"A Fossa" de Aleksandr I. Kuprine (Slávia Edições)
Tradução da língua russa por Dina
Paulista e Margarida Savko de Brito
Com uma expressiva capa, inspirada no
quadro intitulado À la Beauté (1922) de Otto Dix, A
Fossa, ou Yama no original, constituiu por si só uma
ousadia, uma lufada de ar fresco no meio editorial português, apesar
de se encontrar, actualmente esgotada. Sendo Alexandr Kuprine um
autor praticamente desconhecido em Portugal, o leitor fica, no
entanto, a perceber a importância da sua obra logo que se detém a
ler a badana com a nota do editor, a colocá-lo na mesma linha da
tradição literária de Lev Tolstoi e Fiodor Dostoievski.
Dados Biográficos
Kuprine nasce em Narovtchat, uma
pequena cidade de província situada na região de Pemza, junto ao
rio Sura, afluente do Volga. As suas origens são de ascendência
tártara e aristocrática, por via materna, tendo a família
empobrecido gradualmente ao longo de todo o século XIX. Alexandr
Kuprine socorria-se das suas origens tártaras para explicar o
seu próprio temperamento, considerado por alguns seus contemporâneos
como “explosivo”, “enérgico” e “indomável”. Viveu em
Moscovo dos três aos vinte anos de idade e, após frequentar o
colégio militar, serviu o exército do czar como oficial de baixa
patente o que lhe facultou a oportunidade de conhecer as zonas mais
remotas da Rússia Imperial. Quatro anos depois, abandonará a vida e
a carreira militar para se dedicar à actividade literária ,
imiscuindo-se, para tal, no quotidiano de vários tipos de
comunidades diversas, à semelhança do que fazem os antropólogos
quando aplicam o método etnográfico a qualquer comunidade que seja
seu objecto de estudo. O interesse de Kuprine incidiu em
grupos variados, desde comunidades de actores e artistas de circo,
pescadores e operários fabris. Para o romance em questão, o foco de
interesse foi uma pequena cidade situada no meio do nada entre a
Rússia, a Bielorrússia e a Ucrânia onde, durante muito tempo, a
prostituição fora a principal actividade comercial aí
desenvolvida. Na verdade, Kuprine mostrava especial interesse
em abordar nos seus romances temas relacionados com a marginalidade,
estigmatização e exclusão social ou, ainda, situações de grande
densidade e tensão psicológica. A sua passagem por Kiev em 1894 e,
depois pela Bielorrússia, nos últimos anos dessa década,
permitiram-lhe recolher dados para o cenário do romance de que aqui
falamos hoje. Foi também nesta altura que desenvolveu a experiência
como jornalista, a qual marca fortemente a escrita desta obra.
Assuntos como a caça, os cães e os cavalos também foram objecto do
seu interesse e tratamento literário noutras obras. Aquando da
Primeira Guerra Mundial, o escritor de A Fossa foi
novamente chamado ao serviço militar. Em 1918, depois da Revolução
de Outubro e do final da Primeira Guerra Mundial, Kuprine
emigraria para França, país onde viveu durante dezoito anos, tal
como aconteceria com um elevado número de compatriotas seus,
sobretudo intelectuais e aristocratas. Além de escritor, Kuprine
foi também piloto e explorador, de espírito andarilho sempre à
procura de aventura e território pouco explorados.
A Obra
A obras de Alexandr
Kuprine mais conhecidas são O Duelo (1905),
Moloch (1896), Olesya (1898), O Jovem Capitão
Rybnikhov (1906), Esmeralda (1907) e A Pulseira de
Granadas (1911), a qual foi, algumas décadas mais tarde,
adaptada ao cinema, mais precisamente em 1965.
A Fossa (Yama)
que, em inglês recebe o título de
The Pitt, começou a ser escrita em 1908, sendo somente
terminada oito anos mais tarde, é vista como a sua obra mais
emblemática, ambiciosa e controversa. Para o leitor que esteja
familiarizado com o campo epistemológico das ciências sociais, a
caracterização dos vários cenários que servem de base à
construção da trama pode facilmente ser conotada com o olhar de um
antropólogo que decida focalizar-se no fenómeno da prostituição
como seu objecto de estudo, partindo de uma caracterização realista
para, logo a seguir, passar à construção ficcional e romanesca. O
local da acção consiste num lugar de passagem, uma grande cidade
mas afastada das cidades mais próximas, situada estrategicamente no
ponto de intercepção de várias povoações: um local de
confluência de várias rotas comerciais, por onde passava o correio
nos postilhões e onde as carruagens mudavam de cavalos e os
condutores podiam descansar a meio da viagem nas inúmeras estalagens
que por ali havia. A essa região deram o nome de Yama, a Fossa. Um
locar perfeito para o florescimento, a dada altura, do negócio da
prostituição.
