"The Book Thief" by Markus Zuzak (Black Swan)
The Book Thief é um
livro, cujo título teríamos preferido ver traduzido para a Língua
Portuguesa por algo como “A ladra de livros” ou “A jovem ladra
de livros”. O tradutor da versão portuguesa optou antes por um
título que contém uma frase complexa, seguindo uma receita que se
tornou popular no meio editorial português desde o aparecimento do
best-seller O Velho que lia
Romances de Amor de Luís Sepúlveda. Assim,
o título da versão portuguesa, A
Rapariga que roubava livros,
difere da versão original no aspecto, isto é, no carácter
processual da acção contida no acto de roubar livros a qual é
imputada ao sujeito da frase. Este título da versão portuguesa
levanta um bocadinho o véu acerca do carácter da personagem, dando
a entender ao leitor que a protagonista do romance pratica o acto de
roubar livros com frequência, ao passo que na versão inglesa a
mesma característica surge no título não como um processo que se
desenrola no tempo mas como um rótulo ou uma etiqueta, sem qualquer
alusão à frequência com que é desempenhado o acto. A ideia de
tempo ou de que a actividade se desenrola no tempo está portanto
ausente no título original, passando por seu turno a ideia não de
uma compulsão mas de um traço de personalidade que define o
carácter da adolescente Liesl Mesminger, a adolescente órfã que
habita a periferia de Munique, no início dos anos 1940, isto é, em
plena Segunda Guerra Mundial.
A localização
espácio-temporal da narrativa está situada numa época e território
geográfico onde a prisão de alguém por razões políticas e
ideológicas estava na ordem do dia. Por essa razão, também os
livros “sofriam” o mesmo risco de apreensão e “apagamento”
(o que significava na verdade “destruição”) pelo fogo, um pouco
à maneira do que acontecia com os corpos dos prisioneiros nos campos
de extermínio a que se expunham os entes de carne e osso que os
publicavam ou divulgavam, sobretudo quando se opunham ao ideário do
regime nazi.
Neste contexto, a
actividade a que se dedica Liesl nestes anos de obscurantismo,
guerra, devastação e medo, consiste num aperfeiçoamento contínuo
da arte de furtar livros, salvando-os da destruição, não surge, à
luz do pensamento actual, como algo de reprovável. Muito pelo
contrário. A atmosfera de medo que paira na cidade, sendo
eficientemente disseminada pelos media num estado policial
militarizado e fortemente dissuasor do mais ínfimo resquício de
desobediência, interfere directamente na vida dos cidadãos fazendo
o seu papel na propagação e formatação do pensamento único. O
discurso autoritário da máquina de propaganda do Estado entra todos
os dias nos lares privados através da rádio e da televisão, e as
medidas que visam a sua implementação são operacionalizadas
através da pesada máquina militar e policial que se ocupa em
fiscalizar o que lêem e como pensam os cidadãos. Posto isto, a
actividade de Liesl Mesminger assume-se como o contraponto de toda
esta situação. À pequena ladra de livros cabe, pois, assumir o
papel de guardiã da memória, da diversidade e do pluralismo
ideológico, deixando margem de manobra ao pensamento livre. Assim, a
casa onde Liesl passa a viver com os pais adoptivos logo no início
da história, o casal Hubbermann, transformar-se-á numa espécie de
“ilha” onde o pensamento anti-nazi se torna possível,
germinando como uma semente, em violento contraste com a visão do
que se passa lá fora, apresentando uma concepção mais humanizada
do mundo.
A construção
deste ethos de guardiã do pensamento livre, humanista e
anti-nazi em Liesl não surge do nada. Ela assenta directamente nas
raízes do seu passado familiar e dos acontecimentos trágicos que
levaram a que se desfizesse a sua família de origem, a sua família
biológica: o pai, é preso pelas SS (e provavelmente morto),
suspeito de ser simpatizante da ideologia comunista; e a mãe,
desaparece logo no início da história e da qual nunca mais se ouve
falar (provavelmente também presa e deportada para um campo de
concentração ou de extermínio), tenta proteger os filhos da
perseguição que o regime está a efectuar à família,
entregando-os para adopção a uma famíliaq de cidadãos alemães
acima de qualquer suspeita.
