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Saturday, January 27, 2007

“A Rumba de Lázaro” de Ernesto Mestre (ASA)


Ernesto Mestre é um autor cubano que, embora ainda pouco conhecido pelo público português, possui duas características que tornam a sua escrita irresistível, para os amantes da boa literatura: a irreverência, a coragem desafiadora de colocar a nu aquilo que muitos só ousam falar por subentendidos; e o gosto pelos detalhes, que lhe permite descrever as situações com todas as suas nuances.
De facto, algumas das personagens que, inicialmente tendemos a identificar como grandes vilões têm, na realidade, um carácter multifacetado: são moduladas, redondas, acabando por revelar facetas inesperadas com o desenrolar da trama. Elas são o meio-termo entre anjo e demónio, podendo assumir uma ou outra face, consoante as circunstâncias. É o caso da personagem fictícia Doña Adela, mãe da protagonista, e da personagem histórica, Fidel Castro, o polémico ditador, uma das figuras mais difíceis de caracterizar.

Em A Rumba de Lázaro, Ernesto Mestre aborda o tema da liberdade de expressão ideológica, o direito de assumir-se como livre-pensador, do exercer a liberdade de expressão escrita e o direito à livre escolha da orientação do desejo sexual.

Mestre insiste, particularmente, na violação dos direitos fundamentais perpetradas pelos representantes, quer a nível nacional quer a nível local, do estado cubano. "Um país onde sonho e pesadelo se confundem".

O romance principia com a narração da infância e adolescência das irmãs Alicia e Marta, filhas de mães diferentes que, em comum, têm um pai irresistivelmente sedutor.

Nesta primeira parte do romance, Doña Adela, mãe de Alicia desempenha o papel de uma Hera, o arquétipo da esposa ciumenta e cruel, face a um marido que é o estereótipo de um Zeus mulherengo e volúvel.

Mas, à medida que a trama se desenrola, a personalidade de Doña Adela vai sofrendo alterações, esculpida pelos golpes de cinzel da Roda da Fortuna: de Hera, Doña Adela transforma-se em Deméter, a mãe abnegada que defende a filha e protege, até às últimas consequências, a neta, Teresita. O Tempo também lhe suaviza o ciúme, permitindo-lhe aceitar a presença de Marta, cuja semelhança com Alicia faz com pareçam gémeas.

O romance prossegue com várias analepses – regressões no tempo – que fazem com que o ritmo do desenvolvimento da trama se assemelhe ao de uma rumba, um refrão que se repete uma e outra vez, num movimento de vaivém. É desta forma que o autor procede à narração das origens das personagens principais envolvidas na história, mais propriamente, daquelas que contracenam directa ou indirectamente com Alicia – a quem os membros locais do partido castrista consideram como a mais perigosa e subversiva contra-revolucionária.

Alicia sente-se irresistivelmente atraída por homens de beleza feminil, andrógina, como é o caso primo Héctor, o acrobata, cuja beleza exótica tem o condão de seduzir homens e mulheres.

Mas apesar do amor desmedido e incondicional de Alicia, a orientação sexual de Hector não deixa margem para dúvidas: é um homem amante de homens. A primeira paixão é o seu irmão gémeo, Juanito, apesar da iniciação sexual de Héctor ficar a cargo do Señor Sariel – o seu mestre nas lides acrobáticas, que não resiste à tentação de o iniciar nas artes eróticas. Este ensina ambos os gémeos a perigosa Rumba de Lázaro – uma profusão de saltos mortais cruzados, no trapézio – um número acrobático que tem o condão de deixar o público hipnotizado.

O Señor Sariel é outra personagem ambígua, de difícil classificação. De aspecto físico grotesco, este ser disforme tem, no plano psicológico, tanto de anjo como de demónio. Excelente professor, manifesta uma adoração ilimitada pelos dois jovens. Sobretudo por Héctor. Mas também é verdade que não deixa de se aproveitar da posição de mestre para abusar sexualmente dos seus alunos.

Já o voyeurismo sexual de quem não assume as suas preferências está a cargo do fotógrafo, amigo da família dos gémeos, que regista os voos prodigiosos dos dois jovens para a posteridade.

Após o desaparecimento de Juanito, Héctor sente uma inclinação, uma paixão platónica por Júlio César Cruz, o viril marido de Alicia, perseguido pelo autoritarismo de Fidel, devido ao seu desejo de independência face à estrutura formal do regime e à fidelidade aos ideais de Che, que deram origem à Revolução.

Héctor tem, ainda antes da sua morte, uma ligação sensual com Triste, o contorcionista, o qual, entrará, mais tarde, em contacto com Alicia, exilada na ilha dos Pinheiros.

É esta fase do romance – o monólogo de Triste, o Contorcionista –, uma das mais belas passagens da obra, pela melancolia impressa no registo poético do amante que vê morrer o objecto amado. É através de Triste que Alicia fica a par do Inferno que foram os últimos meses de vida de Héctor. A tortura, as sevícias, o abuso sexual por parte dos guardas prisionais, que o massacram com o "vício" que estimulam para depois punir, munindo-se dos mais elaborados requintes de sadismo, num ambiente que faz lembrar as celas da prisão de O Beijo da Mulher-Aranha.

