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Tuesday, March 01, 2016

"A Fossa" de Aleksandr I. Kuprine (Slávia Edições)



Tradução da língua russa por Dina Paulista e Margarida Savko de Brito


Com uma expressiva capa, inspirada no quadro intitulado À la Beauté (1922) de Otto Dix, A Fossa, ou Yama no original, constituiu por si só uma ousadia, uma lufada de ar fresco no meio editorial português, apesar de se encontrar, actualmente esgotada. Sendo Alexandr Kuprine um autor praticamente desconhecido em Portugal, o leitor fica, no entanto, a perceber a importância da sua obra logo que se detém a ler a badana com a nota do editor, a colocá-lo na mesma linha da tradição literária de Lev Tolstoi e Fiodor Dostoievski.

Dados Biográficos

Kuprine nasce em Narovtchat, uma pequena cidade de província situada na região de Pemza, junto ao rio Sura, afluente do Volga. As suas origens são de ascendência tártara e aristocrática, por via materna, tendo a família empobrecido gradualmente ao longo de todo o século XIX. Alexandr Kuprine socorria-se das suas origens tártaras para explicar o seu próprio temperamento, considerado por alguns seus contemporâneos como “explosivo”, “enérgico” e “indomável”. Viveu em Moscovo dos três aos vinte anos de idade e, após frequentar o colégio militar, serviu o exército do czar como oficial de baixa patente o que lhe facultou a oportunidade de conhecer as zonas mais remotas da Rússia Imperial. Quatro anos depois, abandonará a vida e a carreira militar para se dedicar à actividade literária , imiscuindo-se, para tal, no quotidiano de vários tipos de comunidades diversas, à semelhança do que fazem os antropólogos quando aplicam o método etnográfico a qualquer comunidade que seja seu objecto de estudo. O interesse de Kuprine incidiu em grupos variados, desde comunidades de actores e artistas de circo, pescadores e operários fabris. Para o romance em questão, o foco de interesse foi uma pequena cidade situada no meio do nada entre a Rússia, a Bielorrússia e a Ucrânia onde, durante muito tempo, a prostituição fora a principal actividade comercial aí desenvolvida. Na verdade, Kuprine mostrava especial interesse em abordar nos seus romances temas relacionados com a marginalidade, estigmatização e exclusão social ou, ainda, situações de grande densidade e tensão psicológica. A sua passagem por Kiev em 1894 e, depois pela Bielorrússia, nos últimos anos dessa década, permitiram-lhe recolher dados para o cenário do romance de que aqui falamos hoje. Foi também nesta altura que desenvolveu a experiência como jornalista, a qual marca fortemente a escrita desta obra. Assuntos como a caça, os cães e os cavalos também foram objecto do seu interesse e tratamento literário noutras obras. Aquando da Primeira Guerra Mundial, o escritor de A Fossa foi novamente chamado ao serviço militar. Em 1918, depois da Revolução de Outubro e do final da Primeira Guerra Mundial, Kuprine emigraria para França, país onde viveu durante dezoito anos, tal como aconteceria com um elevado número de compatriotas seus, sobretudo intelectuais e aristocratas. Além de escritor, Kuprine foi também piloto e explorador, de espírito andarilho sempre à procura de aventura e território pouco explorados.

A Obra

A obras de Alexandr Kuprine mais conhecidas são O Duelo (1905), Moloch (1896), Olesya (1898), O Jovem Capitão Rybnikhov (1906), Esmeralda (1907) e A Pulseira de Granadas (1911), a qual foi, algumas décadas mais tarde, adaptada ao cinema, mais precisamente em 1965.

A Fossa (Yama) que, em inglês recebe o título de The Pitt, começou a ser escrita em 1908, sendo somente terminada oito anos mais tarde, é vista como a sua obra mais emblemática, ambiciosa e controversa. Para o leitor que esteja familiarizado com o campo epistemológico das ciências sociais, a caracterização dos vários cenários que servem de base à construção da trama pode facilmente ser conotada com o olhar de um antropólogo que decida focalizar-se no fenómeno da prostituição como seu objecto de estudo, partindo de uma caracterização realista para, logo a seguir, passar à construção ficcional e romanesca. O local da acção consiste num lugar de passagem, uma grande cidade mas afastada das cidades mais próximas, situada estrategicamente no ponto de intercepção de várias povoações: um local de confluência de várias rotas comerciais, por onde passava o correio nos postilhões e onde as carruagens mudavam de cavalos e os condutores podiam descansar a meio da viagem nas inúmeras estalagens que por ali havia. A essa região deram o nome de Yama, a Fossa. Um locar perfeito para o florescimento, a dada altura, do negócio da prostituição.

