Egoísta nº 53 – Anjos
Mais
uma edição de luxo da revista nacional mais premiada, coordenada por Patrícia Reis, a editora-chefe e, também ela, escritora. Esta número é um belo
objecto de colecção, com a sua capa de um vermelho-escarlate e umas alvíssimas asas de porcelana, presas na contra-capa. Asas essas
que são destacáveis e se transformam num pires, onde se pode
queimar incenso. Imagens, ilustrações e fotografias todas elas formam um conjunto de
singular beleza e harmonia de contrastes no qual
um
anjo
caiu
para
dentro
das
páginas
de
um
segredo.
Não
foi só um, na verdade. Foi uma coorte deles. Segredos humanos que os
anjos devassam, invadindo o mais íntimo recanto da intimidade de
todos os que ingenuamente se julgam a sós, a salvo com a sua
consciência ou com os seus pecados. Há-os de todas as formas e
feitios. Há aqueles que são uma presença invisível no computador, casa ou mente humana, uma espécie de NSA colocada por uma auto-construída “divindade”
humana ou divina, e que tal como os anjos da tradição judaico-cristã tem o poder de se servir da invisibilidade para devassar os segredos mais ocultos de cada
utilizador; outros, aqueles que espiam os pecados alheios entrando na alma de cada um, relatando-os ao seu Líder Supremo, Omnipotente e
Absoluto, para que este aja em conformidade.
Mário
Assis Ferreira, director da revista, disserta no editorial sobre
a raiz etimológica da palavra, o seu significado simbólico dentro
do mecanismo dialéctico gerado pelo eterno conflito entre o Bem e o
Mal para chegar ao tempo em que vivemos nós, em plena sociedade de consumo, e à imagética do Anjo
na publicidade, subvertida aos interesses económicos que imperam durante as festividades do Natal, bem como à
ideia generalizada do Anjo no “lar”, aqui já não na qualidade de
mensageiro ou espião ou mesmo de “fiscal de pecados”, delator ou
justiceiro, mas sim de guardião ou protector da família.
O
primeiro a desfilar é o “anjo” de Linda David, uma
companhia omnipresente que acompanha e assiste aos últimos momentos
de uma personagem sem nome que se encontra agonizante. Este anjo
desempenha um papel semelhante a Caronte, figura mitológica que
tinha o dever de transportar os mortos da travessia do Estige até ao
Hades. A missão deste anjo é de certa forma análoga: guiar,
conduzir a pessoa para “o outro lado”, com palavras de
encorajamento e esperança. Acompanham o texto duas belas (e
provocadoramente sensuais) ilustrações a azul, em alusão directa
ao filme protagonizado por Marlene Dietrich, O Anjo Azul.
Ivone
Mendes Silva traz “A Mudança” com um texto de narração de
terceira pessoa, falando de Margarida , não exactamente a de Fausto (embora pudesse sê-lo),
mas uma mulher que é fustigada pelo impulso de evasão contínua.
Até se deparar com a figura do anjo, o qual a impede de se mover, no lugar inóspito e isolado como o fim do mundo, onde já ninguém a
pode ouvir.
Segue-se
o ensaio fotográfico de José Pedro Santa Bárbara, “Anjos
Rurais”. Trata-se de uma representação foto-dramática que
ilustra a tragédia da decadência. Na segunda parte do ensaio,
assistimos à comunhão entre os anjos e a natureza e à fusão
destas entidade com os elementos terra e água.
O
texto seguinte é a tradução de
Paula Castro
e José
Daniel Ribeiro de
um original de Stig Dagerman: “A nossa necessidade de consolo é
impossível de satisfazer”. O texto, de teor essencialmente
existencialista, está construído do ponto de vista do anjo que se
vê imortal e omnisciente ma,s ao contrário da Divindade, revela-se impotente quando se trata de mudar ou influenciar o
destino do mundo ou do Universo, uma vez que a sua própria condição
de anjo o impede de comunicar de forma bilateral com os seres
terrestres.
O
poema da Maria
Teresa Horta deste
número da revista é mais um exemplo de como os anjos povoam a
escrita da autora de
A Paixão de Constança H.
e As Luzes de
Leonor.
