“Goa ou o Guardião da Aurora” de Richard Zimler (Gótica)
O quarto romance deste escritor americano de raízes judaicas o terceiro publicado em língua portuguesa - que adoptou a terra de Camões como país de eleição para viver no início dos anos noventa versa, mais uma vez, sobre a família Zarco, já conhecida de O Último Cabalista de Lisboa. Em Goa ou o Guardião da Aurora, é explorada a história de outro ramo da mesma família, algumas décadas mais tarde.
Estamos nos finais do século XVI, na Índia, onde o pai de Tiago Zarco guarda o manuscrito, legado pelo falecido patriarca Abraham Zarco, detentor dos segredos da Kaballah.
O romance começa com uma regressão no tempo contada a partir das memórias de Tiago, já adulto, enquanto aguarda julgamento no cárcere. O jovem começa por recordar a infância – uma técnica que já é familiar em Richard Zimler: o recorrer à memória recuada das primeiras lembranças, isto é, aquelas que deixam marcas mais profundas. Principalmente as que estão ligadas aos livros, como no texto introdutório de Meia-Noite ou o Princípio do Mundo, outro romance do Autor no qual o jovem protagonista se deixa seduzir por uma velha carta de amor escondida dentro de um livro.
A infância de Tiago e Sofia Zarco passa-se em Bijapur, cidade próxima de Goa. Os dois irmãos são crianças sobredotadas que, já desde tenra idade, se dedicam à arte da iluminura trabalhando em manuscritos, juntamente com o pai.
Tiago executa desenhos que deslumbram, quer pela forma quer pelas cores de uma beleza impossível de descrever. Por outro lado, o apreço de Sofia pelo detalhe, pela minúcia e pelo segredo, característica que marcará a personagem ao longo de todo o romance, fazem-na optar pela arte do microdesenho ou da micrografia, possibilitando-lhe escrever mensagens secretas nos livros.
Esta primeira parte das suas vidas decorre calmamente, numa cidade onde ainda não chegou o braço da Inquisição. A única sombra na vida dos dois jovens reside na morte da mãe, que se reflecte em atitudes incoerentes por parte do pai, ao deixar entrever um desespero interior que mascara com um talento inato para o mimo e a comédia.
A coesão entre os três membros desta família é, nesta fase, praticamente indissolúvel.
Existe, por outro lado, uma relação de desconfiança, uma espécie de amor-ódio, sobretudo por parte de Tiago em relação ao primo Wadi, de ascendência árabe, adoptado pela tia – uma adepta fervorosíssima da fé católica –, que olha com um certo desprezo o lado judaico da família.
As coisas complicam-se com a entrada dos jovens na adolescência e o aparecimento de novas personagens. Wadi e a jovem indiana Tejal – a frequentar um colégio de freiras e a única criança na aldeia a receber instrução –, começam a fazer parte do círculo fechado que é a família nuclear Zarco, factor que gera alguns conflitos .
A personalidade de Wadi, vulcânica, conflituosa e ciumenta, assim como a doçura de Tejal causam uma forte perturbação nas relações entre os membros da família. O pai teme sobretudo a influência da cunhada, Maria, esposa do irmão e mãe adoptiva de Wadi; Tiago receia a capacidade de dissimulação do primo e a violência implícita nas suas atitudes; Sofia sofre com o medo imaginário de não ser apreciada, sendo susceptível a uma melhor aceitação de Tejal por parte do pai do que em relação a Wadi. Sofia é detentora de uma personalidade extremamente frágil, de uma imaginação febril que a leva, muitas vezes, a tecer raciocínios deturpados e a construir um mundo próprio no qual se refugia e a que mais ninguém tem acesso.
A mudança de cena para Goa, com o casamento dos dois primos - Sofia e Wadi - contribui para o desenvolvimento da intriga a qual atrairá a fatalidade e o infortúnio para a família Zarco. Em Goa, torna-se mais difícil escapar às garras da Inquisição, que se serve da delação sem fundamento como prova...
Numa terceira fase, após consumada parte da tragédia, Tiago Zarco passa a relatar, num discurso de grande realismo, a experiência vivida no cárcere – o desterro a caminho de Lisboa, onde o esperam anos de trabalhos forçados. Motivo: dissidência religiosa.
Apesar das vicissitudes, Tiago faz alguns amigos e estabelece excelentes contactos, conquistando aliados.
Mas é precisamente neste período que a personalidade do protagonista começa a sofrer alterações. Um pormenor que dota este romance de uma convincente nota de realismo. Tiago passa a ocultar dentro de si algo de obscuro. Secreto. Desenvolve a capacidade de dissimular. Todas as suas atitudes começam a ter subjacentes uma intenção oculta. Descobre o poder de jogar com as vidas alheias, como se estas se tratassem de peças de xadrez. É neste ponto do romance que Zimler dá o verdadeiro golpe de génio, ao inverter radicalmente o desenvolvimento da trama.