I - A primeira parte do romance inicia com a descrição panorâmica daquela zona geográfica, afunilando em seguida para uma rápida caracterização da cidade, das ruas, dos edifícios e, por fim, do bordel onde decorrerá a acção de toda a primeira secção do romance. O conteúdo temático deste primeiro volume causou imediatamente polémica generalizada quando foi primeiramente publicado, ao passo que os dois que se seguiram (que nesta edição surgem acoplados ao primeiro) foram recebidos com relativa passividade. Esta diferença de reacção deve-se sobretudo ao vincado realismo do primeiro volume, em acentuado contraste com um certo lirismo dos dois restantes. O romance chegou a ser criticado pelos contemporâneos de Kuprine, como Tolstoi, que o acusava de excesso de materialismo realista. No entanto muitos apoiavam-no, inclusive membros do círculo intelectual feminino russo. A Fossa é o seu último grande trabalho, considerado para muitos um ponto de inflexão na qualidade do seu trabalho como escritor o qual entrará, a partir de então, em declínio.
Deixo-vos aqui um excerto com os primeiros parágrafos:

«Há muito tempo, muito antes do aparecimento dos caminhos-de-ferro, no arrebalde mais afastado de uma grande cidade do Sul, viviam, geração após geração, os postilhões – os do Estado e os que trabalhavam por conta própria. Por esta razão, toda esta terra se chamava Aldeia Yamskaya, a Aldeia dos Postilhões, ou simplesmente, Yamskaya, Yamki – que significa “pequenas fossas” - ou, ainda mais brevemente, Yama – a Fossa. Mais tarde, quando a locomotiva a vapor substituiu o carro puxado a cavalo, a afoita tribo dos postilhões foi perdendo pouco a pouco os seus hábitos extravagantes e os costumes arrojados, passando a ter outras ocupações, dividindo-se e dispersando-se. Mas a Yama – a Fossa – guardou durante muitos anos – até aos dias de hoje – a reputação duvidosa de um lugar divertido, boémio, propício a brigas e de noite não muito seguro..

Muito naturalmente, nas ruínas dos antigos e aconchegantes ninhos, onde outrora as libertinas mulheres dos soldados e as rechonchudas viúvas dos postilhões de sobrancelhas negras, vendiam clandestinamente vodka e amor livre, começaram a surgir os prostíbulos abertos, autorizados pela administração local, geridos pelo controlo oficial e submetidos a regras intencionalmente severas. No final do século XIX, as duas ruas da Yama – a grande e a Pequena Yamskaya – foram ocupadas, dos dois lados, exclusivamente por bordéis. Restaram apenas cinco ou seis casas particulares, mas também aí se instalaram tabernas, cervejarias e retalhistas, que satisfaziam as necessidades de prostituição da Yama.
O modo de vida, os hábitos e os costumes são quase idênticos em quase todos os trinta e poucos estabelecimentos...»

O afunilamento da focalização do olhar do narrador prossegue com a descrição e classificação do tipo de bordéis, de acordo com o estrato social dos clientes, do tipo de mulheres que cada qual destes estabelecimentos oferece (idade, grau de beleza e perfeição física, saúde, origem social, grau de refinamento, etc.):

«O estabelecimento mais chique é o de Treppel, à entrada da Rua Grande Yamskaya, a primeira casa à esquerda. É um negócio já antigo. O dono actual tem um apelido diferente e faz parte da presidência do conselho da cidade. É uma casa de dois andares, verde e branca, construída no alambicado e decadente estilo pseudo-russo do arquitecto Ropet: as cumeeiras e as portadas das janelas, talhadas em forma de galo, têm fragmentos de madeira debruados, num rendilhado do mesmo material; há um tapete e uma passadeira branca na escada; na antecâmara, um urso empalhado segura com as patas dianteiras uma bandeja de madeira para os cartões de visita; no salão de dança, o chão é de madeira e vêem-se pesados cortinados de seda carmesim e de tule nas janelas; ao longo das paredes, cadeiras brancas pintadas a ouro e espelhos com molduras douradas; existem dois gabinetes com tapetes, divãs e macios pufes de cetim; nos quartos, candeeiros cor-de-rosa e azuis, cobertores forrados de seda grossa e almofadas limpas; as meretrizes apresentam-se com decotados vestidos de baile debruados a pele ou então mascaram-se usando luxuriosos fatos de carnaval de hussardos, de pajens, de pescadoras, de alunas de liceu, sendo a maior parte delas alemãs de Leste – mulheres fortes, bonitas, de corpo branco e seios opulentos. Nesta casa de Treppel uma visita custa três rublos e uma noite inteira dez.

