A Paixão de Constança H. de Maria Teresa Horta (Bertrand)
Maria Teresa Horta quase que dispensa
apresentações. Já se falou dela aqui, neste mesmo blogue, a
propósito de “Azul-cobalto”, o conto que faz parte da antologia
Doze Histórias de Mulheres, primeiramente publicado em 1999,
e agora reeditado na compilação de contos de
MTH intitulada Meninas. “Azul-cobalto”
é uma precuela do romance de que falamos hoje, publicado pela
primeira vez cinco anos antes do referido conto ver a luz do dia.
Teresa Horta é sobretudo uma
poetisa – este ano reedita-se uma das suas primeiras obras do
género Minha Senhora de Mim, publicado pela primeira vez em
1971 – embora nas últimas décadas também se tenha destacado como
romancista.
Maria Teresa Horta tendo nascido em 1937, para além de se dedica ao jornalismo e à escrita literária, foi a primeira
mulher em Portugal a ser directora de um cine-clube. E, talvez por
isso mesmo, o cinema, sobretudo os clássicos das décadas de ouro em
Hollywood (1940 até finais dos anos '60 do século XX) e o Cinema
Francês da nouvelle vague influenciaram largamente a sua
escrita em prosa.
Na contracapa desta edição de A
Paixão de Constança H. de 2010, está escrito:
“A obra literária de Maria Teresa
Horta tem, frequentemente contribuído para alterar os modelos
estéticos e comportamentais instituídos e tem, muitas vezes, sido
ao longo das últimas décadas, um sinalizador de mudanças
essenciais, quer no âmbito literário, quer inclusivamente de
alcance social.
A Paixão segundo Constança H. traz
consigo toda a violência e todo o sofrimento daquele a quem coube em
sorte viver num mundo em transformação onde os valores tradicionais
da família e os aspectos a que nos tínhamos habituado a considerar
mais estáveis resvalam gradualmente para um terreno irrespirável”.
Estas afirmações só se tornam
inteligíveis se, entretanto nos inserirmos no contexto da produção da sua obra e após a
leitura do romance e do conto "Azul-cobalto", que lança uma nova luz na compreensão
do romance: A Paixão de Constança H é lançado
pela primeira vez na primeira metade dos anos '90 do século XX,
altura em que ainda se operavam importantes transformações na
sociedade relativamente à forma de encarar a sexualidade feminina. Trata-se de uma história que contém
uma trama desenvolvida a partir de um continuum cujos extremos
são a sanidade e a loucura. E, algures no meio desse continuum, está o limite, mais ou menos estreito e mais ou menos difuso, uma zona fronteiriça, cinzenta a separá-los. Toda a história é construída a partir do Eu de uma protagonista que tem todos os
traços de uma personalidade de estado limite ou personalidade borderline, que vagueia ora de um ora de outro lado na fronteira. E
que, na forma desconcertante como reage a um permanente estado de
insegurança, que a vai arrastando progressivamente para o abismo, lembra algumas personagens femininas dos filmes ou o
contos de Hitchcock, na maneira como é projectado o Eu desta
personagem e na forma como é apresentada a emergência do estado
de loucura e de lidar com a culpa. Freud é outra grande influência na forma como está construído o romance, vertido como se de um conjunto de sessões de psicanálise, abrangendo vários depoimentos e discursos para se obter um conhecimento mais profundo e complexo da personagem em questão se tratasse. A protagonista deste romance, Constança, é também a narradora de “Azul-cobalto”, que no conto relata em
tom confessional a sua própria infância centrando-se na relação
conturbada com a mãe e no processo doloroso de construção de uma
identidade própria.
A ligação entre ambas as histórias é
percebida devido à coincidência de episódios e cenas referentes à
infância de Constança, envolvendo a mãe da protagonista, que
ocorrem em “Azul-cobalto” num tempo
cronológico anterior ao do romance de que hoje aqui tratamos. Outra
característica comum a ambas as histórias, para além da referência
à cor azul-cobalto dos olhos da mãe de Constança em ambas as
histórias, é a presença do gérmen da loucura que ameaça constantemente a protagonista, emergindo de uma necessidade de amor exigente, permanente, raiando a
obsessão na voz da protagonista. O páthos nasce da
insegurança e de um omnipresente medo da indiferença e de um
hipotético abandono. Abandono que depois se
torna efectivo. Em ambas as histórias a trama é vertida
exclusivamente pelo ponto de vista da protagonista.
O impacto do texto de A Paixão
de Constança H. no leitor torna-se violento devido à
centralidade da protagonista, sempre que o texto é narrado na primeira
pessoa e à extrema passionalidade das emoções que são vertidas no
discurso da personagem. Mas até mesmo quando o discurso passa a ser
narrado na terceira pessoa e o narrador reproduz o pensamento da
personagem como se habitasse o cérebro da mesma é notória essa
violência de sentimentos. A técnica narrativa usada é o discurso
em Quasi-PEC (Quasi Pris-En-Charge), que aproxima de tal forma o narrador da personagem que
se torna por vezes difícil verificar a quem é imputado o discurso.
