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Friday, January 19, 2007

“O Estranho Amável” de Luísa Monteiro (Hugin)


A Alice de Lewis Carrol aos oitenta anos, encerrada num lar em terras algarvias, continua a viver o seu mundo de sonho e maravilhas.

O Pré Surrealismo de Carrol alia-se ao surrealismo de Luísa Monteiro em
O Estranho Amável ao adicionar à personagem do conto infantil uma audaciosa nota de provocação com a defesa do direito a sonhar e viver o seu próprio mundo, numa estranha e, nem sempre compreendida, forma de rebeldia. Uma temática ousada para uma sociedade onde os idosos são excluídos, tratada pela pena da Autora com as suas mais do que inesperadas associações que se manifestam nas mais surpreendentes metáforas, personificações e sinestesias.

Na primeira parte, A Dança do Cão Mundano, a personagem de Alice, já de si sonhadora, sofre um AVC, representado pela queda num buraco, ou melhor, num precipício, cujo impacto causa o esquecimento ou a perda de memória. O que atrai esta Alice para o rochedo não é o Coelho como na história de Carrol, mas o “miado lamurioso” da gatinha Dina – que é mencionada no conto de Carrol mas que não faz parte integrante do sonho da pequena Alice.

Há, no centro da temática de O Estranho Amável, uma cisão com a realidade que é notória tanto na Alice adormecida como na Alice acordada. E há, também, uma tendência para a cristalização do desenvolvimento emocional, na fase correspondente à infância, apesar do seguimento normal do seu crescimento físico/biológico: Alice coloca sempre as actividades que lhe causam prazer acima dos deveres mais básicos como, por exemplo, o cuidado com as crianças (o primado do princípio do prazer sobre o princípio da realidade).

Este é um dos lados da moeda.

O outro é o do marido de Alice. Tanto o marido, Fernando, como Luís, um estranho amável para a jovem Alice, tendem a gostar de mulheres-crianças. O primeiro, para se sentir senhor da situação, pelo desejo de exercer domínio em relação à parceira; o segundo, para poder partilhar o gosto de vaguear pelo mundo da fantasia.

Enquanto que o primeiro quer possuir, o segundo quer partilhar. Talvez por isso, Luís, o estranho amável, nunca passe ao acto de união física com a menina por quem nutre “um afecto tão grande que não cabe dentro de si”. Um afecto que se prolonga pela vida inteira até aquela idade em que a beleza e a juventude abandonam definitivamente o corpo, mas não a mente. E, na mente idosa de Alice, a ligação à realidade torna-se, de dia para dia, mais ténue.

Na escrita de Luísa Monteiro a Tragédia, o Medo da Morte, são simbolizados pela cor azul, uma cor aziaga – ex: a cor das batas das auxiliares dos hospitais, os Anjos da Limpeza.

Na cama ao lado, está a Rainha de Copas, uma mulher que consegue cativar a simpatia de Alice, apesar dos seus modos aparentemente bruscos, algo arredios. Uma mulher de carácter forte, personalidade vincada, que esconde uma enorme carência afectiva por detrás dos seus modos agrestes e da doença, que começa a devastar-lhe a memória.

Já Alice, apesar de não reconhecer ninguém da sua família, não deixa de antipatizar com a nora com a sua “boca enorme e vermelha como a entrada para o inferno”. Além disso entra em competição com a neta, por uma boneca de pano, como se esta tivesse uma idade próxima da sua, o que resulta num episódio extremamente divertido.

Perdida no limbo entre o sonho e a realidade, Alice divaga ao recordar, Lolita, a sua porquinha de estimação, que possui o mesmo nome da companheira de enfermaria. O cachorro D. Rafeiro de La Mancha é outra personagem que povoa os seus sonhos, seu aliado na cruzada em defesa dos animais e dos mais fracos em geral.

