como no texto 13. :
«13. o que acontece entre nós é este nosso próprio conhecimento de dias longos e agonia. quando a humilhação se encontra com o outro há a gargalhada do absurdo que queima até a próxima palavra mesmo antes de ser dita.
Foi assim que tudo começou.»
Aqui, o amor não é o paraíso e não salva ninguém. Sobretudo quando sobrevive rodeado de “gelo” e luzes “apagadas”, podendo ser conotado com o Inverno, a decadência ou até a proximidade da morte (14. e 15.). Só o fogo consegue expulsar o frio associado ao lento estiolar da vida.
«3. É preciso criar o corpo do poema como se fosse pedra onde a poeira se acumula de vícios e razões.
É preciso ter o prodígio da cama onde todos os poemas se confundem de moléculas e cabelos abertos ao pente da estrada.
É preciso ser poeta para ouvir música e decifrar as passagens da luz entre as frestas da janela onde dorme a cabra que se esqueceu de escrever os versos que o animal mia.
É preciso ter frio e comer da barriga das aranhas todas as moscas tecedeiras de solidão. É preciso ter osso e um par de mãos de pedra adornadas de mordeduras fundas e tão falsas como improváveis.
É preciso ter fome.»
Sendo o poeta um pintor de imagens mentais construídas a partir de palavras, este pode identificar-se com o ponto de vista do pintor que é o objecto da atenção do poeta no primeiro texto: o pintor revela a morte mascarada de vida que vagueia pela cidade, como um vírus que infecta os cidadãos. Até o amor se encontra revestido, contaminado pela morte, nestas circunstâncias, tornando-se pàthos surgindo associado a palavras como “agonia” e “humilhação” como no texto 13. :
«13. o que acontece entre nós é este nosso próprio conhecimento de dias longos e agonia. quando a humilhação se encontra com o outro há a gargalhada do absurdo que queima até a próxima palavra mesmo antes de ser dita.
Foi assim que tudo começou.»
Aqui, o amor não é o paraíso e não salva ninguém. Sobretudo quando sobrevive rodeado de “gelo” e luzes “apagadas”, podendo ser conotado com o Inverno, a decadência ou até a proximidade da morte (14. e 15.). Só o fogo consegue expulsar o frio associado ao lento estiolar da vida.
A ideia-chave do livro consiste na descodificação do jogo de
palavras e da provocação subjacente à metonímia que surge em 18., onde quase se pode identificar uma intertextualidade com a lenda da Dama de pé-de-cabra contada por Alexandre Herculano, aludindo à perversidade da voz que vem desestabilizar, um ser aliado de Satã, tentador ao acenar à humanidade com a sensação de poder que dá a aquisição de conhecimento:
«18. A tua pele é uma pata
A tua pata de pele
A tua pele de pata
A tua cabra de pele
A tua pata de cabra.»
Todos os textos de “a pata da cabra”, apesar da multiplicidade de géneros que os caracteriza, são marcadamente
polissémicos, qualidade que se reflecte quer nos textos vertidos em prosa poética, quer em
poemas de desenfreado erotismo, dísticos ou aforismos de um único
enunciado como em 29. Nalguns, o sujeito poético exprime-se através
de uma corrosiva ironia ou mesmo nonsense cuja intenção é provocar
o desconserto no alocutário (pessoa a quem é dirigido o discurso,
neste caso o leitor) o que aproxima um pouco a poética de Maria Quintans
do discurso poético de Adília Lopes.
Perante o desfile carnavalesco (e alegórico) da tragicidade da vida, nesta escrita fragmentária da poeta, sobressai o tom de melancolia de que é paradigmático o texto “46.
a invisibilidade admirável dos poetas”. Estes últimos sentem como ninguém
o peso da síndrome de Cassandra sobre os ombros, isto é, a maldição lançada por
Apolo de serem vistos pela larga maioria dos humanos como loucos, alienados, sem lhes ser dado o crédito ou o reconhecimento merecido, apesar de o Tempo (quase) sempre lhes
dar razão.
Maria Quintans é uma poeta que o mundo ainda terá de descobrir e aprender a ouvir. E
a resgatar do silêncio.
Cláudia de Sousa Dias
15.07.2015
2 Comments:
Não conhecia esta poeta, mas já me sinto aliciada depois de ler a tua resenha!
Beijinhos e boa terça :)
é uma poeta que publica em editoras que não estão no grande circuito comercial. Mas podes encontrá-la nas Raias Poéticas em Famalicão no último fim-de-semana de outubro.
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