“Um Estranho em Goa” de José Eduardo Agualusa (Biblioteca Independente)
Esta é uma obra de carácter algo híbrido, entre o conto e o romance de viagens. Ao mesmo tempo, Um Estranho em Goa reporta a acontecimentos históricos que envolvem três continentes: a Índia, mais especificamente a cidade de Goa, o Brasil da selva amazónica, onde se refugia uma curiosa personagem que dá pelo nome de Afonso Plácido Domingo, e Angola, no período de turbulência que se segue ao processo de descolonização, onde a cultura e a língua portuguesa servem de fio condutor, ligando três civilizações aparentemente tão díspares.
Clara Ferreira Alves comentava no semanário “Expresso” que «Um estranho em Goa é uma pequena maravilha (…)
Mistura a literatura de viagens com uma aventura exótica, uma espécie de mistério que o Autor não deslinda mas que lhe serve de ponto de apoio para mover personagens que enlaçam a Índia e a África com Portugal e o Brasil (…) estabelecem uma pátria espiritual onde todos nós, portugueses na língua, nos reconhecemos.»
Da mesma forma, são exploradas, relativamente ao cenário de Goa, as consequências para a população local da presença portuguesa, onde se discute o processo de descolonização e a substituição da hegemonia lusa pela presença britânica na Índia, a imposição do inglês como uma das línguas oficiais; a imigração em massa dos hindus vindos de outras cidades do continente; a composição da população e respectivas características demográficas; os conflitos entre etnias com base religiosa. Tudo isto vem à baila em conversas de café, numa esplanada debaixo do canto das cigarras, e dos perfumes frutados de árvores exóticas ou dentro de um táxi com um divertido e pitoresco motorista, cuja leveza típica característica das conversas ocasionais, sem pedantismos académicos, mas que consegue dar ao leitor uma visão documental dos factos históricos dos últimos sessenta anos.
Sobre África e, particularmente, sobre a situação de Angola, a ligação intercontinental surge através da personagem Plácido Domingo (ex-militar e agente secreto) cujo percurso se espalha pelos três continentes anteriormente referidos. Após a independência de Angola e finda a guerra colonial a que se seguiu uma guerra civil, Afonso Plácido Domingo refugia-se no Brasil, no mais recôndito lugar da Amazónia, imiscuindo-se nas tribos locais, o que proporciona ao leitor um delicioso episódio com algumas reminiscências de O Velho que lia Romances de Amor de Luís Sepúlveda, devido à imersão nos luxuriantes sons da selva, à proximidade e relação amistosa, quase que de identificação, com as tribos locais completamente inseridas e integradas no ecossistema.
O reencontro do narrador com a personagem dá-se em Goa, alguns anos mais tarde, onde este volta a entrar em cena, mas completamente transfigurado. Plácido Domingo é o “isco” que serve de móbil à estória do narrador, que é também personagem. José, o alter-ego do Autor, é um repórter que interessado no percurso e no desvendar do passado nebuloso de Plácido Domingo, ao mesmo tempo que procura uma personagem para a estória que pretende escrever, acumulando as funções de jornalista e escritor.
O autor atribui-lhe o nome do tenor espanhol, mundialmente conhecido, embora seja na realidade a abreviatura de um nome tipicamente português.
Em Goa, sobressai a paisagem exótica e sedutora da cidade, onde o calor opressivo é exaltado pelo canto estridente das cigarras e a confusão urbana, a que se junta o áspero grasnar das gralhas nas copas das árvores cujos ramos se debruçam nas mesas das esplanadas, a humidade omnipresente e os cheiros da região, assim como a sujidade das ruas e uma profusão de idiomas que sugerem estarmos diante dum cenário de uma sedutora Babel, ressurgida das ruínas.
No Brasil, a paisagem amazónica, junto ao curso do Paraguaí, um dos muitos afluentes do Grande Rio, junto à fronteira com a Bolívia, confere à estória uma oscilação rítmica que lhe dá o dinamismo necessário à alternância entre momentos de pausa, como observamos em Goa, e momentos de acção.
A referência a Angola surge como pretexto para a explicar o passado de Domingo e as suas intrincadas movimentações políticas que envolvem os últimos anos do domínio português no território.