A voz narrativa do poema coloca-se à “pele” de um anjo como os
que no livro do Génesis
sofrem de desejo, ansiando pelo prazer, enquanto cobiçam as mulheres
terrestres, trocando a imortalidade pelo conhecimento das sensações
físicas. Um destes anjos surge novamente entre nós, caindo no poema de deliciosa provocação e
inequívoca beleza literária de Maria Teresa Horta. A dar-lhe corpo, e a enfatizar ainda mais esta ideia, segue-se depois o
fabuloso ensaio fotográfico
Ludovic Florent
“Poussière d'Étoiles” de onde emergem a agilidade, a leveza e a perfeição dos corpos, transmitindo a ilusão de serem estas figuras
humanas os seres alados de que falava o poema que se lhe antecede:
anjos que emergem da poeira estelar inter-galáctica.
Patrícia
Reis
é autora do texto para a banda desenhada da autoria de Rodrigo
Prazeres Saias,
que nos coloca diante dos olhos o lugar da desolação, o posto de
vigia do anjo que vê tudo e todos do alto da sua solidão, em plena
noite de Inverno, recolhendo bebés nados-mortos, os “não-seres”
para os levar para o céu. Mas a sua verdadeira missão é
encontrar-se com o “deus”, cujo “eu” é ainda mais solitário
do que o seu próprio.
“Língua
do Coração” é o texto que se segue, da autoria de
Maria João Costa,
de narração homodiegética para falar de seres diferentes de nós,
humanos, situados algures entre o “nosso” mundo e o “outro”.
Os anjos imaginados pela narradora são apenas aqueles que falam “a
língua do coração”.
O
ensaio fotográfico de Cláudio
Garrido
mostra-nos um conjunto de anjos vegetais, árvores de folha caduca em
pleno Inverno, sob um céu azul-gelo, intitulado “Quintetos”.
O
conto de Cristina
Carvalho para
esta revista chama-se “O Anjo do Rés-do-chão”. Contada em
discurso coloquial, muito próximo à oralidade, a história
desvenda-se em tom despreocupado, como quem confidencia um facto
inusitado a um amigo, à mesa de um café. o conto aborda a
temática de uma solidão interrompida pela presença
misteriosa de um ser etéreo, de voz suprema, ou talvez divina, que
um dia se desvanece no ar, sem deixar vestígios de ter algum dia
existido...Um conto de inspiração nitidamente gótica.
Justapondo-se
à ilustração das cintilantes luzes nocturnas que arrancam a cidade à escuridão da autoria de Henrique Cayatte, surge-nos um belíssimo
texto de Luís Represas com um discurso híbrido situado algures
entre a poesia e a prosa, com uma piscadela de olho a Hemingway pela alusão no texto ao romance “O Sol nasce Sempre” , onde o narrador
autodiegético, no extremo da pista de dança, recebe a visita do
Anjo...
Nuno
Camarneiro recria
a história de “O Anjo Azul”, a partir da interpretação
clássica de Marlene Dietrich, já aqui aludida por Linda David, mas
agora transportada para um night-club contemporâneo, desprovido da
aura de glamour dos cabarés de Berlim dos anos trinta, revelando o
mundo decadente das casas de alterne no século XXI...O
ensaio fotográfico de Berndnaut
Smilde que
se lhe segue é composto por suaves e fofas nuvens brancas que pairam
sobre interiores cinzentos e frios para sugerir uma presença
sobrenatural, devido ao intenso contraste entre as petrificadas ou
metalizadas construções humanas e a inconsistência das nuvens que pairam nos mesmos espaços. Uma
questão de densidades, cuja sobreposição resulta num efeito
surrealista, a sugerir a presença de entidades ainda mais incorpóreas
do que as próprias nuvens. Anjos, claro.
Rute
Coelho
fala-nos de morte e esquecimento. E do renegar de um anjo da guarda,
num texto tão cru como o caminho pedregoso que leva ao fim da
existência.
A
seguir, acompanhados pela belíssimas ilustrações de
Teresa Dias Coelho,
chegam-nos os dois mais belos textos em prosa da revista, escritos em parceria
por Maria
Manuel Viana
e Patrícia
Reis.