A escrita relacionada com o pensamento de Alice, durante o período em que sonha, sob o efeito dos medicamentos, é profundamente emocional, caótica, sem a preocupação da coerência: a mão que escreve transforma em palavras a linha emocional do pensamento onde entram a porquinha Lolita, a gata Dina, D. Rafeiro de la Mancha e Sancho, o burro, o grifo...

Na segunda parte, intitulada de Mancebias Literárias, Luísa Monteiro mostra a génese da paixão das personagens pelo seu autor, em cuja imaginação inspiram a criação literária – a de Alice pelo seu preceptor, Luís (como Lewis Carrol) e, a de Lolita, pela do professor Vladimiro (como Nabokov).

Ao mesmo tempo, ilustra o retrato mórbido, o ambiente asséptico, a atmosfera deprimente do hospital, o discurso brejeiro e os gestos impessoais dos Anjos da Limpeza . É aqui que a “Rainha de Copas” Lolita, ao vaguear pelas suas memórias, recorda Alice na juventude, bela como uma alegre e amarela flor do campo – um retrato físico, que muito se assemelha ao de Hildegarde As Sobredotadas. Ou é Hilde que é como Alice, só que não a deixam…

No meio do seu devaneio, a Rainha traz à luz do dia a sua admiração desmesurada por Alice…

Alice é, para a Rainha Lolita, o ideal, o modelo, ao qual, na ânsia de o querer imitar, seduz o professor Vladimiro tal como a outra Lolita, a de Nabokov. As consequências são a fuga, a s dificuldades económicas e a luta pela sobrevivência que mata uma paixão que se transforma em opressão.

Para Alice, o toque dos sinos é simbólico – sinal de memória, que ilumina as recordações que se apagadas pela acção dos fármacos.

É neste plano, que ela reencontra Luís, transfigurado, envelhecido, semelhante a uma caveira – provavelmente já atravessou o Estige na Barca de Caronte. Luís é preso nos voos azuis de Alice – mais uma vez a cor azul associada à morte. Luís é despojado do sentido da vida ao ser separado de Alice.

“Mas o Amor, tal como Deus, tem o poder de se opor à vontade humana”.

A terceira parte recebe o título de Poema de Pequenez Voadora no qual a personagem Alice dá largas ao prazer de imaginar, que se manifesta no alheamento a que se abandonam os idosos, característica a que a sociedade em geral atribui o rótulo de perda das faculdades mentais.

Alice possui a convicção de que a criatividade só pode surgir de uma mente não convencional, que não está espartilhada pelas regras normais do raciocínio lógico: “só escreve quem nasceu com a cabeça desarrumada como uma casa. O acto da escrita é o da arrumação...” e que “...um poema é um jogo de palavras e emoções e o que não é dito é sugerido”.

A fronteira entre o real e o imaginário é muito estreita porque “a realidade é uma pergunta elástica que se estica até ao infinito”.

A quarta parte do romance, Cisnes da Aldeia, é a recuperação de um episódio fundamental na vida de Alice. As belas tias, virtuosas e bem comportadas, Elisa e Augusta, não conseguem seduzir o atraente professor Luís, sempre encarceradas nas convenções do socialmente correcto, sem aquela alegria espontânea e pensamento surpreendente de que só Alice é possuidora. E, na velhice, ele torna-se o seu estranho amante. O estranho amável.

Os amantes idosos são alvo dos gracejos dos Anjos da limpeza e do despeito inicial de Lolita.

O sono conciliador de Alice, condicionado pelos ansiolíticos, lança-a, mais uma vez, no mundo, onírico, surrealista, cheio de linguagem codificada, onde tudo é metáfora – ou personificação – de tudo.

Alice reflecte, dando largas ao seu pensamento divergente, carregado de irreverência, sobre os malefícios da História e do culto da Saudade, que obriga um povo a voltar-se para o passado e a estagnar. Como a mulher de Loth, transformada em estátua de sal (lágrimas solidificadas).