Os três estabelecimentos de dois rublos – o de Sófia Vassílievna, o Velho Kiev e o de Anna Márkovna – são mais simples e mais pobres. As outras casas da Grande Yamskaya, são as de um rublo e são ainda piores. Na Pequena Yamskaya, visitada por soldados, ladrões de quinta categoria, artesãos e todo o tipo de gentinha e onde cobram por visita cinquenta copeques ou menos, o ambiente não pode ser mais sujo ou miserável: o chão da sala apresenta-se irregular, gasto e lascado; as janelas estão tapadas com panos de andrinopla vermelha; os quartos, como boxes de estábulo, são separados por finas divisórias que não chegam até ao tecto, e sobre as camas, por cima das enxergas usadas, vêem-se, amarrotados de qualquer maneira, rasgados e encardidos pela passagem do tempo, cheios de manchas, os lençóis e os cobertores de baeta esburacados; o ar é pestilento, misturado de fumo, evaporações alcoólicas e ejaculações humanas; as mulheres, vestidas com trapos de algodão coloridos, têm quase todas as vozes roucas ou fanhosas, os narizes semi-encovados da sífilis e rostos que guardam os vestígios e os arranhões da tareia da véspera, ingenuamente pintados com a ajuda do maço de tabaco vermelho, molhado com saliva».


A estrutura social descrita por Kuprine assemelha-se à organização por castas do sistema social indiano. Inclusivamente, o olhar do narrador quando descreve a Pequena Yamskaya, perde um pouco da sua objectividade, acabando por sucumbir a um certo sentimento de repugnância face ao ambiente daquela zona da cidade, como atesta o substantivo declinado no diminutivo “gentinha”, fazendo equivaler os frequentadores e as trabalhadoras do sexo dos bordéis mais miseráveis ao estatuto de “párias” (os excluídos do sistema de castas praticado na Índia). Para não nos alongarmos demasiado na dissecação desta obra literária com prolongadas análises de teor sociológico ou na exploração dos meandros da descrição psicológica das personagens que é meticulosamente efectuada ao longo da narrativa, assim como as relações de hierarquia dentro do bordel, ou as relações de amor-ódio que as prostitutas estabelecem entre si e com os clientes que frequentam o estabelecimento, o que exigiria do texto uma envergadura equivalente à de uma tese de doutoramento, passemos então à segunda parte do romance.

II - No início deste segundo volume, ocorre uma prolepse, um avanço no tempo de dez anos na Yama, período em que se processa um sem-número de transformações a vários níveis: social, económico e, inclusive tecnológico:

«Ainda hoje, volvidos dez anos, os antigos habitantes da Yama se recordam bem daquele ano próspero em acontecimentos nefastos, sórdidos e sangrentos, que começou por uma série de pequenos escândalos insignificantes e terminou na decisão da Administração Local de, um belo dia, arrasar por completo os velhos e habituais antros de prostituição, por ela própria criados, distribuindo depois o que deles sobrou pelos hospitais, prisões e ruas da grande cidade. Ainda hoje algumas das poucas sobreviventes, antigas patroas e governantas dessas casas, mulheres já completamente decrépitas, gordas e roucas como buldogues velhos, se recordam dessa destruição geral com mágoa, horror e simplória perplexidade.
Assim como batatas caídas de uma saca rota que se vai rompendo cada vez mais, começaram a aumentar as brigas, os roubos, as doenças, os assassínios e os suicídios, parecendo que ninguém era culpado de nada. Todas as desavenças começaram pura e simplesmente a tornar-se cada vez mais frequentes, a acumular-se umas em cima das outras, a crescer e a alargar tal e qual uma pequena bola de neve chutada pelos pés de uma criança e que ao rolar se vai tornando cada vez maior por causa da neve semi-derretida que se vai pegando a ela. Passados alguns momentos já a bola é maior do que a altura de um homem e, por fim, basta apenas um ligeiro toque para que ela se precipite em direcção ao barranco e role por ali abaixo formando uma enorme avalanche. As velhas patroas e governantas desses prostíbulos nunca tinham ouvido falar do destino, mas, no fundo da alma, todas elas sentiam a sua misteriosa presença nas desgraças inelutáveis daquele ano terrível.».