De volta a Goa, o narrador que acumula também, a função de jornalista/cronista encontra uma série de figuras pitorescas que se congregam à volta do protagonista que adicionam, cada qual, o seu condimento específico à narrativa. Por exemplo, Salazar, o motorista de táxi, que afirma que “o outro (o homónimo) foi um grande português”.
O discurso do narrador adquire, neste ponto a tonalidade da voz de um turista deslumbrado, diante de um mundo estranho e maravilhoso, ou de um antropólogo que vai tirando notas no seu diário acerca dos usos e costumes da região, nele incluindo referências às gentes, aos hábitos, ao vestuário, fauna e flora locais, com o mesmo espanto e admiração dos antigos exploradores a bordo das caravelas da frota de Vasco da Gama. Sobressai o aspecto patético das mulheres ocidentais que, debalde, tentam imitar as beldades do Levante. Como Lili, cuja beleza ruiva parece algo deslocada, vestida com um sari, no meio de um grupo de mulheres executivas indianas, vestidas, por sua vez, com o clássico tailleur ocidental. Ou a estranheza da americana Lailah, com a língua fendida, a lembrar uma víbora, partidária de um estranho culto a Seth, cujos rituais adquirem contornos sinistros. Lili é fascinada por manuscritos antigos, o que acaba por facilitar a atracção que José acaba por sentir por ela. No entanto, este acaba por se afastar mediante a estranheza de algumas atitudes da jovem. Aliás, ambas Lili e Lailah têm nomes que derivam de Lilith, a mulher demónio, amante do Príncipe das Trevas…Outra intrigante personagem é Pedro Dionísio, proprietário do Grande Hotel do Oriente, o qual entabula amizade com José, e que parece ter ligações com uma estranho mercado paralelo de comércio de relíquias.
Enoque, o livreiro, torna-se um aliado importante do cronista ao proporcionar-lhe o acesso à internet, extremamente difícil naquelas paragens, num cybercafé improvisado, precariamente instalado num sótão poeirento do prédio da livraria. Tal como Elias, o angolano que vive em casa de Enoque e que acabamos por descobrir não ser outro senão o fugidio Plácido Domingo.
Os diálogos com este núcleo de personagens são particularmente aliciantes, sobretudo aqueles que respeitam ao binómio natureza x cultura onde se disserta a necessidade de entender a razão das tradições, dos saberes e cultura ancestrais que os governos centralizados e burocráticos, como é o caso da federação dos Estados Indianos, tendem a desprezar com graves prejuízos para o ecossistema. É salientado o papel da cultura ancestral indiana preservava a natureza como um santuário a venerar, impedindo o homem de violar, por exemplo, o território reservado à floresta e aos seus habitantes, por estar “consagrado aos deuses”.
Nestes diálogos, está claramente implícita a crítica à política implementada pelas potências colonizadoras do Ocidente, sobretudo a Inglaterra do período vitoriano cujos governadores olhavam arrogantemente as tradições locais como “superstições irracionais”. Curiosamente, através dos mesmos diálogos, ficamos a saber com o são também vistos os portugueses pela então potência rival, ou seja, o português era então visto pelos ingleses do século XIX como um país onde os homens gostam de espancar mulheres para se divertirem. De facto parece que alguns autores britânicos da época tendem a identificar a violência doméstica como traço cultural característico do homo lusitanus.
Muitos destes diálogos, travados à mesa do café, ao som do coro estridente das cigarras, são sobre livros, de preferência sobre livros antigos ou autores já centenários, a sugerir horas e horas de investigação para produzir uma obra com este nível de qualidade: crónicas, obras de historiografia, geografia e cartografia, o que permite ao leitor de Um estranho em Goa colocar-se por detrás do olhar do forasteiro ao longo dos séculos, isto é, a partir de uma perspectiva longitudinal ao longo do curso do Rio do Tempo, e avaliar a cultura milenar desta cidade fazendo, simultaneamente, o cruzamento da cultura hindú com a muçulmana, do extremo oriente e europeia, que acabam todas por convergir naquela cidade multicultural.
O romance é outra das características que seduzem, na intriga de Um Estranho em Goa .
