HÁ SEMPRE UM LIVRO...à nossa espera!

Blog sobre todos os livros que eu conseguir ler! Aqui, podem procurar um livro, ler a minha opinião ou, se quiserem, deixar apenas a vossa opinião sobre algum destes livros que já tenham lido. Podem, simplesmente, sugerir um livro para que eu o leia! Fico à espera das V. sugestões e comentários! Agradeço a V. estimada visita. Boas leituras!

My Photo
Name:
Location: Norte, Portugal

Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Thursday, March 31, 2016

Um post sobre um livro que não é literatura

Vidas Suspensas: histórias de mulheres, vítimas de violência doméstica, que lutam nos tribunais pelos direitos dos seus filhos” organização de Rita Montez com fotos de Nuno Correia


Antes de mais, gostaríamnos de aqui frisar que, contrariamente ao habitual, o conteúdo deste post não diz respeita a uma obra literária. Trata-se, inclusive, de um livro cuja importância não se define sequer pela qualidade da prosa. O motivo que nos leva a falar de uma publicação deste género tem, a ver com a pertinência do conteúdo em e não relativamente ao estilo ou à forma. A edição está a cargo da Associação Portuguesa das Mulheres Juristas e diz respeito a um trabalho jornalístico levado a cabo por Rita Montez, jornalista da Revista Visão, que compilou e trabalhou na reconstituição de vários depoimentos que relatam alguns dos mais estarrecedores casos de violência doméstica ocorridos em Portugal nas últimas décadas. A (in)eficácia dos meios existentes de protecção à vítima, as lacunas na lei, a falta de coordenação das instituições neste domínio específico do Direito onde se cruzam os ramos do Direito Penal com o Direito da Família, o preconceito cultural de uma boa parte dos magistrados portugueses são alguns dos aspectos mais enfatizados pela autora desta publicação.

As mulheres entrevistadas são oriundas de todos os estratos sociais abrangendo operárias, administrativas empresárias, medicas e mesmo juízas. A autora preocupou-se, também, com a representatividade geográfica fazendo com que o conjunto de entrevistadas cobrisse o território de norte a sul do País.

Os relatos que compõem o livro não nos parecem, no entanto, discursos autênticos, isto é, aparentam ser a transcrição exacta dos discursos das mulheres cujas histórias são aqui reunidas, devido à ausência de sinalização, das pausas, hesitações, silêncios, para não falar de ser notório o discurso estar lexicalmente homogeneizado nos vários depoimentos. É pena, porque a obra perde parte da sua autenticidade. A transcrição de uma entrevista seguindo um guião que, podendo ser mais ou menos rígido, deveria ter pelo menos um conjunto de linhas básicas de orientação e figurar no livro terminado com uma conclusão elaborada por parte de um narrador ou jornalista. Isto beneficiaria o leitor não só em termos de autenticidade como já foi referido, mas também de fiabilidade e qualidade jornalística e científica, facilitando a comparação dos casos entre si. Mas é, no entanto, já bastante positivo que uma publicação como este tenha visto a luz do dia.

Do conjunto de relatos que fazem parte deste livro (que não sabemos se constituirá ou não uma amostra representativa de uma realidade nacional devido à ausência de detalhes relativamente à metodologia utilizada que levou à selecção destes casos em particular) sobressai o factor respeitante a uma excessiva departamentalização das instituições e falta de coordenação de esforços das mesmas no sentido de proteger as vítimas e a sociedade. Essa mesma falta de coordenação exprime-se sobretudo na presença de decisões contraditórias entre o Tribunal Penal e o Tribunal de Família, tal como sucede no caso em que o Tribunal de família decide no sentido de os filhos do casal continuarem a a ser expostos à presença do cônjuge agressor, tendo este último sido condenado pelo Tribunal Penal por tentativa de homicídio à progenitora das crianças e tendo estas testemunhado o facto.

O quadro de vulnerabilidade das vítimas de violência doméstica apresentado pela autora do livro mostra-se, de acordo com os relatos nele contidos, assaz preocupante, por ser essencialmente o resultado também da cultura que parece dominar parte da magistratura em Portugal e que assenta no pressuposto de que um mau marido, namorado ou companheiro, independentemente de demonstrar uma conduta violenta para com a companheira, possa ser um bom pai. O que na verdade se passa nos casos aqui apresentados é que não é ainda interiorizado por parte de alguns decisores nos tribunais, sobretudo no âmbito da jurisprudência, é que os comportamentos violentos são em regra apreendidos por modelação em idades precoces, pelo que a convivência com um adulto agressivo, além de se mostrar negativa na formação da personalidade da criança, coloca-la-á, a médio e longo prazo, em risco de sofrer uma agressão ou de vir a praticar o mesmo tipo de comportamento agressivo no futuro.

Nesta compilação de Vidas Suspensas deparamo-nos com um catálogo de tudo quanto se possa esperar de uma relação disfuncional, desequilibrada, com vista ao silenciamento e à submissão do outro, quer pela via física quer psicológica: espancamentos, agressão com arma branca, violação, insultos, humilhações, lenocínio. Num dos casos descritos, o Tribunal de Família decreta a obrigatoriedade de permissão pelo cônjuge agredido de visitas semanais à cadeia de um menor ao progenitor agressor que havia esfaqueado a mãe do mesmo menor. Há também um caso mediático a envolver agressões, proxenetismo e lenocínio que facilmente se reconhece como um episódio que figurou durante meses nos tablóides nacionais e inclusive, nalgumas revistas cor-de-rosa.

Frisando, mais uma vez, não estarmos hoje a falar de literatura, a obra de que aqui falamos não deixa de ser uma publicação de interesse relevante, a apresentar-se como um resumo de um estudo de casos, cujo objectivo é apontar as falhas na protecção aos cidadãos em situação particularmente vulnerável.

Londres, 30.03.2016


Cláudia de Sousa Dias

0 Comments:

Post a Comment

<< Home