O narrador utiliza a prolepse no primeiro parágrafo desta segunda parte do romance, para assinalar o corte com a narrativa da primeira parte. Este corte é marcado por uma mudança brusca que altera a caracterização do cenário que dá corpo à localização espacial da trama. Segue-se um segundo parágrafo cheio de indícios, que permitem ao leitor antecipar, embora de forma ainda nebulosa, as directrizes que estão na base do desenvolvimento da história, o qual é todo um processo que desemboca na decadência do comércio do sexo na Yama e na progressiva degradação das vidas de contornos melodramáticos das heroínas da primeira parte, as quais verão os seus sonhos desfazerem-se, ruindo lenta e inexoravelmente, as suas expectativas.

Também o ponto de vista prevalecente da narrativa começa aqui a mudar de foco e a centrar-se antes no grupo de estudantes que frequenta regularmente o bordel de Anna Márkovna, nas suas paixões, ideais, interesses e anseios, no seu olhar sobre a sociedade e, particularmente, no papel que as mulheres nela ocupam. Aqui, ponto de vista dominante é, bastante mais ainda do que na primeira parte, o masculino.

III - Na terceira e última parte, o narrador surpreende os leitores ao fazer notar que, dentro da trama geral, sempre narrada na terceira pessoa, por uma voz omnisciente, há uma outra voz embutida que verte uma narrativa encaixada, a história da prostituta Liuba e do estudante Likhonine. O ponto de vista de Liuba é mediado pelo do narrador principal, heterodiegético, aparecendo ora em discurso indirecto (onde se vê o ponto de vista do narrador face às personagens, Liuba incluída) ora em discurso indirecto livre (onde a voz de Liuba surge embutida no discurso do narrador):

«Foi toda esta longa e atribulada história que Liuba contara soluçando no ombro de Gênia. É claro que toda esta tragicomédia foi apresentada por ela com uma interpretação muito diferente da realidade vivida.
Segundo as suas palavras, Likhonine só a tinha levado consigo para se entreter um pouco com ela, para a impressionar, para se servir da sua tolice até se fartar e expulsá-la depois. E ela, idiota, que verdadeiramente se havia apaixonado por ele, que tinha uns ciúmes danados de todos aqueles guedelhudos de cinturões de pele, viu-se então enredada nesta baixaria: ele combinou com o seu colega de modo a que este, estando ali com ela, de propósito a começasse a abraçar no momento em que ele, Likhonine, entrasse, visse aquilo, pudesse armar um escândalo e a despejasse no meio da rua.

Na versão dela havia tanto de verdade como de mentira, as duas partes estavam equilibradas, mas, como quer que fosse, ela acreditava que as coisas assim aconteceram.».


A multiplicidade de pontos de vista, que se reflecte no cruzamento de várias formas de olhar o real, ora justapondo ora aglutinando a visão do narrador e das personagens, assim como a profusão de detalhes com que o autor preenche o discurso narrativo, a par da habilidade com que atribui ao narrador a capacidade de dar a perceber o efeito da passagem do tempo nas personagens, na cidade e na própria região da Yama conferem a a dimensão épica e polifónica à obra, fazendo dela um dos grandes clássicos da literatura russa, publicado no início do século XX. Apesar disso, Alexsandr Kuprine não é dos autores russos mais divulgados em Portugal, pelo que que já vai sendo altura de se pensar em publicar outras obras do autor e, sobretudo, na reedição deste soberbo retrato da Yama, A Fossa de um Império extinto.


Londres, 30 de Março de 1016

Cláudia de Sousa Dias

2 Comments:

Blogger M. said...

Se está na linha de Dostoievski, como, de facto, parece, vou gostar! Não conhecia essa tradutora de russo (terá sido a partir do russo?).
Beijinhos :)

5:36 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

Olá, M.! Sim, o livro é traduzido directamente do Russo.

7:28 PM  

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