José sente-se, em primeiro lugar, atraído por Lili, a estudiosa de manuscritos antigos com a qual se estabelece, a partir deste veículo – os livros –, uma forte afinidade entre ambos. Para além do fogo que incendeia a deslumbrante cabeleira de Lili, a qual contrasta com uma pele quase transparente. E de aspecto quase transilvânico. Mas há algo de sinistro na aparência de Lili, associado a um conjunto de indícios que o autor vai deixando escapar, apesar de desviar a atenção do leitor menos atento para outros alvos mais óbvios. Como Lailah, por exemplo. Assim como, também, os sinais no peito da jovem, que reproduzem a Constelação de Draco – o dragão – outrora designada como a morada de Seth. Também a tez de Lili tem o mesmo “brilho incandescente à semelhança de um lampião nazi – imagem inspirada num verso de Sylvia Plath, My skyn brigth as a nazi lampshade. Esta constelação seria, para os antigos hindús, a porta para o inferno, guardada por uma serpente.
A figura da serpente tem sempre uma significação ambígua, à qual se associa tanto o veneno que causa a morte, como o ponto de partida para a cura, através do antídoto que permite conservar a vida. Mas a referência a Seth é inequívoca, uma vez que é o equivalente na mitologia dos antigos egípcios, a Satanás, na cultura judaico-cristã. Ao culto de Seth, aparecem também, ligados Lailah e o companheiro, um irlandês que entre o reduzidíssimo leque de palavras que conhece do idioma português se destaca o vocábulo “caralho”.
No meio de um diálogo onde afloram estes temas, surge a explicação do significado da suástica, cuja intencionalidade depende da orientação dos braços, deixando no ar a sugestão de que o símbolo do III Reich teria a orientação negativa, subordinada às forças da destruição. A toda esta conotação mística, estão ligados alguns detalhes subtilíssimos relacionados com a enigmática Lili…
Também Lailah, a outra Lilith, exerce um magnetismo sexual muito forte, centrado no corpo, perfeitamente delineado, como se faz no notar no encontro, aparentemente casual com José, na praia. Para o jornalista, Lailah é alguém sem referências positivas, o que faz dela “uma jovem americana de classe média, tão aterrorizada pela perspectiva de se encontrar sozinha no universo, que estava disposta a acreditar em qualquer coisa, no diabo, nas fadas, em extraterrestres”.
Para o narrador José, o amor chega, no entanto, pela mão de uma jovem de irresistível negritude no olhar, que lhe traz à lembrança os versos de Camões e o olhar manso de uma cativa…que cativa.
A estória começa e termina em Plácido Domingo, num irresistível jogo de palavras, na esplanada do café, ao som do coro polifónico das cigarras. O tema central nunca deixa de ser a presença da língua e da cultura portuguesa - comum a todas as mudanças físicas de cenário – que se desdobra na evolução política da situação de Angola, comparada com a do Zaire, na forma de colonização portuguesa e britânica, na grotesca acção da PIDE, na repressão dos movimentos pró-independentistas de Goa.
Um Estranho em Goa, é uma obra cujo sincretismo de elementos culturais, invulgar poder de síntese e simplicidade na linguagem a tornam extremamente apetecível, tanto para o público jovem como para o público mais erudito.
E onde a sedução, a atracção pela descoberta e o deslumbramento pelo desconhecido se tornam as grandes mais-valias deste autor angolano.
Cláudia de Sousa Dias
Clara Ferreira Alves comentava no semanário “Expresso” que «Um estranho em Goa é uma pequena maravilha (…)
Mistura a literatura de viagens com uma aventura exótica, uma espécie de mistério que o Autor não deslinda mas que lhe serve de ponto de apoio para mover personagens que enlaçam a Índia e a África com Portugal e o Brasil (…) estabelecem uma pátria espiritual onde todos nós, portugueses na língua, nos reconhecemos.»
Da mesma forma, são exploradas, relativamente ao cenário de Goa, as consequências para a população local da presença portuguesa, onde se discute o processo de descolonização e a substituição da hegemonia lusa pela presença britânica na Índia, a imposição do inglês como uma das línguas oficiais; a imigração em massa dos hindus vindos de outras cidades do continente; a composição da população e respectivas características demográficas; os conflitos entre etnias com base religiosa. Tudo isto vem à baila em conversas de café, numa esplanada debaixo do canto das cigarras, e dos perfumes frutados de árvores exóticas ou dentro de um táxi com um divertido e pitoresco motorista, cuja leveza típica característica das conversas ocasionais, sem pedantismos académicos, mas que consegue dar ao leitor uma visão documental dos factos históricos dos últimos sessenta anos.