Com o regresso à Índia, começam a ser reveladas, pouco a pouco, as linhas do plano de Tiago Zarco. Em Goa, Tiago depara-se com a possibilidade de escolher ou de alterar o seu próprio destino. A opção que faz determina o destino de todas as restantes personagens.
O Autor, para construir o discurso de um prisioneiro da Inquisição em Goa ou o Guardião da Aurora baseou-se em documentos antigos onde constam apontamentos de pessoas que, na época referida, passaram à forma escrita as suas experiências.
Já a trama em si, é nitidamente inspirada em Othello de Shakespeare onde as personagens de Ana/Sofia fazem de Desdémona, onde há um Mouro de carácter sanguíneo que comete um crime passional e, contrariamente a tudo aquilo que se poderia esperar, o grande vilão é mesmo o Judeu.
A revelação final torna-se a punição que o Autor atribui ao arquitecto da Vingança, ao qual lhe é negada a felicidade, em cujo lugar se instala, finalmente, a Culpa.
Os indícios da presença de um "gene Maléfico", ainda por desenvolver, ou de uma propensão para executar uma vingança sem limites está patente na atribuição da alcunha de "Trevas Azuis" ao grande vilão do romance. Uma alcunha que é inspirada no olhar da personagem, em cuja cor celeste espreita algo de misterioso e obscuro. Luciferino. O temperamento explosivo, calculista e felino desta criatura está implícito na alcunha atribuída pelo rival – Tigre.
Tudo isto, porque o jovem não se conforma com o papel, conferido pelo pai, de Guardião da Aurora – inspirado numa lenda indiana que fala de um guardião que, nas trevas na noite, zela para que a Aurora continue a chegar ao horizonte, impedindo a humanidade de perecer nas trevas. O objectivo deste guardião é impedir o extermínio de todos os judeus do território português e o perecer do conhecimento, saber e cultura judaicos nos autos-de-fé em praça pública. A Aurora personifica a luz que expulsa as trevas, numa manifestação da força de YHWH. É a génese do iluminismo.
Contudo, nem sempre os fins justificam os meios...
Um livro que surpreende pela pertinência da crítica face à intolerância em todas as manifestações de fé e às posições ideológicas extremistas, escondida nas entrelinhas e patente no impressionante final com que nos presenteia Richard Zimler.
Zimler é particularmente brilhante, na forma como constrói a estrutura mental de todas as personagens e estratifica as respectivas motivações ao descrever todas as nuances emocionais, uma característica que torna a sua escrita particularmente rica.
Um excelente presente para este Natal.
Cláudia de Sousa Dias.
Estamos nos finais do século XVI, na Índia, onde o pai de Tiago Zarco guarda o manuscrito, legado pelo falecido patriarca Abraham Zarco, detentor dos segredos da Kaballah.
O romance começa com uma regressão no tempo contada a partir das memórias de Tiago, já adulto, enquanto aguarda julgamento no cárcere. O jovem começa por recordar a infância – uma técnica que já é familiar em Richard Zimler: o recorrer à memória recuada das primeiras lembranças, isto é, aquelas que deixam marcas mais profundas. Principalmente as que estão ligadas aos livros, como no texto introdutório de Meia-Noite ou o Princípio do Mundo, outro romance do Autor no qual o jovem protagonista se deixa seduzir por uma velha carta de amor escondida dentro de um livro.
A infância de Tiago e Sofia Zarco passa-se em Bijapur, cidade próxima de Goa. Os dois irmãos são crianças sobredotadas que, já desde tenra idade, se dedicam à arte da iluminura trabalhando em manuscritos, juntamente com o pai.
Tiago executa desenhos que deslumbram, quer pela forma quer pelas cores de uma beleza impossível de descrever. Por outro lado, o apreço de Sofia pelo detalhe, pela minúcia e pelo segredo, característica que marcará a personagem ao longo de todo o romance, fazem-na optar pela arte do microdesenho ou da micrografia, possibilitando-lhe escrever mensagens secretas nos livros.
Esta primeira parte das suas vidas decorre calmamente, numa cidade onde ainda não chegou o braço da Inquisição. A única sombra na vida dos dois jovens reside na morte da mãe, que se reflecte em atitudes incoerentes por parte do pai, ao deixar entrever um desespero interior que mascara com um talento inato para o mimo e a comédia.
A coesão entre os três membros desta família é, nesta fase, praticamente indissolúvel.
Existe, por outro lado, uma relação de desconfiança, uma espécie de amor-ódio, sobretudo por parte de Tiago em relação ao primo Wadi, de ascendência árabe, adoptado pela tia – uma adepta fervorosíssima da fé católica –, que olha com um certo desprezo o lado judaico da família.
