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Monday, August 02, 2010

"A Casa das Areias" de Luísa Monteiro (Huguin)


O talento e o espírito crítico de uma escritora famalicense num romance que vem recuperar tradições já desaparecidas e recriar o ambiente da primeira metade do século passado


A acção de A Casa das Areias desenrola-se ao longo de todo o séc. XX e situa-se, sobretudo, na região de Famalicão e arredores. Este facto só é detectado pela associação de algumas das personagens a figuras da história e literatura portuguesa (como Bernardino Machado, Camilo Castelo Branco ou Adolfo Casais Monteiro) como sendo seus conterrâneos.

O conteúdo da narrativa baseia-se na saga de duas famílias religiosa e culturalmente opostas: a família de Ana, judia, culta, requintada, liberal que acompanha a evolução dos tempos e das mentalidades; a família de Camilo, cristã, rude, tosca, violenta na qual se evidencia, de forma chocante, o abismo entre a detenção de riqueza e a ausência de educação e instrução sobretudo nas mulheres.

A Autora serve-se desta diferença abissal para criticar acerrimamente os "brandos costumes" portugueses, sob o consentimento tácito do pároco da Igreja na figura do Pároco da aldeia que aceita a violência doméstica como algo de natural.

Ao longo da narrativa, as mulheres da família de Camilo sofrem horrores no seu quotidiano, violações dos seus direitos mais fundamentais sendo consideradas pouco mais do que animais de trabalho e reprodutoras.

Por outro lado, na família de Ana, as mulheres têm acesso à cultura, participam na gestão da casa e, no que toca à protagonista, trata-se de uma mulher que, ao longo da primeira metade do séc. XX, se encontra mais de cinco décadas à frente da mentalidade da sua época.

Este vanguardismo é-lhe facultado pelas vantagem de ser economicamente independente o que lhe garante total liberdade no que toca à sexualidade: utiliza os seus amantes por um curto período de tempo, ou seja apenas o necessário para conceber - a produção independente numa época em que não se ouvia sequer falar de inseminação artificial. Com Ana os papéis invertem-se passando o elemento masculino a assumir o papel de mero reprodutor.

A riqueza da protagonista e as obras de solidariedade que promove para a povoação bem como o facto de ser dadora de uma quantidade significativa de postos de trabalho na sua terra permite-lhe assegurar o respeito da população fazendo refrear as más-línguas.

Ana não assume o papel de uma Eva, a esposa perfeita em linguagem bíblica, mas de uma Lillith, a mulher-demónio irreverente cuja rebeldia não permite que se encaixe no modelo convencional de mulher-esposa-mãe-de-família. Todas as mulheres do ramo judeu são Lilliths em potencial mas só conseguem sê-lo em pleno quando integradas na Casa das Areias, o refúgio de Ana.

Quando saem do lar materno assumem algumas características de Eva sem nunca conseguirem assumir totalmente a personagem de qualquer dos dois arquétipos femininos. Tornam-se figuras algo híbridas tal como Teresa ou Esmeralda.

No ramo cristão, só a jovem adolescente Janete, dotada de uma extrema sensibilidade, talento e inteligência, consegue fugir à tradição. Fuga essa que só é perdoada pelo facto de esta desde cedo se revelar como uma criança de comportamentos marcadamente anti-sociais, algo esquizóide, com sérias dificuldades em distinguir a fantasia da realidade.

Somente no dealbar do séc. XXI é que se concretiza a possibilidade de uma Lilith descendente de ambas as famílias, herdeira dos traços de personalidade de Ana e da sensibilidade e talento de Janete, poderá exprimir a sua rebeldia e inconformismo mas fora do limite da Casa das Areias e da cidade onde nasceu tornando-se cidadã do mundo.

No texto, aquilo que transparece é que a intenção da autora é a de criticar a violação dos direitos da Mulher recorrendo, para isso, à comparação de dois modelos radicalmente opostos de estrutura familiar e imaginando um perfil feminino totalmente alienado da época (1ª metade do séc. XX) como Ana, a judia sedutora. Isto porque sabemos perfeitamente que a sociedade não perdoa a quem se desvia da norma, sobretudo porque no Minho rural a palavra "judeu" é frequentemente conotada de "cruel".

No último quartel do séc XX assistimos a uma lenta, gradual mas notória mudança que nos dá a entender que começa a haver um espaço para quem quer ser diferente mas, apesar disso, é ainda necessário sair da terra Natal para que o crescimento e desenvolvimento pessoal se possa efectuar em pleno.

A escrita em "A Casa das Areias" revela uma riqueza de linguagem povoada de regionalismos (ex: "eira", "Masseira","uvas americanas", "pêras D. Joaquina", etc.) evocando cheiros, sabores, a mentalidade típica da região e fazendo ressuscitar costumes e tradições já desaparecidas (ex: "as cornetadas") o que lhe confere todo um interesse antropológico que não pode deixar de ser levado em conta.

Esta é uma obra para ser lida saboreando os pormenores. Cada palavra evoca a memória de um passado não muito distante e que poderá ainda fazer parte de uma forma endémica de algumas localidades, mais remotas do país.

Uma bela sátira social cheia de ironia e, simultaneamente, uma ode à emancipação da Mulher.


Cláudia de Sousa Dias

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4 Comments:

Blogger Ricardo Antonio Lucas Camargo said...

Uma série de romances em que os caracteres femininos se mostram muito mais fortes que os masculinos, a despeito de retratar uma sociedade francamente patriarcal, com o culto ao macho combatente, é "O tempo e o vento", escrita pelo gaúcho Érico Veríssimo (1905-1975), em que se narra a saga dos Terra-Cambará, abrangendo a história do Sul do Brasil desde o século XVIII, quando Portugal e Espanha disputavam a região das Missões, em que a protagonista é a jovem Ana Terra, até o final do Estado Novo (1945).

5:06 AM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

isso não passou na Tv sob o formato de uma mini-série?!

Eu do Érico Veríssimo tenho em casa o "clarissa" para ler.


csd

4:35 PM  
Blogger Ricardo Antonio Lucas Camargo said...

Passou, efetivamente, sob a forma de minissérie. "Clarissa" foi o primeiro romance do Érico, publicado no início da década de 30, e que é continuado por "Música ao longe", "Caminhos cruzados", "Um lugar ao sol", "Olhai os lírios do campo" e termina com "Saga", escrito já durante a II Guerra Mundial, iniciado com o primo da Clarissa, o Vasco, a participar, nas brigadas internacionais, da Guerra Civil espanhola. Ele já havia publicado um livro que reunia contos e crônicas intitulado "Fantoches".

1:30 AM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

é um Autoe com quel simpatizo sim, mas há outros também...
à medida que for lendo, vou publicando e partilhando com os leitores...


csd

4:31 PM  

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