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Saturday, May 30, 2009

“Um Pintor na Corte” de Sonia Overall (Civilização)


Após uma carreira consolidada como crítica e editora, Sonia Overall decide começar, ela própria, a produzir obra literária. Um pintor na Corte é o seu primeiro romance editado em Portugal.

A Autora dedicou grande parte do seu tempo consagrado à produção deste romance, à pesquisa sobre a pintura do período Tudor e, em particular, à vida e obra do mestre Hillyarde, o pintor-mor do período final do reinado de Elizabeth I.

O tema central de Um Pintor na Corte gira à volta da rede de intrigas que se gera dentro e à volta das oficinas de pintura, especializadas em retratos de figuras eminentes da corte. Tratando-se de um regime totalitário, uma vez que a monarquia absolutista da “rainha Virgem” como então lhe chamavam, dava margem para o triunfo dos bajuladores, isto é, daqueles que pintavam os seus clientes, favorecendo-os. Um facto que, logo à partida, coloca Rob em franca desvantagem, uma vez que o extremo realismo com que executa o seu trabalho, através de um estudo minucioso das feições, da cor e das proporções da estatura e do corpo humano, das articulações dos músculos e dos nervos da precisão com que executa cada ruga, cada movimento sugerido pelas sobrancelhas e pela veracidade com que imprime os esgares que conferem o colorido à personalidade de cada um, não agrada, de todo, a quem quer ser adulado.

Os quadros de Rob colocam-no num patamar muito superior em relação aos seus pares. Mas são, também, a sua própria ruína, uma vez que clientes vaidosos e hipócritas não gostam de ver expostos os seus pontos fracos.

Outro aspecto focado pela Autora é a forte concorrência enfrentada pela Guilda dos pintores britânicos face à escola flamenga dos Países-Baixos, que se traduz num acirrado sentimento xenófobo a todas as obras de arte ou artistas vindos “de fora”.

A principal falha na construção do romance é sobretudo ideológica, prendendo-se na persistência de alguns lugares comuns e estereótipos, como por exemplo, a forma como tanto o narrador como as personagens, se referem aos “católicos”, sempre pejorativamente tratados de “papistas” e retratados como pessoas “não confiáveis”. O principal anti-herói, Petty, amigo de Rob, surge no final como uma espécie de Judas do Renascimento agindo com astúcia e velhacaria, ao colocar as convicções políticas e religiosas – de pendor papista, claro – acima das relações de amizade e da ética, deixando-se levar por rancores mesquinhos.

Por outro lado, a questão emocional é desenvolvida a par da carreira de Rob através de uma estranha parceria com Kat, uma popular cortesã, cuja beleza consegue angariar ao pintor vários clientes importantes, colocando-o quase que numa posição de proxeneta.
Rob é um jovem belo e sensível, mas paradoxalmente frio e puritano, que se mantém, apesar de uma paixão platónica por Kat, fiel a um amor do passado – embora a muito custo –, fruto de uma promessa resultante da trágica morte da noiva, cujo acidente na carruagem, a caminho da Igreja, lhe expõe o interior do corpo: a carne dilacerada, as vísceras, o rosto exangue em contraste com o tom violáceo dos lábios. Uma imagem cujo impacto lhe fica gravado na memória de forma indelével e que acaba por servir de inspiração para o próprio trabalho, estimulando-o a representar os seus quadros com o maior realismo e fidelidade possíveis, tanto no que respeita às cores como às formas, passando a dedicar-se ao estudo anatómico dos corpos.
Por outro lado, a frustração de Kat impele-a a tentar encontrar um sucedâneo do acto sexual que não consegue consumar com Rob e, simultaneamente a procurar compensar o desejo com os inúmeros amantes que lhes proporcionam, também, o padrão de vida que ambos desejam…Mas Kat acabará por pagar um preço elevado por ser a musa de um pintor excêntrico como Dudley…

A maior qualidade na escrita de Sonia Overall reside nas fabulosas descrições onde o realismo impresso na escrita só se pode comparar à pintura executada pelo seu personagem.