Sobre África e, particularmente, sobre a situação de Angola, a ligação intercontinental surge através da personagem Plácido Domingo (ex-militar e agente secreto) cujo percurso se espalha pelos três continentes anteriormente referidos. Após a independência de Angola e finda a guerra colonial a que se seguiu uma guerra civil, Afonso Plácido Domingo refugia-se no Brasil, no mais recôndito lugar da Amazónia, imiscuindo-se nas tribos locais, o que proporciona ao leitor um delicioso episódio com algumas reminiscências de O Velho que lia Romances de Amor de Luís Sepúlveda, devido à imersão nos luxuriantes sons da selva, à proximidade e relação amistosa, quase que de identificação, com as tribos locais completamente inseridas e integradas no ecossistema.
O reencontro do narrador com a personagem dá-se em Goa, alguns anos mais tarde, onde este volta a entrar em cena, mas completamente transfigurado. Plácido Domingo é o “isco” que serve de móbil à estória do narrador, que é também personagem. José, o alter-ego do Autor, é um repórter que interessado no percurso e no desvendar do passado nebuloso de Plácido Domingo, ao mesmo tempo que procura uma personagem para a estória que pretende escrever, acumulando as funções de jornalista e escritor.
O autor atribui-lhe o nome do tenor espanhol, mundialmente conhecido, embora seja na realidade a abreviatura de um nome tipicamente português.
Em Goa, sobressai a paisagem exótica e sedutora da cidade, onde o calor opressivo é exaltado pelo canto estridente das cigarras e a confusão urbana, a que se junta o áspero grasnar das gralhas nas copas das árvores cujos ramos se debruçam nas mesas das esplanadas, a humidade omnipresente e os cheiros da região, assim como a sujidade das ruas e uma profusão de idiomas que sugerem estarmos diante dum cenário de uma sedutora Babel, ressurgida das ruínas.
No Brasil, a paisagem amazónica, junto ao curso do Paraguaí, um dos muitos afluentes do Grande Rio, junto à fronteira com a Bolívia, confere à estória uma oscilação rítmica que lhe dá o dinamismo necessário à alternância entre momentos de pausa, como observamos em Goa, e momentos de acção.
A referência a Angola surge como pretexto para a explicar o passado de Domingo e as suas intrincadas movimentações políticas que envolvem os últimos anos do domínio português no território.
De volta a Goa, o narrador que acumula também, a função de jornalista/cronista encontra uma série de figuras pitorescas que se congregam à volta do protagonista que adicionam, cada qual, o seu condimento específico à narrativa. Por exemplo, Salazar, o motorista de táxi, que afirma que “o outro (o homónimo) foi um grande português”.
O discurso do narrador adquire, neste ponto a tonalidade da voz de um turista deslumbrado, diante de um mundo estranho e maravilhoso, ou de um antropólogo que vai tirando notas no seu diário acerca dos usos e costumes da região, nele incluindo referências às gentes, aos hábitos, ao vestuário, fauna e flora locais, com o mesmo espanto e admiração dos antigos exploradores a bordo das caravelas da frota de Vasco da Gama. Sobressai o aspecto patético das mulheres ocidentais que, debalde, tentam imitar as beldades do Levante. Como Lili, cuja beleza ruiva parece algo deslocada, vestida com um sari, no meio de um grupo de mulheres executivas indianas, vestidas, por sua vez, com o clássico tailleur ocidental. Ou a estranheza da americana Lailah, com a língua fendida, a lembrar uma víbora, partidária de um estranho culto a Seth, cujos rituais adquirem contornos sinistros. Lili é fascinada por manuscritos antigos, o que acaba por facilitar a atracção que José acaba por sentir por ela. No entanto, este acaba por se afastar mediante a estranheza de algumas atitudes da jovem. Aliás, ambas Lili e Lailah têm nomes que derivam de Lilith, a mulher demónio, amante do Príncipe das Trevas…Outra intrigante personagem é Pedro Dionísio, proprietário do Grande Hotel do Oriente, o qual entabula amizade com José, e que parece ter ligações com uma estranho mercado paralelo de comércio de relíquias.