O narrador utiliza o jogo dos tempos verbais como estratégia
discursiva para ajudar o leitor a fazer um pouco essa distinção: no
caso deste romance, é usado o pretérito perfeito e imperfeito, na
forma de discurso indirecto, para ilustrar os comportamentos observados, e o presente do indicativo, com valor de presente
histórico, para aproximar o narrador da personagem como que entrando
no seu universo interior e diluindo a fronteira entre o tempo narrativo ou cronológico (constituído pelo desenrolar dos acontecimentos, com as suas interrupções, avanços e recuos) e o tempo de enunciação (o momento da produção do discurso pelo narrador). É precisamente nesta altura, em que a aproximação do ponto de vista do narrador e da personagem é tal, que o discurso
do narrador adquire a sua forma híbrida de Quasi-PEC, em que quase
se pode imputar a responsabilidade dos enunciados a qualquer um dos dois enunciadores, neste caso ou ao narrador-locutor ou à
protagonista. Mas na maior parte dos casos o que acontece é que, apesar de ser o narrador a
fazer a locução, isto é, ao proferir o discurso no momento de
enunciação, nas frases surgem no presente do indicativo e no gerúndio, é ilustrado sobretudo o pensamento e as emoções de Constança H. Vejamos, então a diferença e o impacto das duas “vozes”
presentes no mesmo discurso (itálicos meus):
« E a dor continuava, tumefacta. A
sensação de perda envenenando-a, espalhando a morte dentro de
si.
O ódio.
O começo do ódio a engrossar,
sem remédio, no seu peito, tentacular, repetitivo e por isso mesmo
com uma incidência única em todos os momentos da vida a partir em
todos os momentos da vida a partir desse momento: quando Henrique
falou: quando Henrique falou da sua traição.
“É o amor que me perde”, pensa
Constança.
O ódio, pelo contrário, alimenta-a.
O amor queima-a. Desguarnece-a. O
amor reduz a cinzas, é a porta do caos e do desassossego.
Quebra-a.
Quebra-a.
O ódio, pelo contrário, fortalece-a.
Pertinaz, forra-lhe as emoções, nunca a entrega. E a
odiar, as mulheres são melhores do que os homens. Como diz
Françoise Giroud, “elas podem ser duas e frias como pedras, com
arame farpado no coração.
Constança sabe, sente-o crescer
no seu peito, como se fosse uma planta, tomando conta de todo o
seu imaginário, de todos os seus sentimentos, de todos os seus
pensamentos: o arame farpado.» (p. 23).
Todos os enunciados com os verbos a
itálico no presente do indicativo, apesar de serem proferidos pelo
narrador, são na realidade expressão do pensamento e forma de
sentir de Constança, citados pelo narrador. De notar que a frase com sujeito elidido (o
amor) “Quebra-a” é enunciada duas vezes: a primeira dentro do
parágrafo com uma série de enunciados que têm por sujeito “o
amor”, mas a segunda vez em que é proferida surge separada do
parágrafo anterior, como se fosse um eco.
Apesar de esta forma de escrever ter
muito a ver com a escrita literária de Virginia Woolf, a escrita
fragmentária de A Paixão de Constança H., tão profundamente
passional, é sobretudo durasiana. Marguerite Duras é, inclusive,
referenciada no discurso da narradora enquanto enumera os autores
preferidos de Constança e que ajudam a construir a identidade desta
(p. 56), a par de Clarice Lispector, Sylvia Plath, Mariana
Alcoforado. Inserido no corpo do texto, há trechos de narração em
primeira pessoa, como bilhetes, cartas e poemas de Constança,
atestando as sucessivas alterações da personalidade na protagonista
e as diversas facetas do seu Eu, podendo-se traçar um paralelo entre
a solidão e o desamor descritos e sentidos relativamente à infância
de Constança em “Azul-cobalto” e as crianças filhas de
Constança, no romance do qual falamos hoje e ajudando a dotar o
discurso de A Paixão de Constança H. da dimensão polifónica
que o caracteriza.
A Paixão de Constança H. é, mais do que tudo uma tragédia que se aproxima muito dos clássicos gregos, desenvolvendo-se em crescendum através da
desestruturação do Eu assente no minar da autoconfiança, podendo por isso ser facilmente ser transformada num drama neo-clássico e levada à
cena.
Maria Teresa Horta subverte ainda,
neste livro, não apenas as convenções do comportamento ou da
sexualidade, escrevendo sobre aquilo que causa incómodo ainda hoje
numa sociedade durante muito anos submetida ao poder patriarcal, mas
também as convenções da narrativa, onde a poesia se cruza com a
prosa adquirindo, por vezes laivos de romance epistolar. A nível
temático o toque de provocação surge com a oposição entre Eros e
Tánatos (o Amor e a Morte) patentes nas descrições eróticas a par
de cenas da morte como a cena na banheira (tão ao gosto de Hitchcock,
quem não se lembra do filme Psycho?) que são sempre testemunhadas
pelas crianças, e que é uma das características mais violentas da
trama. A cena com o cão debaixo da árvore, resultando na morte de
Adèle, remete para cenas relacionadas coma mitologia clássica
(recordando Diana e Ácteon, por exemplo). A junção do elemento,
surpresa, o inesperado, é outra das características dos filmes de
Hitchcock, que está fortemente implicada neste romance. O mistério a ambiguidade do destino da personagem que aparenta estar prisioneira mas nunca se chega a saber a verdadeira natureza da sua clausura, se estará naquela situação por motivo de uma doença de cariz psiquiátrica ou por lhe ter sido imputada a autoria de um crime. Trata-se de uma estratégia discursiva escolhida pela autora, uma omissão intencional que só confere (ainda) maior valor literário ao texto.
Por todas estas razões Maria Teresa
Horta surge aos olhos do público leitor como uma figura
incontornável para quem aprecia a escrita submetida ao Belo, mas
sempre alienada de estereótipos e sempre disposta a ultrapassar
limites.
Cláudia de Sousa Dias
07.03.2015
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Ana P. P. Ribeiro Essa obra da nossa querida MTH, ainda não li..., mas deve ser muito boa, já li a sua opinião no blogue e gostei.
8 h · Não gosto · 1
Maria Teresa Horta é admirável e multifacetada. E assim és tu também :)
Oh, não, nem se compara!
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