Se não, veja-se as descrições que se seguem:

«Os olhos do homem, pequenos e de expressão porcina, expressavam malevolência e ossos fracturados» (pp. 51).

E sobre a Rainha, aos 50 anos:

«Ela era magnificente: aterradora, de faces magras e absurdamente pintadas. Maravilhosa, apesar de estar a aproximar-se da fase da Lua Nova da sua vida, tendo deixado a juventude para trás (…). A estrutura óssea da sua testa e nariz era saliente, de expressão fria, como mármore italiano desgastado pelo tempo e bem polido. Os seus olhos reflectiam argúcia e secura, eram escuros e perscrutantes (…). Conseguia ver as linhas com tanta clareza, cada aplicação da pintura que ela tinha na face, todas as partículas de pó branco, que tive a sensação de ser uma mosca que zunia e brilhava ao lado dela. Copiei todos os ângulos das suas bochechas onde, em tempos idos, tinham existido curvas suaves: passei a papel todas as concavidades que eram fruto do envelhecimento e rugas de preocupação. As linhas do nariz dela revelavam orgulho e vaidade, o queixo falava das suas obrigações e os olhos encovados davam-nos a saber das desilusões dos tempos em que era donzela. A fronte, que continuava macia, era régia (…) era aí que o peso das coroas fora sustentado. Desenhei tudo o que aí via: avareza e temor, azedume e contentamento, os desejos de uma mulher e os anseios pelos prazeres simples».

É óbvio que quem pinta assim fará mais inimigos do que aliados ao longo da careira, sobretudo num regime totalitário.
E quem escreve como Overall acabará por ser inevitavelmente um mestre após dedicar-se a tempo inteiro a uma actividade tão absorvente como a escrita.

Cláudia de Sousa Dias

8 Comments:

Blogger Maria said...

Fiquei curiosa.

[há séculos que não passava por aqui... sou uma devoradora de livros, ainda esta tarde estive a ler The Spy Who Loved Me, Ian Fleming]


boa semana

11:25 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

A..Maria!

quer saudades.


passo no teu blog ainda shoje.


beijinhos


csd

10:34 AM  
Blogger Unknown said...

Claudinha

Tanto que por esta blogosfera enleada tenho serpenteado e ainda não te tinha visitado. E, nos intervalos, lendo tudo - e escrevendo. No ano passado, a caminho dos 67, dei-me ao lixo, com u, de me tornar... escritor.

Raposa velha do jornalismo a sério, para o que me havia de dar? Bom, o Camilleri também foi tardio - e é oké.

O livreco chama-se «Morte na Picada» e é de contos da guerra colonial em Angola 66/68 em que, infelizmente, participei como oficial miliciano...

Sil us plau (sff em puríssimo català...) podes crer que sou, como sempre fui, brincalhão e gozador, como dizem os brasucas.

Um pedido - não são €€€€ cada vez mais raros e... caros: vai até ao meu covil para ver okaxas. E, óspois, diz quid juris, tá?

Qjs = queijinhos = beijinhos

10:55 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

fiquei curiosa a respeito dos queijos.


:-)



nisso partilho o gosto do Miguel.

csd

PS: tenciono um dia apreder catalá...




csd

10:48 PM  
Blogger inominável said...

só passei para dizer que me infelicito de não passar cá sempre... Fiquei curiosa com o novo do Carlus Fuentes e o romance homosexual no Reich... Mandei vir... nem tempo para calcorrear as livrarias...

4:37 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

:-))
eu tb queria ir hoje à feira do livro

procurar alguns par ao cineliterário, mas se calhar vai ser só amanhã...



csd

11:50 AM  
Blogger Toutinegra Futurista said...

Excelente crítica!

12:02 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

obrigada Toutinegra!

mais tarde passo no teu ninho de palavras

;-)


csd

9:30 PM  

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