Enoque, o livreiro, torna-se um aliado importante do cronista ao proporcionar-lhe o acesso à internet, extremamente difícil naquelas paragens, num cybercafé improvisado, precariamente instalado num sótão poeirento do prédio da livraria. Tal como Elias, o angolano que vive em casa de Enoque e que acabamos por descobrir não ser outro senão o fugidio Plácido Domingo.
Os diálogos com este núcleo de personagens são particularmente aliciantes, sobretudo aqueles que respeitam ao binómio natureza x cultura onde se disserta a necessidade de entender a razão das tradições, dos saberes e cultura ancestrais que os governos centralizados e burocráticos, como é o caso da federação dos Estados Indianos, tendem a desprezar com graves prejuízos para o ecossistema. É salientado o papel da cultura ancestral indiana preservava a natureza como um santuário a venerar, impedindo o homem de violar, por exemplo, o território reservado à floresta e aos seus habitantes, por estar “consagrado aos deuses”.
Nestes diálogos, está claramente implícita a crítica à política implementada pelas potências colonizadoras do Ocidente, sobretudo a Inglaterra do período vitoriano cujos governadores olhavam arrogantemente as tradições locais como “superstições irracionais”. Curiosamente, através dos mesmos diálogos, ficamos a saber com o são também vistos os portugueses pela então potência rival, ou seja, o português era então visto pelos ingleses do século XIX como um país onde os homens gostam de espancar mulheres para se divertirem. De facto parece que alguns autores britânicos da época tendem a identificar a violência doméstica como traço cultural característico do homo lusitanus.
Muitos destes diálogos, travados à mesa do café, ao som do coro estridente das cigarras, são sobre livros, de preferência sobre livros antigos ou autores já centenários, a sugerir horas e horas de investigação para produzir uma obra com este nível de qualidade: crónicas, obras de historiografia, geografia e cartografia, o que permite ao leitor de Um estranho em Goa colocar-se por detrás do olhar do forasteiro ao longo dos séculos, isto é, a partir de uma perspectiva longitudinal ao longo do curso do Rio do Tempo, e avaliar a cultura milenar desta cidade fazendo, simultaneamente, o cruzamento da cultura hindú com a muçulmana, do extremo oriente e europeia, que acabam todas por convergir naquela cidade multicultural.
O romance é outra das características que seduzem, na intriga de Um Estranho em Goa .
José sente-se, em primeiro lugar, atraído por Lili, a estudiosa de manuscritos antigos com a qual se estabelece, a partir deste veículo – os livros –, uma forte afinidade entre ambos. Para além do fogo que incendeia a deslumbrante cabeleira de Lili, a qual contrasta com uma pele quase transparente. E de aspecto quase transilvânico. Mas há algo de sinistro na aparência de Lili, associado a um conjunto de indícios que o autor vai deixando escapar, apesar de desviar a atenção do leitor menos atento para outros alvos mais óbvios. Como Lailah, por exemplo. Assim como, também, os sinais no peito da jovem, que reproduzem a Constelação de Draco – o dragão – outrora designada como a morada de Seth. Também a tez de Lili tem o mesmo “brilho incandescente à semelhança de um lampião nazi – imagem inspirada num verso de Sylvia Plath, My skyn brigth as a nazi lampshade. Esta constelação seria, para os antigos hindús, a porta para o inferno, guardada por uma serpente.
A figura da serpente tem sempre uma significação ambígua, à qual se associa tanto o veneno que causa a morte, como o ponto de partida para a cura, através do antídoto que permite conservar a vida. Mas a referência a Seth é inequívoca, uma vez que é o equivalente na mitologia dos antigos egípcios, a Satanás, na cultura judaico-cristã. Ao culto de Seth, aparecem também, ligados Lailah e o companheiro, um irlandês que entre o reduzidíssimo leque de palavras que conhece do idioma português se destaca o vocábulo “caralho”.
No meio de um diálogo onde afloram estes temas, surge a explicação do significado da suástica, cuja intencionalidade depende da orientação dos braços, deixando no ar a sugestão de que o símbolo do III Reich teria a orientação negativa, subordinada às forças da destruição. A toda esta conotação mística, estão ligados alguns detalhes subtilíssimos relacionados com a enigmática Lili…
Também Lailah, a outra Lilith, exerce um magnetismo sexual muito forte, centrado no corpo, perfeitamente delineado, como se faz no notar no encontro, aparentemente casual com José, na praia. Para o jornalista, Lailah é alguém sem referências positivas, o que faz dela “uma jovem americana de classe média, tão aterrorizada pela perspectiva de se encontrar sozinha no universo, que estava disposta a acreditar em qualquer coisa, no diabo, nas fadas, em extraterrestres”.