Liesl é adoptada
pelos Hubbermann, um casal de meia-idade que vive um quotidiano de
dificuldades económicas, cujos filhos biológicos já adquiriram a
própria independência, tendo saído de casa (um deles ingressa no
Exército e a filha, tendo casado, visita os pais de longe a longe)
e, por essa razão, aceitam receber as crianças Mesminger em troca
de um pequeno subsídio, pago pelo Estado.
O irmão mais novo
não resiste, contudo, aos rigores do Inverno na Baviera e morre de
pneumonia durante a viagem de comboio. Isto implica que os Hubbermann
não vão receber um montante tão elevado quanto haviam imaginado
inicialmente.
A Narrativa
A forma como é
narrada a trama deste romance de Zuzak é dotada de de algumas
especificidades: para começar, o autor opta por colocar a figura
alegórica e personificada da Morte a dar a voz ao narrador. A
escolha de uma entidade situada fora do Espaço e do Tempo dota este
narrador, que seria já à partida ominisciente, de múltiplas
possibilidades que lhe advém de um poder que se pode classificar de
ilimitado. Afinal trata-se de um ser cujas características o
aproximam de uma divindade (aliás, praticamente em todas as
culturas, fora da cultura judaico-cristã havia uma divindade que
representava a Morte) que incluem: a imortalidade, a ubiquidade e a
omnisciência. Todos estes atributos de que goza este narrador o
aproximam deste narrador da ideia que normalmente os humanos possuem
de Deus ou de um deus. Aliás esta figura da Morte poder-se-ia
equiparar facilmente a uma divindade das culturas pré-cristãs (o
deus Hades dos Gregos ou o Anúbis dos Egípcios). Consequentemente,
o discurso do narrador não poderia deixar de ser marcado por este
carácter “divino” ou semi-divino: a distância face aos humanos,
as suas lutas e vaidades mesquinhas, os vãos anseios de domínio ou
superioridade que manifestam em relação ao seu semelhante (que
tantas vezes insistem em ver como diferente). A narrativa deste
romance de Zuzak é, pois, a narrativa da Morte. Ou melhor,
trata-se de uma história de guerra ou da guerra que já é parte da
cultura europeia adquirida nos últimos cinco decénios, mas neste
romance surge mostrada a partir do ponto de vista desapaixonado de
uma entidade não humana porque sobre-humana, a qual, numa guerra,
nunca escolhe lados: nem o dos vencedores nem o dos vencidos.
Por fim, pode-se
dizer que esta figura alegórica e antropomorfizada da Morte na voz
do narrador é a pedra de toque que confere ao romance uma tonalidade
gótico-surrealista.
A intenção do
Autor, ao escolher um narrador como este é inequívoca: a tentativa
de criar a distância crítica que possibilite ao leitor ver também
a perspectiva do quotidiano dos anos de guerra por aqueles que foram
derrotados. A história incide no quotidiano do cidadão comum alemão
e não nas figuras históricas que protagonizaram os acontecimentos
directamente ligados à guerra sem, contudo, sucumbir a tentações
de revisionismo histórico. O humor negro, embora sem estar imbuído
de cinismo, perpassa no discurso e da Morte para ajudar a construir o
ethos de uma entidade perfeitamente desapaixonada, atenta e
extremamente activa, mas não necessariamente cruel ou sádica.
A Morte trata
todos os humanos por igual, isto é não poupa ninguém, vítimas ou
carrascos, embora chegue de forma diferente a quase todos. Isto
porque no romance de Zuzak, as circunstâncias que
possibilitam o seu aparecimento e o arrebatamento por si dos humanos
que vêm ao seu encontro não são da sua responsabilidade mas sim de
um conjunto de circunstâncias que lhe são alheias, quer estas sejam
desencadeadas pelos humanos quer não.