I - A primeira parte do romance inicia com
a descrição panorâmica daquela zona geográfica, afunilando em
seguida para uma rápida caracterização da cidade, das ruas, dos
edifícios e, por fim, do bordel onde decorrerá a acção de toda a
primeira secção do romance. O conteúdo temático deste primeiro
volume causou imediatamente polémica generalizada quando foi
primeiramente publicado, ao passo que os dois que se seguiram (que
nesta edição surgem acoplados ao primeiro) foram recebidos com
relativa passividade. Esta diferença de reacção deve-se sobretudo
ao vincado realismo do primeiro volume, em acentuado contraste com um
certo lirismo dos dois restantes. O romance chegou a ser criticado
pelos contemporâneos de Kuprine, como Tolstoi, que o acusava de
excesso de materialismo realista. No entanto muitos apoiavam-no,
inclusive membros do círculo intelectual feminino russo. A
Fossa é o seu último grande trabalho, considerado para
muitos um ponto de inflexão na qualidade do seu trabalho como
escritor o qual entrará, a partir de então, em declínio.
Deixo-vos aqui um excerto com os
primeiros parágrafos:
«Há muito tempo, muito antes do
aparecimento dos caminhos-de-ferro, no arrebalde mais afastado de uma
grande cidade do Sul, viviam, geração após geração, os
postilhões – os do Estado e os que trabalhavam por conta própria.
Por esta razão, toda esta terra se chamava Aldeia Yamskaya, a
Aldeia dos Postilhões, ou simplesmente, Yamskaya, Yamki – que
significa “pequenas fossas” - ou, ainda mais brevemente, Yama –
a Fossa. Mais tarde, quando a locomotiva a vapor substituiu o carro
puxado a cavalo, a afoita tribo dos postilhões foi perdendo pouco a
pouco os seus hábitos extravagantes e os costumes arrojados,
passando a ter outras ocupações, dividindo-se e dispersando-se. Mas
a Yama – a Fossa – guardou durante muitos anos – até aos dias
de hoje – a reputação duvidosa de um lugar divertido, boémio,
propício a brigas e de noite não muito seguro..
Muito naturalmente, nas ruínas dos
antigos e aconchegantes ninhos, onde outrora as libertinas mulheres
dos soldados e as rechonchudas viúvas dos postilhões de
sobrancelhas negras, vendiam clandestinamente vodka e amor
livre, começaram a surgir os prostíbulos abertos, autorizados pela
administração local, geridos pelo controlo oficial e submetidos a
regras intencionalmente severas. No final do século XIX, as duas
ruas da Yama – a grande e a Pequena Yamskaya – foram ocupadas,
dos dois lados, exclusivamente por bordéis. Restaram apenas cinco ou
seis casas particulares, mas também aí se instalaram tabernas,
cervejarias e retalhistas, que satisfaziam as necessidades de
prostituição da Yama.
O modo de vida, os hábitos e os
costumes são quase idênticos em quase todos os trinta e poucos
estabelecimentos...»
O afunilamento da focalização do
olhar do narrador prossegue com a descrição e classificação do
tipo de bordéis, de acordo com o estrato social dos clientes, do
tipo de mulheres que cada qual destes estabelecimentos oferece
(idade, grau de beleza e perfeição física, saúde, origem social,
grau de refinamento, etc.):
«O estabelecimento mais chique é o de
Treppel, à entrada da Rua Grande Yamskaya, a primeira casa à
esquerda. É um negócio já antigo. O dono actual tem um apelido
diferente e faz parte da presidência do conselho da cidade. É uma
casa de dois andares, verde e branca, construída no alambicado e
decadente estilo pseudo-russo do arquitecto Ropet: as cumeeiras e as
portadas das janelas, talhadas em forma de galo, têm fragmentos de
madeira debruados, num rendilhado do mesmo material; há um tapete e
uma passadeira branca na escada; na antecâmara, um urso empalhado
segura com as patas dianteiras uma bandeja de madeira para os cartões
de visita; no salão de dança, o chão é de madeira e vêem-se
pesados cortinados de seda carmesim e de tule nas janelas; ao longo
das paredes, cadeiras brancas pintadas a ouro e espelhos com molduras
douradas; existem dois gabinetes com tapetes, divãs e macios pufes
de cetim; nos quartos, candeeiros cor-de-rosa e azuis, cobertores
forrados de seda grossa e almofadas limpas; as meretrizes
apresentam-se com decotados vestidos de baile debruados a pele ou
então mascaram-se usando luxuriosos fatos de carnaval de hussardos,
de pajens, de pescadoras, de alunas de liceu, sendo a maior parte
delas alemãs de Leste – mulheres fortes, bonitas, de corpo branco
e seios opulentos. Nesta casa de Treppel uma visita custa três
rublos e uma noite inteira dez.