As tias de Alice são encantadoras, generosas, fascinantes e atenciosas, mas também orgulhosas, despeitadas e algo vingativas. Também são, por isso, capazes de sentir paixões violentas como se nota pelos “olhares coruscantes” como o brilho dos rubis que usam pendurados ao pescoço. Mas é esta personalidade dual que as transforma em estátuas de sal como a mulher de Loth...

A rebeldia e o pensamento divergente de Alice nunca foram entendidos pelos adultos, obrigando-a a recalcar estes dois traços da sua personalidade-base. A Alice idosa descreve, com impressionante lucidez, a diferença entre a verdadeira e a falsa amabilidade, as fases do amor convencional, previsível e destinado a transformar-se em tédio, a esvaziar-se do seu conteúdo.

A audácia de Alice, enquanto criança, vem novamente ao de cima, na velhice, com a frase: “desejo (...) um amor romano, iniciado na cama, propiciado pelo vinho e pela música, que cresça depois com o namoro e que floresça com a amizade – até ao pó”, frase com a qual desafia a autoridade da directora do hospital. A qual, mais tarde, completa com o repto “é graças aos degenerados que as famílias podem continuar a apostar na ausência de mácula que pensam ter”.

Alice está a lembrar-se concretamente das suas tias, sem mácula que se vingam de terem sido preteridas ao fazerem com que o objecto do seu desejo seja expulso. Contudo, definham após concretizarem a sua própria vingança. No entender de Alice, “elas é que eram o fogo em que se queimaram – tinham, de facto, uma luz própria”

A Autora, embora numa óptica algo pessimista, é compreensiva com os que amam ou melhor, com os amantes. Os quais, como Ícaro, tentam chegar ao Sol (o amor ideal, perfeito, absoluto), mas que acabam por se queimar e sofrer sem alcançarem plenamente o objecto desejado.

Para a uma das personagens que partilham a enfermaria com Alice, o ser perfeito tem um carácter dual, andrógino, como o estranho amável de Alice: “feminino na forma de sentir, masculino na forma de pensar”, um ponto de vista que partilha com a própria Luísa Monteiro (ou vice-versa).

Na quinta parte, A Lebre Cor de Púrpura, temos a oportunidade de esclarecer, reunir e comparar as principais diferenças entre as duas protagonistas femininas Alice e Lolita. Entre ambas, existem afinidades, embora as duas mulheres se exprimam de forma oposta. Lolita é mais carnal, passou a frase do amadurecimento, a fase adulta com a autonomia que Alice nunca obteve. Lolita tem, por isso, uma postura activa durante o episódio em que as duas idosas traquinas resolvem fugir do lar para procurar o namorado de Alice. Esta, pelo contrário é quase sempre passiva, apesar da sua rebelião, insubmissão interior, que vem ao de cima em situações extremas como quando desafia a directora do hospital.

A escapadela de ambas coloca todo o staff do hospital em alvoroço a ponto de o seu regresso ser festejado com um banquete. A língua viperina de Lolita continua a destilar veneno em todos aqueles de quem não gosta como uma das suas ex-alunas, uma socialite que quer exibir o prestígio da ex-professora universitária para se auto-valorizar.

Afinal Lolita é tão vulcânica quanto a Lebre de Março de Carrol...

E a sua língua tão cortante quanto as sentenças da Rainha de Copas...
Da sua boca saem os nonsense típicos do Autor britânico, como autênticas provocações face àqueles que a rodeiam e querem condicionar o seu comportamento. Enquanto que Alice é a mulher do amor perfeito, absoluto, Lolita é a mulher das loucas paixões. ... Lolita foi, também, uma mulher invulgarmente culta, cujo saber despertava a admiração daqueles com quem contactava.

E afinal Luís, o estranho amável, está presente (ou não?), indiferente aos virotes de Lolita ou aos comentários maliciosos dos convivas…É, contudo, difícil imaginar em que plano Luís está, de facto, presente, isto é, se no plano físico se no plano espiritual ou no imaginário de Alice…Afinal, na altura em que Alice está internada, a sua idade será a de, aproximadamente, 102 anos!