Perspectivas
Os dois pontos de
vista dominantes na narrativa são o da Morte e, obviamente, o de
Liesl, por aglutinação. A voz e o ponto de vista de Liesl surgem
sempre (excepto quando em diálogo com as outras personagens onde a
sua voz surge em discurso directo) incorporados na locução do
narrador, quer sob a forma de discurso indirecto livre quer em
quasi-pec (pris-en-charge, vide, Maingueneau,D.),
forma de discurso híbrida onde o pensamento do narrador e da
personagem se sobrepõem, podendo até coincidir de tal forma que se
torna quase impossível imputar o discurso a qualquer um dos
enunciadores mencionados.
A proximidade da
Morte com a jovem ladra de livros é uma questão intrigante no
romance, embora não surpreendente uma vez que está ligada ao
aspecto da polissemia, que no romance tem a ver com a época
histórica em que a desobediência a uma proibição do Estado
implicava a perda da vida. Por outro lado, a preocupação de Liesl
em salvar livros e resgatar as vozes dos seus autores do
esquecimento, garantindo-lhes uma espécie de imortalidade, pode ser
encarada como um desafio do ponto de vista da Morte como narrador (a
qual não chega a ser personagem mas antes uma testemunha, nómada,
chamada aos locais sempre que há risco de destruição ou perda de
vidas mas que não intervém directamente na história). Mais do que
isso, Liesl desafia permanentemente, embora sem consciência de que o
faz, a própria Morte que a segue como uma sombra, quer ao salvar
livros proibidos que figuram no index de Hitler quer ao ajudar
jovem judeu Max, filho de um amigo de Hans, morto na Primeira Guerra
Mundial. Sobretudo porque Max comete o “crime supremo” de
destruir, progressivamente, um exemplar do Mein Kampf para
poder escrever o seu próprio livro, dedicado a Liesl.
A narrativa de The
Book Thief é, pois, uma contínua dança da protagonista com
a Morte, metáfora que é aproveitada pelo autor da capa do livro, em
que o menor passo em falso pode precipitá-la, a ela e aos que lhe
são próximos para o abismo. A mesma protagonista desenvolve a
compulsão por furtar livros, após um breve encontro com a Morte, no
momento em que se encontra a viajar de comboio com a mãe e o irmão
mais novo para se encontrarem com os Hubbermann, os quais se preparam
para adoptar ambas as crianças como já foi referido. A Morte
arrebata-lhe então o irmão, ainda bébé, que não resiste ao rigor
do Inverno bávaro. E o primeiro livro que Liesl decide furtar está
intrinsecamente relacionado com a morte como destino final de todos
os humanos: The Gravedigger's Handbook (O Manual do
Coveiro). Trata-se de um livro que ninguém, à partida, teria
interesse em ler (a não ser fosse profissional), mas que adquire a
máxima importância em tempo de guerra, supondo-se que será uma
época em que haverá muitos mortos para enterrar. A partir desse
momento o espectro da Morte nunca mais deixará de rondar Liesl ,
atraindo-se as duas figuras como um íman.
Um aspecto
particularmente tocante no livro é a relação que Liesl desenvolve
com os pais adoptivos. Hans Hubbermann é acordionista por vocação
e pintor profissional de casas por profissão. É ele quem ensina
Liesl a le,r em casa, actividade que utiliza como terapia afim de
ajudar Liesl a ultrapassar o trauma da perda da família e a síndrome
de abandono. Rosa Hubbermann é uma mulher rude e ríspida, que
exagera nos insultos àqueles que lhes são próximos, cuspindo
palavrões e aparente desprezo, mas dona de uma força titânica que
proporciona a Liesl a segurança de que tanto necessita. Mas o afecto
estará sempre a cargo de Hans. O melhor amigo de Liesl, Rudy, é
oriundo da vizinhança dos Hubbermann. Rudy será o parceiro de
brincadeiras e aventuras arriscadas que envolvem o roubo de livros e
comida na vizinhança. Não deixa de ser curioso que Liesl coloque,
em tempo de fome e grave carestia alimentar, a necessidade de
aquisição de alimentos ao mesmo nível da necessidade de aquisição
do conhecimento contido nos livros, sejam eles proibidos ou não.