Os três estabelecimentos de dois
rublos – o de Sófia Vassílievna, o Velho Kiev e o de Anna
Márkovna – são mais simples e mais pobres. As outras casas da
Grande Yamskaya, são as de um rublo e são ainda piores. Na Pequena
Yamskaya, visitada por soldados, ladrões de quinta categoria,
artesãos e todo o tipo de gentinha e onde cobram por visita
cinquenta copeques ou menos, o ambiente não pode ser mais sujo ou
miserável: o chão da sala apresenta-se irregular, gasto e lascado;
as janelas estão tapadas com panos de andrinopla vermelha; os
quartos, como boxes de estábulo, são separados por finas divisórias
que não chegam até ao tecto, e sobre as camas, por cima das
enxergas usadas, vêem-se, amarrotados de qualquer maneira, rasgados
e encardidos pela passagem do tempo, cheios de manchas, os lençóis
e os cobertores de baeta esburacados; o ar é pestilento, misturado
de fumo, evaporações alcoólicas e ejaculações humanas; as
mulheres, vestidas com trapos de algodão coloridos, têm quase todas
as vozes roucas ou fanhosas, os narizes semi-encovados da sífilis e
rostos que guardam os vestígios e os arranhões da tareia da
véspera, ingenuamente pintados com a ajuda do maço de tabaco
vermelho, molhado com saliva».
A estrutura social descrita por Kuprine
assemelha-se à organização por castas do sistema social indiano.
Inclusivamente, o olhar do narrador quando descreve a Pequena
Yamskaya, perde um pouco da sua objectividade, acabando por sucumbir
a um certo sentimento de repugnância face ao ambiente daquela zona
da cidade, como atesta o substantivo declinado no diminutivo
“gentinha”, fazendo equivaler os frequentadores e as
trabalhadoras do sexo dos bordéis mais miseráveis ao estatuto de
“párias” (os excluídos do sistema de castas praticado na
Índia). Para não nos alongarmos demasiado na dissecação desta
obra literária com prolongadas análises de teor sociológico ou na
exploração dos meandros da descrição psicológica das personagens
que é meticulosamente efectuada ao longo da narrativa, assim como as
relações de hierarquia dentro do bordel, ou as relações de
amor-ódio que as prostitutas estabelecem entre si e com os clientes
que frequentam o estabelecimento, o que exigiria do texto uma
envergadura equivalente à de uma tese de doutoramento, passemos
então à segunda parte do romance.
II - No início deste segundo volume, ocorre
uma prolepse, um avanço no tempo de dez anos na Yama, período em que
se processa um sem-número de transformações a vários níveis:
social, económico e, inclusive tecnológico:
«Ainda hoje, volvidos dez anos, os
antigos habitantes da Yama se recordam bem daquele ano próspero em
acontecimentos nefastos, sórdidos e sangrentos, que começou por uma
série de pequenos escândalos insignificantes e terminou na decisão
da Administração Local de, um belo dia, arrasar por completo os
velhos e habituais antros de prostituição, por ela própria
criados, distribuindo depois o que deles sobrou pelos hospitais,
prisões e ruas da grande cidade. Ainda hoje algumas das poucas
sobreviventes, antigas patroas e governantas dessas casas, mulheres
já completamente decrépitas, gordas e roucas como buldogues velhos,
se recordam dessa destruição geral com mágoa, horror e simplória
perplexidade.