As coisas complicam-se com a entrada dos jovens na adolescência e o aparecimento de novas personagens. Wadi e a jovem indiana Tejal – a frequentar um colégio de freiras e a única criança na aldeia a receber instrução –, começam a fazer parte do círculo fechado que é a família nuclear Zarco, factor que gera alguns conflitos .
A personalidade de Wadi, vulcânica, conflituosa e ciumenta, assim como a doçura de Tejal causam uma forte perturbação nas relações entre os membros da família. O pai teme sobretudo a influência da cunhada, Maria, esposa do irmão e mãe adoptiva de Wadi; Tiago receia a capacidade de dissimulação do primo e a violência implícita nas suas atitudes; Sofia sofre com o medo imaginário de não ser apreciada, sendo susceptível a uma melhor aceitação de Tejal por parte do pai do que em relação a Wadi. Sofia é detentora de uma personalidade extremamente frágil, de uma imaginação febril que a leva, muitas vezes, a tecer raciocínios deturpados e a construir um mundo próprio no qual se refugia e a que mais ninguém tem acesso.
A mudança de cena para Goa, com o casamento dos dois primos - Sofia e Wadi - contribui para o desenvolvimento da intriga a qual atrairá a fatalidade e o infortúnio para a família Zarco. Em Goa, torna-se mais difícil escapar às garras da Inquisição, que se serve da delação sem fundamento como prova...
Numa terceira fase, após consumada parte da tragédia, Tiago Zarco passa a relatar, num discurso de grande realismo, a experiência vivida no cárcere – o desterro a caminho de Lisboa, onde o esperam anos de trabalhos forçados. Motivo: dissidência religiosa.
Apesar das vicissitudes, Tiago faz alguns amigos e estabelece excelentes contactos, conquistando aliados.
Mas é precisamente neste período que a personalidade do protagonista começa a sofrer alterações. Um pormenor que dota este romance de uma convincente nota de realismo. Tiago passa a ocultar dentro de si algo de obscuro. Secreto. Desenvolve a capacidade de dissimular. Todas as suas atitudes começam a ter subjacentes uma intenção oculta. Descobre o poder de jogar com as vidas alheias, como se estas se tratassem de peças de xadrez. É neste ponto do romance que Zimler dá o verdadeiro golpe de génio, ao inverter radicalmente o desenvolvimento da trama.
Com o regresso à Índia, começam a ser reveladas, pouco a pouco, as linhas do plano de Tiago Zarco. Em Goa, Tiago depara-se com a possibilidade de escolher ou de alterar o seu próprio destino. A opção que faz determina o destino de todas as restantes personagens.
O Autor, para construir o discurso de um prisioneiro da Inquisição em Goa ou o Guardião da Aurora baseou-se em documentos antigos onde constam apontamentos de pessoas que, na época referida, passaram à forma escrita as suas experiências.
Já a trama em si, é nitidamente inspirada em Othello de Shakespeare onde as personagens de Ana/Sofia fazem de Desdémona, onde há um Mouro de carácter sanguíneo que comete um crime passional e, contrariamente a tudo aquilo que se poderia esperar, o grande vilão é mesmo o Judeu.
A revelação final torna-se a punição que o Autor atribui ao arquitecto da Vingança, ao qual lhe é negada a felicidade, em cujo lugar se instala, finalmente, a Culpa.
Os indícios da presença de um "gene Maléfico", ainda por desenvolver, ou de uma propensão para executar uma vingança sem limites está patente na atribuição da alcunha de "Trevas Azuis" ao grande vilão do romance. Uma alcunha que é inspirada no olhar da personagem, em cuja cor celeste espreita algo de misterioso e obscuro. Luciferino. O temperamento explosivo, calculista e felino desta criatura está implícito na alcunha atribuída pelo rival – Tigre.
Tudo isto, porque o jovem não se conforma com o papel, conferido pelo pai, de Guardião da Aurora – inspirado numa lenda indiana que fala de um guardião que, nas trevas na noite, zela para que a Aurora continue a chegar ao horizonte, impedindo a humanidade de perecer nas trevas. O objectivo deste guardião é impedir o extermínio de todos os judeus do território português e o perecer do conhecimento, saber e cultura judaicos nos autos-de-fé em praça pública. A Aurora personifica a luz que expulsa as trevas, numa manifestação da força de YHWH. É a génese do iluminismo.
Contudo, nem sempre os fins justificam os meios...
Um livro que surpreende pela pertinência da crítica face à intolerância em todas as manifestações de fé e às posições ideológicas extremistas, escondida nas entrelinhas e patente no impressionante final com que nos presenteia Richard Zimler.