O outro grande
amigo de Liesl é Max Steiner , o refugiado judeu que os Hubbermann
escondem na cave da própria casa. Max é um jovem pugilista que, na
solidão da cave dos Hubbermann, desenvolve também a actividade de
ilustrador e escritor de histórias infanto-juvenis para encontrar
em Liesl a sua primeira grande leitora. Max é uma personagem
fundamental na trama, cuja importância cresce ao longo da narrativa,
ocupando um espaço cada vez maior no quotidiano de Liesl e dos
Hubbermann.
A autora do blogue
Giraffe Days chama a atenção para a escrita de The Book Thief
no aspecto linguístico, no que concerne à riqueza semântica
do discurso das personagens e do narrador, destacando a mestria com
que Zuzak se socorre dos recursos estilísticos,
classificando-a como “lyrical, hauting, poetic and profound”. O
discurso é quase sempre marcado pelo tom poético-alegórico onde o
papel e actividade da figura da Morte confere à obra uma tonalidade
que a coloca entre o estilo gótico e o realismo mágico.
A questão do Mal
está presente em toda a narrativa e no quotidiano da personagens tal
como é enunciado por Hannah Arendt quando disserta sobre a
banalidade do mal, a propósito do julgamento de Eichmann em
Nuremberga, o qual que afirmava ter-se limitado a cumprir ordens. Na
narrativa de Zuzak, o Mal emana directamente quer do medo irracional,
quer do ódio, quer simplesmente da insistência em se fazer tudo “by
the book”.
O mesmo Mal paira
como um espectro sobre a cidade, envenenando até o ar que se respira
ao espalhar-se da mesma forma que a “Peste” como no romance de
Camus (o autor aqui usa o vírus da Peste Negra que
assolou a Europa na Idade Média, como metáfora para a proliferação
do nazismo), invade as ruas e instala-se na vida e na mente dos
cidadãos fazendo mergulhar o país numa onda de infelicidade como
acontece no conto gótico de Bram Stoker “O Espectro da Morte”.
The Book
Thief é uma obra literária que foi escrita para cativar um
público bastante abrangente em termos etários, podendo incluir não
só os mais jovens já a partir do terceiro ciclo, mas também o
público adulto que tenha curiosidade em perceber o ponto de vista
dos alemães relativamente à forma como foram vividos os tempos da
Guerra e de como o regime fortemente repressivo de Hitler afectava
aqueles que não se incluíam nos grupos directamente visados pela
sua fúria persecutória. O facto de as suas descrições não
possuírem a violência gráfica de alguns episódios de A Lista
de Shindler de Thomas Kenneally ou de 2666 de
Roberto Bolaño não significa que o autor tenha querido
“branquear” a história. O terror está lá, contido nas
entrelinhas e as humilhações, físicas e psicológicas de que são
alvo Rudy e Hans em vários episódios, assim o atestam. Trata-se de
uma bela obra literária de um escritor ainda em construção e cujo
potencial parece ainda não se encontrar totalmente desenvolvido mas
cujo futuro na escrita se afigura bastante promissor.
Londres,
24.08.2016
Cláudia de Sousa
Dias
Webgrafia consultada:
https://www.theguardian.com/books/2007/jan/06/featuresreviews.guardianreview26
https://www.goodreads.com/review/show/10993149
Bibliografia auxiliar:
Maingueneau, Dominic, (2000), Analiser les Textes de Communication, Nathan Université, Paris.
Maingueneau, Dominic, (1996), Les Termes clés de l'analyse du discours, Seuil.
Maingueneau, Dominic (1999) "L' éthos dans l'analyse du Discours" in Images de Soi dans le Discours - La construction de l'éthos (org. Ruth Amossy), Délachaux et Niestlé, Paris.
Rabatel, Alain, (sem data), Homo Narrans - Por une analyse énonciative et interactionnele du récit, Tome I: Les points de vue et la logique de la narration, Lambert-Lucas, Limoges.
Camus, Albert, A Peste, Colecção Prémios Nobel, Pub. Diário de Notícias.
Stoker, Bram, "O Espectro da Morte" in Contos de terror e Arrepios, Biblioteca Visão.
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