Um Livro-Denúncia

Mas, para além da falta de liberdade na escolha da forma de amar, o principal vector de desenvolvimento do romance é os limites à liberdade de expressão, numa ditadura de esquerda. Situação que atinge o seu auge quando Alicia, juntamente com duas amigas, ao traduzirem obras como Alice no País das Maravilhas de Lewis Carrol – uma emanação cultural de um país "capitalista", aliado dos ianques, que pode ser vista como um ataque directo a "El Líder" – e pela leitura e interpretação pessoal que a jovem mãe de Teresita faz do episódio bíblico do Massacre dos Inocentes, referente ao Rei Herodes, num texto ao qual deu o poético título de O Sermão dos Sete Beijos, lido durante a Missa do Galo. O texto é interpretado como um ataque directo aos micro-tiranos de Cuba, como o chefe da polícia política local, que deseja ser mais papista do que o próprio Papa. Ou seja mais fidelista que o próprio Fidel.

O Autor refere-se, em vários momentos do romance, à violação dos direitos mais fundamentais em Cuba. Para além de colocar a nu a ineficácia económica do regime, que está longe de atingir os objectivos de produção estabelecidos por El Comandante-en-Jefe. Mestre denuncia, também, a descarada exploração do trabalho infantil por parte do Estado cubano. Para além de descrever com precisão as falhas no sistema educativo e o escandaloso desinvestimento no sistema de saúde no regime castrista.

O Estilo

O estilo da escrita de Ernesto Mestre está impregnado da poesia e do tom apaixonado de Pablo Neruda, misturado com o onirismo e realismo mágico de Gabriel García Márquez, num romance onde abundam episódios insólitos de elevado sentido de humor como é o caso do galo Atila, que canta como uma arara Pavarotiana e insulta descaradamente Fidel, no auge de uma das suas manifestações patrióticas, ao soltar um violento flato, no momento em que o Líder está a cantar o hino nacional - uma das cenas mais hilariantes e escatológicas da obra.

O episódio de Mingo (apaixonado por uma vaca) e das papaias contaminadas, assim como os estranhos acontecimentos que envolvem Alicia e Marta no rio, são a manifestação do insólito, do maravilhoso, do incompreensível, a escorregar para as cenas oníricas de um quadro de Dalí ou de Onik.

Já o significado simbólico das Comedoras de Palavras exprime uma acutilante estocada, em forma de parábola, ao sistema de delação de supostas actividades contra-revolucionárias face ao governo de Fidel.

A Estrutura

A trama desenvolve-se imitando os passos de uma Rumba, cheia de avanços e recuos que explicam o percurso e os antecedentes de cada uma das personagens, que intervém activamente no desenvolvimento do romance, para que possamos entender as suas atitudes.

Existem dois tipos de narradores: o narrador não participante, que relata o percurso da maior parte das personagens e, um narrador participante, o amante de Héctor, Triste, o Contorcionista. À extrema dureza presente nas cenas narradas no seu monólogo, opõe-se a belíssima prosa poética recheada de melancolia numa dilacerante narrativa que dá a conhecer a Alicia o trágico fim daquele a quem ambos amaram.

São muitas as intertextualidades presentes no romance, dentre as quais se pode destacar alguma semelhança com García Márquez, como já foi referido. Está, também, presente a influência de Isabel Allende na violenta contestação feita pela pena de Mestre aos regimes totalitários, às violentas torturas e inexplicáveis desaparecimentos de cidadãos nas húmidas e fétidas celas prisionais. Também encontramos ecos do Salto Mortal de Marion Zimmer Bradley, na paixão homossexual entre os dois acrobatas, Héctor e Juanito.

Mestre tem a capacidade única de transformar a fealdade em beleza, para além de ser um virtuoso no uso da ironia, da metáfora e da parábola.

Um livro que, para além da incomensurável beleza da expressão escrita, nos obriga a pensar do ponto de vista crítico, nos acontecimentos históricos da segunda metade do século XX.

Um golpe de machado nos preconceitos que ainda subsistem no século actual.

Cláudia de Sousa Dias

5 Comments:

Blogger Claudia Sousa Dias said...

Hello...

CSD

6:41 PM  
Blogger Nilson Barcelli said...

Hello...
Não li nada do Ernesto Mestre.
Mas fixei o título, pois pelo que dizes vale a pena ler.
Continuo a achar impressionantes as tuas análises.
Bom fim-de-semana.
Um beijo.

6:31 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

Olá Nilson!

:-)

O meu Hello deveu-se ao facto de, nos últimos três dias não conseguir fazer log in devido a um problema de configuração de um dos meus blogs! (lol)

O resultado foi eu não conseguir postar nem comentar em quase nenhum dos blogs meus conhecidos!


Mas já foi resolvido, com a ajuda da minha amiga Arabie!

Obrigada pelo teu comentário!

beijinho

7:05 PM  
Anonymous Anonymous said...

"No comments", Cláudia!
Os meus parabéns! Gostei muito, voei com esta análise com as mesmas asas que voei quando li o livro!
Parabéns
Tiago
tiagoplim@gmail.com

5:18 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

Olá Tiago!

É um prazer constatar que alguém gostou tanto de ler um livro como este!

Confesso que na altura em que fiz o post fiquei um pouco surpreendida pelo facto de quase não haver reacção ao conteúdo de um livro que tem tanto que se lhe diga...

CSD

5:40 PM  

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