"O Vendedor de Passados" de José Eduardo Agualusa (Dom Quixote)
De acordo com a nota da editora na contracapa desta obra de ficção de Agualusa, o protagonista desempenha
um “estranho ofício” no qual "...vende passados falsos" a "clientes, prósperos empresários, políticos, generais (…) [e] fabrica-lhes uma genealogia de luxo, memórias felizes,
consegue-lhes os retratos dos ancestrais ilustres".
Este é o terceiro livro de José
Eduardo Agualusa a ser comentado neste blogue que chega até nós escrito num registo bastante
mais leve que o romance em jeito de crónica Estação
das Chuvas – obra marcadamente trangenérica,
situada algures entre a ficção, a reportagem, o documentário
histórico e o registo poético, é considerado talvez o melhor livro
jamais escrito pelo autor – e do romance em prosa poética, com
narrador autodiegético Um Estanho em Goa – obra
que se caracteriza pelo teor marcadamente literário que lhe advém
não apenas do discurso poético imbuído de melancolia do narrador
mas sobretudo pelo diálogo inter-textual com obras de outros autores
(uma característica recorrente na obra de Agualusa): tal como o poema
“Endechas a Bárbara Escrava” de Luís
Vaz de Camões ou o
romance Nocturno Indiano
de Antonio Tabucchi ou
ainda pela alusão à heteronímia de Fernando Pessoa, através do
desdobramento da identidade do protagonista.
Contrariamente a estas duas obras, o O
Vendedor de Passados embora se enquadre igualmente no género literário, apresenta-se num registo
diametralmente oposto. A trama consiste numa farsa, de cariz vincadamente satírico, onde o narrador, tal como acontece em A Metamorfose de Kafka, em Flush de Woolf ou recuando até à
Antiguidade Clássica, com as fábulas de Esopo, apresenta-se com uma morfologia animal mas assume um ethos que se manifesta através de um pensamento tipicamente antropocêntrico, ao projectar reflexões sobre o comportamento, cultura sentimentos e vaidades humanas. Este narrador nomeado Eulálio pelo protagonista, Félix Ventura, assume a aparência física de uma
osga a viver na sombra e nas frestas das paredes da casa do seu
hospedeiro, passando assim relativamente despercebido, afastando-se do lugar central da trama, enquanto focaliza o olhar em Ventura que passa a vida a estudar, investigar vidas alheias para vender passados ilustres por encomenda, desenhados à medida das
expectativas dos seus clientes.
Ao
avançar na trama, o leitor fica ciente que esta se estrutura na
diluição das fronteiras do Tempo, dado que, o narrador, por ser uma
reencarnação no corpo de um réptil de uma alma humana que viveu na Angola outrora colonizada por portugueses, assume o papel de mediador entre as duas épocas. Eulálio é o ponto de contacto entre a Angola colonial, administrada
localmente e governada a partir da metrópole por portugueses e a
Angola contemporânea do pós-guerra civil ainda marcada pelas lutas intestinas
que se seguiram depois da Independência. A Osga é a pedra de toque
que marca a modalização temporal de forma a mostrar dois mundos paralelos: dois contextos sócio-históricos
radicalmente diferentes que moldaram o país e que inscreveram o respectivo estilo governativo nas populações locais. A
grande questão levantada por este livro tem a ver com o grau de influência, no estilo de vida das populações locais, por cada um destes estilos
de governação, a par das consequências do mesmo choque cultural sofrido no passado e ainda avaliar a
forma como estas duas maneiras de ver e estar no mundo (europeia e africana) conseguem hoje
coexistir no mesmo território.
O Vendedor de Passados é uma obra literária, que apesar da
aparente simplicidade, tem implícita, quer na sua estrutura quer
na própria evolução das personagens, a relação dialógica de
amor-ódio entre o impulso de preservação e transmissão da cultura
ancestral (centrada da tradição oral e património
imaterial) e a tendência para a sobreposição e domínio da cultura assente na palavra escrita, de raiz europeia e disseminada, sobretudo,
durante a presença colonial portuguesa naquele país. Esta
ideia é amplamente explorada pela investigadora Ana Bezerra da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Bezerra, 2011:133-134)1:
«Tecer
considerações sobre tradição na África abre de imediato uma
fenda entre o universo tradicional antes da presença do colonizador
e o complexo de silêncio e reescritas que marca a presença da
força colonial nesse ambiente, até mesmo no instante em que se fala
de uma 'pós- colonização'. As imagens desse abismo são sentidas
nessa prosa de Agualusa diante de uma burguesia que deseja rever
seus passados, realizando praticamente uma apologia ao arquétipo
lusitano.
(…)
Félix
[Ventura] então articula via projeto escrito o apagamento da
tradição africana e a invenção dos moldes europeus para essa
parcela da população [a burguesia emergente do pós- colonialismo]
que resolveu inscrever-se segundo o aval português.»
Bezerra
(2011) defende ainda que a metáfora associada à figura arquetípica deste
vendedor muito pouco ortodoxo é o recurso utilizado pelo autor para
explorar o percurso histórico da colonização portuguesa em África
estreitamente ligada à tentativa de apagamento do passado cultural
ancestral africano. Um processo que em Antropologia Cultural chamamos
de aculturação e que despoleta, não raro, todo um conjunto de consequências que
são demonstradas com as atitudes das personagens que povoam o
universo do romance O Vendedor de Passados:
«A
escrita de Agualusa revela (…) a abertura de novos espaços no
signo da pós-colonização, uma vez que pelo fluxo memorial se
interroga o momento actual do ser angolano» (Bezerra, 2011:134).