Zimler é particularmente brilhante, na forma como constrói a estrutura mental de todas as personagens e estratifica as respectivas motivações ao descrever todas as nuances emocionais, uma característica que torna a sua escrita particularmente rica.
Um excelente presente para este Natal.
Cláudia de Sousa Dias.
24 Comments:
Gostei muito de recordar a obra que li há já algum tempo, através deste magnífico post. Muito obrigada!
Sou fã confessa de Zimmler.
Gosto da forma simples como escreve e trata de questões tão complexas.
Julgo que a crítica aos extremismos e radicalismos que, como sublinhas, está presente neste livro, é uma constante de toda a obra do autor. Ele é um arauto da tolerância.
Não me lembro de ter lido esse livro do Zimler.
Mais um para a lista...
Boa semana.
Beijos.
Querida Bloguista: Precisava de saber, em princípio, se está interessada/o em inscrever-se no 1º Encontro Nacional de Blogues de Cinema (ver http://lauroantonioapresenta.blogspot.com/). Nenhum compromisso, apenas em princípio.
Favor enviar nome pessoal, e nome e endereço do blogue.
Favor votar na escolha do work shop caso esteja interessando em participar. Tudo até final do ano.
Um abraço (e beijo) do Lauro Antonio
RTP, para mim o meu livro favorito dele é o "Meia noite ou o Princípio do Mundo", que eu acho que dá umargumento fantástico para um filme. Ainda não li nem comprei "À procura de Sana"...
:-)
Nilson, eu acho que é uma excelente escolha!
Lauro António, gostria muito, embora não possa garantir a 100% a minha presença!
Depois vou ao seu blog para fazer a minha inscrição!
Beijinhos a todos!
CSD
Vou mesmo seguir o teu conselho.
Bom fim-de-semana.
Beijos.
Ainda bem!
Bjo para ti também e votos de um excelente fim-de-semana!
CSD
;-)*
Adorei O Goa mas o meu preferido continua a ser o Último Cabalista de Lisboa, tb já li o Á Procura de Sana e está muito bom.
Beijo para ti, JP.
Totoia,
Também quero ler "Á Procura de Sana", mas tenho andado com um ritmo de leitura muito lento, ultimamente.
Por outro lado o comentário do livro de Umberto Eco tem-me dado uma trabalheira inimaginável.
Mas acho que no máximo dos máximos na 4º feira teremos um novo post...
CSD
Ainda não li nada do Zimler. mas tenho vontade.
e estou por aqui. vem mesmo. quando te apetecer.
Feliz Natal, querida Claudia!
Um beijo grande, Lilly!
E é claro que vou aparecer. Ou neste fim de semana ou no próximo!
BJO
CSD
Só para te desejar um feliz Natal e um bom ano de 2007, para ti e para a tua família.
Beijos.
Um Natal muito feliz, Cláudia. Boas leituras!
Boas Festas e bons livros para manter a qualidade, querida Cláudia.
Beijos natalícios para ti.
Anabela
Olha p'ra mim... embrenhada em outras leituras, este livro passou-me ao lado. E logo eu que estudo a documentação da época de D. Manuel e passo inevitavelmente por Goa. "Malditas" (!) crónicas régias que me levam o tempo todo...
Vou comprar.
Obrigada.
Boas festas Ameixaclaudia.
:)*
Um Natal Muito, muito feliz e um 2007 cheio de...livros e de projectos de vida concretizados.
Um excelente Natal para a CSD e um grande obrigado pelas excelentes críticas literárias com que nos vai brindando! Esta é uma das formas de haver Natal em todos os dias!
Estás de férias...?
Boa semana.
Beijos.
Vou tentar ver os dois, mas para mim é Amarcord, definitivamente!
De chorar a rir!
Vejo quantas vezes passar na televisão, no cine-clube, no cine aao ar livre...
Bjo e bom ano novo!
CSD
Este livro de Zimler estava na minha prateleira há meia dúzia de meses à espera de tempo para ser saboreado. Agora esta a ser empolgantemente devorado. Com muito gosto…
Acho que vou ter de conhecer melhor o autor…
E…, nem me atrevo a ler o teu post…, mas vou guardar para ler daqui a uns (poucos) dias.
Que bom Pedro!
Tenho a certeza que vais adorar o final!
;-)
CSD
Olá!
Vim aqui parar por andar á procura de livros de Richard Zimler.
Já li o Goa, ou o guardião da Aurora... a minha família é de Goa, e é como se estivesse a imaginar a vida dos meus antepassados! :) Desde então fiquei fã deste autor. Hoje comecei o Último cabalista de Lisboa, que já tenho na prateleira pelo menos há 1 ano!
Achieo o blog interessante. Vou passando por aqui.
Gostei deste livro de Zimmler, mas o melhor dele continua a ser o "Meia-Noite ou o Princípio do Mundo". Verás que vais gostar...
CSD
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