Assim como batatas caídas de uma saca
rota que se vai rompendo cada vez mais, começaram a aumentar as
brigas, os roubos, as doenças, os assassínios e os suicídios,
parecendo que ninguém era culpado de nada. Todas as desavenças
começaram pura e simplesmente a tornar-se cada vez mais frequentes,
a acumular-se umas em cima das outras, a crescer e a alargar tal e
qual uma pequena bola de neve chutada pelos pés de uma criança e
que ao rolar se vai tornando cada vez maior por causa da neve
semi-derretida que se vai pegando a ela. Passados alguns momentos já
a bola é maior do que a altura de um homem e, por fim, basta apenas
um ligeiro toque para que ela se precipite em direcção ao barranco
e role por ali abaixo formando uma enorme avalanche. As velhas
patroas e governantas desses prostíbulos nunca tinham ouvido falar
do destino, mas, no fundo da alma, todas elas sentiam a sua
misteriosa presença nas desgraças inelutáveis daquele ano
terrível.».
O narrador utiliza a prolepse no
primeiro parágrafo desta segunda parte do romance, para assinalar o
corte com a narrativa da primeira parte. Este corte é marcado por
uma mudança brusca que altera a caracterização do cenário que dá
corpo à localização espacial da trama. Segue-se um segundo
parágrafo cheio de indícios, que permitem ao leitor antecipar,
embora de forma ainda nebulosa, as directrizes que estão na base do
desenvolvimento da história, o qual é todo um processo que
desemboca na decadência do comércio do sexo na Yama e na
progressiva degradação das vidas de contornos melodramáticos das
heroínas da primeira parte, as quais verão os seus sonhos
desfazerem-se, ruindo lenta e inexoravelmente, as suas expectativas.
Também o ponto de vista prevalecente
da narrativa começa aqui a mudar de foco e a centrar-se antes no
grupo de estudantes que frequenta regularmente o bordel de Anna
Márkovna, nas suas paixões, ideais, interesses e anseios, no seu
olhar sobre a sociedade e, particularmente, no papel que as mulheres
nela ocupam. Aqui, ponto de vista dominante é, bastante mais ainda
do que na primeira parte, o masculino.
III - Na terceira e última parte, o narrador
surpreende os leitores ao fazer notar que, dentro da trama geral,
sempre narrada na terceira pessoa, por uma voz omnisciente, há uma
outra voz embutida que verte uma narrativa encaixada, a história da
prostituta Liuba e do estudante Likhonine. O ponto de vista de Liuba
é mediado pelo do narrador principal, heterodiegético, aparecendo
ora em discurso indirecto (onde se vê o ponto de vista do narrador
face às personagens, Liuba incluída) ora em discurso indirecto
livre (onde a voz de Liuba surge embutida no discurso do narrador):
«Foi toda esta longa e atribulada
história que Liuba contara soluçando no ombro de Gênia. É claro
que toda esta tragicomédia foi apresentada por ela com uma
interpretação muito diferente da realidade vivida.
Segundo as suas palavras, Likhonine só
a tinha levado consigo para se entreter um pouco com ela, para a
impressionar, para se servir da sua tolice até se fartar e
expulsá-la depois. E ela, idiota, que verdadeiramente se havia
apaixonado por ele, que tinha uns ciúmes danados de todos aqueles
guedelhudos de cinturões de pele, viu-se então enredada nesta
baixaria: ele combinou com o seu colega de modo a que este, estando
ali com ela, de propósito a começasse a abraçar no momento em que
ele, Likhonine, entrasse, visse aquilo, pudesse armar um escândalo e
a despejasse no meio da rua.
Na versão dela havia tanto de verdade
como de mentira, as duas partes estavam equilibradas, mas, como quer
que fosse, ela acreditava que as coisas assim aconteceram.».
A multiplicidade de pontos de vista,
que se reflecte no cruzamento de várias formas de olhar o real, ora
justapondo ora aglutinando a visão do narrador e das personagens,
assim como a profusão de detalhes com que o autor preenche o
discurso narrativo, a par da habilidade com que atribui ao narrador a
capacidade de dar a perceber o efeito da passagem do tempo nas
personagens, na cidade e na própria região da Yama conferem a a
dimensão épica e polifónica à obra, fazendo dela um dos grandes
clássicos da literatura russa, publicado no início do século XX. Apesar disso,
Alexsandr Kuprine não é dos autores russos mais divulgados em
Portugal, pelo que que já vai sendo altura de se pensar em publicar
outras obras do autor e, sobretudo, na reedição deste soberbo
retrato da Yama, A Fossa de
um Império extinto.
Londres,
30 de Março de 1016
Cláudia
de Sousa Dias
2 Comments:
Se está na linha de Dostoievski, como, de facto, parece, vou gostar! Não conhecia essa tradutora de russo (terá sido a partir do russo?).
Beijinhos :)
Olá, M.! Sim, o livro é traduzido directamente do Russo.
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