E
a forma de se proceder a este “interrogar-se” processa-se
através:
«...[d]o
diálogo entre o tradicionalismo e um mundo cada vez mais conectado
em que as fronteiras outrora estabelecidas, parecem permeáveis, à
escuta das culturas dos demais povos até mesmo para que a sua
própria cultura torne-se audível, depois de um longo período de
declarada marginalização frente ao universo cultural europeu.
(...)
Nesse
sentido, a tradição é recuperada via memória., para depois se
falar de um mecanismo de reconstrução e de multiplicidade, mesmo
que seja pelo mecanismo do colonizador – a escrita – o que
permitiria, de uma certa maneira, uma condição internacional de
falar do seu território e para além dele (…)» (Bezerra,
2011:134-135).
Toda
a construção do romance comporta em si a ideia de construção de
identidade, remetendo imediatamente para a noção de persona, máscara, como se as personagens se submetessem a
uma operação para mudança de rosto na mais radical das
metamorfoses. Ou como acontece no teatro desde a antiguidade clássica e como acontece no dia-a-dia com a comunicação em que cada actor social representa um determinado papel.
A edificação estrutural da trama assenta numa relação dicotómica
a vários níveis, desde a fisionomia e genética de Felix Ventura, o qual é negro e, contudo, albino; a sua cultura emana directamente da raiz
africana, mas está fortemente impregnada da influência da
cultura europeia, sobretudo no tocante ao conhecimento da Literatura. Isto permite-lhe dispor da extensa bagagem cultural dotando-o de capacidades extraordinárias de forma a poder
desempenhar a profissão de vendedor/criador de passados falsos, construtor de identidades feitas à medida das expectativas dos seus
clientes, como o mais especializado dos alfaiates. Um ficcionista
pragmático, portanto. Os clientes de Félix Ventura são sobretudo homens que enriqueceram a uma velocidade meteórica e,
não raro, de forma assaz suspeita, a procurar desesperadamente um
passado limpo e ilustre, ambicionando um adequado (na sua óptica)
reconhecimento social.
A
forma como todos estes factores, influem hoje na transformação da
mentalidade colectiva é amplamente explorada pela personagem
Félix Ventura em seu próprio benefício, uma vez que este possui, simultaneamente, a capacidade de ouvir e a agudeza de espírito de um psicanalista e o oportunismo de um gestor de
marketing que tenta vender um produto a uma dada clientela. É neste sentido que O
Vendedor de Passados
apela à “concepção híbrida africana com o corolário do
processo colonial” (Mata, 2003:46, op.cit in Bezerra, 2011:134), sendo que na obra de Agualusa a tradição é recuperada pela via da
memória, cujo veículo é a voz do narrador
O
realismo mágico é outra característica a ocupar uma posição de
destaque no romance, através da
figura da osga Eulálio. Este é, nada mais nada menos, do que o invólucro
físico que encerra um ser espiritual que atravessa o
tempo e cuja memória, aditiva e intemporal, funde, por um lado, a
magia de que se revestem os contos de tradição oral africana com o
pendor surrealista e experimentalista do modernismo do início do
século XX na literatura europeia (quem não se lembra da personagem
Orlando de Virginia Woolf que atravessa os séculos assumindo corpos
diferentes ou a narrativa a cargo da cadela Flush?).
Outro
aspecto a destacar nesta divertida obra será a função arquetípica das personagens,
como Buchmann, o ministro corrupto de conduta mais do que duvidosa,
que busca um passado irrepreensível, a fim de que lhe seja atribuído o
respeito e prestígio social de que se quer objecto mas cujas atitudes o traem a todo o momento pois não resiste ao recurso a ameaças, veladas ou não para conseguir os seus intentos. Ou a
fotógrafa Angela, personagem de cariz heróico, idealista, que procura a
verdade para além das aparências, o oposto de Ventura, que a
mascara por profissão. A única personagem que é caracterizada de forma positiva no romance. Agualusa tal como Umberto Eco concede essa homenagem às mulheres na sua obra ficcional.
Pode-se
destacar ainda a forma coloquial como a osga Eulálio vai narrando a
trama incorporando o léxico da língua local sem o destacar a
itálico para reforçar ainda mais a ideia de sincretismo cultural
através da fusão linguística no aspecto lexicográfico.
Por
último, convém salientar o papel do narrador como testemunha e dinamizador da relação dialógica entre os dois tempos da trama, a
mediação entre o ethos individual e colectivo das personagens
secundárias ao invés de enveredar os esforços para o apagamento do
primeiro que é o que tenta fazer o protagonista, Félix Ventura.
Sendo a osga um narrador omnisciente esta acaba por ser, ela também, uma personagem, uma vez que além de narrar a trama na primeira
pessoa também interage com o protagonista de forma marginal. Esta
característica híbrida de narrador-testemunha coloca-a na categoria
de narrador homodiegético.
Sendo
assim, apesar de O Vendedor de Passados
ser uma história “leve”, com um registo que facilmente se
enquadra no género comédia satírica, uma leitura mais aprofundada
mostra-nos que o tema nela tratado é de extrema seriedade: a
questão ontológica da identidade colectiva.
Londres,
30 de Junho de 2016
Cláudia
de Sousa Dias
1Bezerra,
Ana Cristina Pinto, 2011, “Entre Memória e Tradições na Escrita
de O Vendedor de Passados, de Agualusa” in Estação
Literária, Londrina, Vagão-volume 8 Parte A, pp.132-141, dez.2011,
Rio Grande do Norte.
4 Comments:
Este tenho e li :)
Beijinhos, bom domingo!
Ainda estou a editar o texto!
é o que dá quando se procura o que andaram os outros a escrever sobre o assunto para não andarmos depois nós a bater na mesma tecla...
Premonitório. O falso Brasil de hoje, ē de passado verdadeiro
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