Apesar de aparentemente submissa, Alice inspira Lolita (ou Carrol inspira Nabokov). Dentro da sua rebeldia interior, expressa sob a forma de um sentido de humor corrosivo, na esmagadora maioria das vezes desconcertante, o reino ditatorial da Rainha Lolita de Copas, aquele onde o Absurdo ocupa lugar de destaque, é identificado como a “anarquia da mona” (monarquia) que é privilégio das pessoas de idade mais avançada.

No sonho de Alice, repete-se o descarado assédio da Duquesa, tal como na história de Carrol, que a encharca de pimenta e que, na obra de Luísa Monteiro, continua a significar a corrupção da linguagem e das atitudes.

A sexta parte resume exactamente aquilo de trata o romance, um romance cuja estrutura é constituída por um conjunto de Intertextualidades que se desenvolve numa trama inteiramente nova.

Mas neste capítulo as intertextualidades são mais do que muitas multiplicando-se: os descendentes de Alice. Estes tentam intervir para tirá-la do lar e fazer com que ela volta a viver com o marido. Todos eles têm todos os nomes das personagens da série Os Cinco de Enid Blyon. A personalidade de cada um mantém-se, embora amadurecida uma vez que já são todos adultos. Já Ema, a directora do hospital, foi roubada a Flaubert, uma Madame Bovary do final do século XX. Também se encontram referências a Yourcenar.

Durante a fuga, no capítulo anterior, ambas as personagens voltam a encontrar outro estranho amável que julgam poder fornecer-lhes a pista de Luís. Ambas lhe inspiram sentimentos de ternura por lhe recordarem entes queridos.

Já o marido de Alice é visto como um Judas, repugnando a Ema a cor ruiva do seu cabelo, que associa à cólera, sabendo do seu historial com Alice. Alice é como o pequeno pássaro selvagem, que definha se aprisionado. E também as suas asas impelem-na para longe dos aspectos terrenos da vida. Luís é, contudo, a alma que a completa com “um amor desprovido da necessidade da matéria.

O epílogo Pelos Girassóis vem dar o toque final, a cereja no bolo, que estrutura a trama em sete partes, um número mágico para a Autora.

Nesta fase, o alheamento de Alice alastra e a cisão com a realidade é cada vez maior, até ao segundo AVC, após o qual ela mergulha definitivamente num mundo só seu. Onde Alice escreve em cadernos azuis – mais uma vez, a cor da morte - os seus pensamentos aos quais dá o título de As cinzas do Azul ou O outro mundo de Alice.

Um mundo maravilhoso onde correm os amantes em espírito, por entre os girassóis, em perseguição da Lebre de Março…

Mais uma história de extraordinária beleza e ousadia de Luísa Monteiro.

Que nos deixa, mais uma vez, sem palavras…


Cláudia de Sousa Dias

5 Comments:

Blogger Claudia Sousa Dias said...

A Alice atrás do Espelho ainda não consegui encontrar...

:-)

Mas estou a procurar arduamente...

O Humpty-Dumpty vais ficar para um bocadinho nmais tarde...


CSD

1:33 PM  
Blogger Maria do Rosário Sousa Fardilha said...

deixaste-me curiosa. tenho mesmo que ler a Luisa Monteiro e arranjar coragem para ler o original de Lewis Caroll

beijokas, visitante querida
(já te disse que gostei de te ver?)

7:58 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

Que bom !
Eu tb gostei imenso de estar na tua cidade e no teu sótão!

Beijinhos

CSD

4:44 PM  
Blogger Luis Beirão said...

Muito bem, claudia, um ritmo impressionante de leitura, muito util para o pessoal, antes de decidir a compra... Olha, quando tiveres tempo passa em http://pedacosdalma.blogspot.com, a ver o barraco que lá está montado... Abraço

Luis Carvalho

3:32 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

Abraço e beijo para ti, tb Luís!

Vemo-nos provavelmente, na próxima onda poética!

Fica bem!

CSD

5:34 PM  

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