Para o narrador José, o amor chega, no entanto, pela mão de uma jovem de irresistível negritude no olhar, que lhe traz à lembrança os versos de Camões e o olhar manso de uma cativa…que cativa.
A estória começa e termina em Plácido Domingo, num irresistível jogo de palavras, na esplanada do café, ao som do coro polifónico das cigarras. O tema central nunca deixa de ser a presença da língua e da cultura portuguesa - comum a todas as mudanças físicas de cenário – que se desdobra na evolução política da situação de Angola, comparada com a do Zaire, na forma de colonização portuguesa e britânica, na grotesca acção da PIDE, na repressão dos movimentos pró-independentistas de Goa.
Um Estranho em Goa, é uma obra cujo sincretismo de elementos culturais, invulgar poder de síntese e simplicidade na linguagem a tornam extremamente apetecível, tanto para o público jovem como para o público mais erudito.
E onde a sedução, a atracção pela descoberta e o deslumbramento pelo desconhecido se tornam as grandes mais-valias deste autor angolano.
Cláudia de Sousa Dias
17 Comments:
Tão bom, tão bom, tão bom...
Amei, Amei, Amei, Amei...
Gosto tanto de te ler e ficar assim, com vontade de correr para a livraria mais próxima!
beijo-te,
princesa dos livros :)
e quase vou à falência com o dinheiro que gasto com eles...
csd
Gostei bastante também. Acho o Agualusa um escritor algo irregular na forma como interage comigo pelos textos. Nem sei bem explicar isto mas estas coisas não se explicam sempre. Gosto deste estranho "Um Estranho em Goa"
Abraço
Quando estive em Goa, lembro-me de me ter cruzado com... não posso dizer mas... Vivi três meses em Goa e foram...estranhos...
Bjs
passei por aqui e gostei.
Anad
é a primeira vez que leio um livro de Agualusa, Bau...por isso ainda não posso comparar...mas fá-lo-ei em breve!
csd
que bom ter a opinião de um agente secreto, Toutinegra!
csd
anad, obrigada por teres passado por cá!
um beijinho
csd
Olá Claúdia,
Mais uma vez gostei de ler um livro através das tuas palavras.
Obrigado pelo prazer que me dás em te ler.
E como não tenho livros deste autor, vou à procura na Fnac.
Beijos
é muito bom Nandokas...foi uma excelente estreia, porque antes também não tinha lido nada dele...
csd
Adorei sua resenha, ficou ótima, me ajudou muito em um trabalho da faculdade que meu grupo está fazendo sobre Literatura Africana e escolhemos esse livro para falar do autor. Parabéns
Patrick
Obrigada pela visita a este meu post. O livro é delicioso. Fico contente por ter ajudado.
As maiores felicidades.
csd
Nenhum destes admiradores neste blogue faz qualquer comparação com Nocturno Indiano! Ficariam a ver menos originalidade de Agualusa.
a seu tempo meu caro.
Descobri tabucchi cerca de dois anos depois de ter lido este livro, é verdade.
Já li e redigi o comentário. É um dos textos que tenho em carteira (no total, 15) e será publicado a seu tempo.
Essa era aliás uma das obras que eu pretendia incluir num projecto que vim a desenvolver ao longo dos últimos cinco anos e que foi suspenso em 2012 por falta de verba.
csd
Cara Cláudia,deparei com o seu Blog onde,deliciosamente,me detive. Naturalmente,e à partida pelo título... dado que partilho, igualmente , a paixão dos livros.De um modo especial, os géneros literários romance e poesia.
Numa próxima Roda de Leitura, no âmbito de um grupo local que costumo frequentar, vamos falar de "Um estranho em Goa". Gostei muito de a ler nos seus comentários, destacando os elementos culturais inerentes à obra de José Eduardo Agualusa.
Bem haja!
Boa tarde Cláudia, acabei de ler a sua descrição de "Um Estranho em Goa" e dou-lhe os meus parabéns.
Alessandro
obrigada, Alessandro.
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