Maria Manuel Viana exprime “O desejo de Asas (variações sobre o
tema dos anjos e do desejo)", onde o narrador heterodiegético descreve as atitudes e pensamento da protagonista, uma mulher
imersa em solidão, que faz da vida uma cruzada em busca de dois
ideais: a Beleza e a Bondade, valores absolutos que somente
conseguirá encontrar reunidos na figura angelical que aparece a dada
altura no conto. A
beleza plástica do texto e das imagens que estão subjacentes ao
discurso deste narrador criado por Maria
Manuel Viana,
mostram o domínio perfeito da técnica narrativa e do uso da
linguagem, na forma como é descrita a relação entre a mulher e o
anjo, uma relação onde há afinidades mas onde não é possível
haver paridade entre os dois seres. O texto de Patrícia
Reis,
“Da possibilidade de se ser triste sem asas (andamentos sinfónicos
sobre a bondade)” segue esta mesma linha, prosseguindo a construção
de um diálogo inter-textual entre a voz do seu narrador e o narrador
de Viana, mas assumindo uma outra perspectiva, a do anjo. O narrador de Reis
estabelece uma relação dialógica com o texto precedente,
completando-o. O discurso assume um tom de desafio, inequivocamente
provocatório, substituindo o tom melancólico e de nostalgia
presente no conto de Viana.
Duas belas peças literárias.
Sebastião
Reis Bugalho presenteia-nos com um conto cujo cenário decorre num
restaurante popular, lotado, onde os protagonistas têm de jantar na
marquise, reservada aos fumadores, por falta de espaço. O lugar,
apesar da popularidade, exibe uma atmosfera algo decadente e de algum
desleixo, facto que é denunciado pelo calendário na parede, com data
já de dois anos de atraso. Por outro lado, a irrevogabilidade do
destino do lavagante (trata-se de uma marisqueira) no aquário (ser
comido) indiciam a crueza do tema principal do texto. O casal
dissonante na mesa causa uma sensação de estranheza no leitor que
começa já a suspeitar que algo de trágico vai ocorrer e de que a relação de poder entre os dois protagonistas poderá inverter-se, também. A atitude paciente e passiva
da mulher que assume a postura de ouvinte resignada contrasta com o
tom de gabarolice do companheiro. Mas a ironia corrosiva, patente na
forma como o narrador expõe toda a situação, desde a vacuidade dos
diálogos à superficialidade dos temas abordados, põe a nu o
ridículo que está impresso na forma como os dois casais à mesa tentam, inutilmente, ostentar um estatuto sócio-económico que já não possuem. A
tragédia, indiciada pela impotência do lavagante em lutar contra
aquilo que o espera e para o qual não está minimamente preparado, apresenta-se com a mesma implacabilidade aos dois protagonistas, funcionando o restaurante como o macro-aquário onde se
movimentam os peixes e os lavagantes humanos. A seguir à consumação do destino das personagens, após saírem do "aquário", existe apenas o inferno construído pelo anjo sádico com a sua visão cínica, triste e anti-erótica do
mundo e do penitente que recusa abandonar a sua "cruz".
O
último intervalo visual nesta Egoísta povoada de “Anjos”
consiste num mostra de etérea figuras angelicais, envoltas em
levíssimas vestes brancas, flutuando na água, como se estivessem no
espaço, totalmente libertas das leis da gravidade.
Seguem-se ainda
as imagens de três quadros de Teresa Dias Coelho: o primeiro, nitidamente inspirado num quadro de Dürer, e os seguintes com as paisagens de um céu
azul-pálido de Inverno, povoado de nuvens de tonalidades várias.
O último anjo desta Revista é de Ana Maria Pereirinha, que nos apresenta um texto ilustrado por Manuel San Payo, uma reflexão sobre a memória, a infância e a inspiração dada pelo anjo que, aqui, usurpa o papel das antigas musas dos poetas. Natália Correia surge nesta peça com o estatuto de “anja”, a poeta que é invocada e evocada na homenagem aos seres alados que esvoaçam na mente, fecundando a imaginação e e criação humanas.
Cláudia
de Sousa Dias
09.06.2015
Quadro de Teresa Dias Coelho para a Egoísta #53
5 Comments:
As pessoas que gostam deste artigo na página do grupo "o que andamos a ler" no facebook.
https://www.facebook.com/groups/366036136807459/permalink/888825997861801/
Muito obrigada pelas suas referências e pela sua interpretação do meu conto.
Ê verdade, a revista Egoísta é um objecto de culto, um belo objecto de colecção.
Ui, onde é que eu compro? Fiquei apaixonada por esta edição!
Beijinhos :)
Obrigada, Linda David, pelo comentário e pela visita.
M. tens de encomendar!
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