“As Mãos Desaparecidas” de Robert Wilson (Dom Quixote)
O romance de que hoje tratamos faz parte de uma série cujo primeiro volume, intitulado de O Cego de Sevilha, consiste no arranque de uma longa e minuciosa investigação criminal protagonizada pelo inspector Javier Fálcón, uma personagem inspirada na figura do polémico juiz e criminólogo Baltazar Garzón, responsável pelo julgamento mediático que envolvia o antigo ditador chileno Augusto Pinochet.
As Mãos desaparecidas é uma trama composta pela investigação policial de uma série de estranhos suicídios, ocorridos num bairro luxuoso da cidade de Sevilha, debaixo de um calor tórrido, em plena canícula. As personagens tentam manter uma imagem impoluta da mesma forma que se esforçam por conservar as temperaturas das respectivas casas refrigeradas e, assim, evitar a transpiração e o desagradável odor a suor uma particularidade da fisiologia excretória socialmente mal-vista tal como toda as excreções corporais. Mas o frio não serve apenas para evitar a transpiração. É também utilizado como camuflagem de personalidade e, em certos casos, serve para ocultar uma identidade.
A investigação de Javier e da sua equipa ameaça derreter a máscara de prestígio social que acompanha as vidas de alguns habitantes daquele bairro, muitos deles, habituados a figurar nas revistas ditas cor-de-rosa.
A imagem de sofisticação, glamour, estilo e opulência exibida pelos habitantes daquele lugar é cuidadosamente preservada, em casas onde as temperaturas são conservadas artificialmente frescas à custa do sistema de refrigeração que conserva a carne dos que lá habitam com uma aparência imaculada, isto é, sem exibir o odor a putrefacção dos respectivos corpos e almas.
A investigação levada a cabo pela equipa de Javier Falcón acaba por revelar que todos suicídios ocorridos em circunstâncias suspeitas, estão, de alguma forma, interligados. Inclusive aquelas que foram sendo convenientemente eliminadas no romance anterior: quanto mais Javier avança na sua investigação, mais convencido fica de que as mortes recentes não se tratam na realidade de suicídios, como poderia perecer à primeira vista, mas assassínios.
Falcón conta, para além dos seus colegas de departamento, com a ajuda de duas aliadas femininas: Consuelo, viúva de Rafael Jiménez – uma das figuras centrais de O Cego de Sevilha – e Madeleine Krüegger, a misteriosa beldade americana, de aspecto levemente vampírico, devido ao seu ofuscante cabelo vermelho. Medeleine perece estar, de uma forma ou de outra, ligada a estes estranhos suicídios. Trata-se de uma jovem detentora de um invulgar magnetismo sexual e poder de sedução. A sua beleza atrai as pessoas como um íman, conjugando o seu talento de fotógrafa e uma cultura bastante acima da média. Madeleine gosta de fotografar atitudes e não propriamente rostos ou corpos, captando por vezes de forma algo embaraçosa – e perigosa – aquilo que as pessoas não dizem, isto é, as emoções que normalmente tentam esconder ou não querem exibir em público. Um talento indiscreto, que se revelará fundamental para a descodificação desta complicada intriga policial.
O estoicismo idealista de Falcón obriga-o, muitas vezes, a trabalhar de forma inconvencional, marginal até, de acordo com a sua personalidade reservada e introspectiva. Depara-se, por vezes, com os entraves interpostos pelo Juez Calderón seu oponente e rival, cuja ambição supera, por vezes, a ética e o brio profissional. O investigador Falcón conserva, ainda, algum ressentimento pessoal pelo facto de a sua ex-mulher ter casado com o colega e superior hierárquico. O Juez está noivo de Inés, cujo divórcio provocou em Falcón uma prolongada depressão no volume anterior da série, e que o afectava na recta final do mesmo romance dificultando as relações profissionais com o juiz no presente.
Apesar de algumas semelhanças com a série CSI, As Mãos Desaparecidas é um romance de elevado teor realista, a reflectir a dificuldade em articular o trabalho entre os vários departamentos da mesma Instituição, entre as várias instituições e, por vezes, mesmo entre colegas de profissão, sobretudo quando a corrupção está, ela própria, já infiltrada no seio da própria instituição.
Neste volume, são abordadas algumas questões delicadas como a imigração do Leste Europeu para os países Ibéricos, a exploração no trabalho e os novos modelos de escravatura, a qual se desdobra não só na prostituição, mas também no trabalho ilegal em condições abaixo do limiar da dignidade humana e na pedofilia ou tráfico de menores, fazendo a ponte com as personagens que já figuravam em O Cego de Sevilha .
As Mãos Desaparecidas traz já algum desenvolvimento relativo a algumas questões que ficaram “no ar” no último romance onde a questão central ficou apenas resolvida “pela rama”.
Consuelo Jiménez é uma lufada de ar fresco neste romance ao contrário do anterior onde parecia assumir mais a postura de matadora. Neste volume a atitude predominante face a Falcón é a de uma aliada quando no anterior era uma das suspeitas do assassínio do marido. Consuelo dá, no presente romance, um novo colorido à vida pessoal do investigador Falcón. Uma vida que antes parecia não existir. Consuelo atenua o humor algo cinzento de Falcón, mais próximo do temperamento de um britânico do que a um sevilhano. Ao cinzento da vida pessoal Inspector junta-se ainda uma casa imensa, semelhante a um museu, e a assepsia de laboratório vivida no local de trabalho com os colegas, com os quais mantém, apesar de tudo, uma estreita relação de cumplicidade. Uma cumplicidade que, no entanto, não se estende à vida pessoal, dada a extrema reserva de Falcón.
Em As Mãos Desaparecidas, Consuelo faz antes sobressair a faceta de viúva solitária, jovem e desejável, que tenta conciliar o papel de mãe de família, mulher independente e sem preocupações económicas, com a possibilidade de viver um relacionamento íntimo sem assumir um vínculo muito forte.
Falcón, por sua vez, apesar de continuar a ser um homem algo solitário, assume uma faceta mais humana do que no volume anterior deixando-nos espreitar um pouco a sua intimidade. Também a posição de Falcón relativa a Madeleine Krüegger e a aproximação face ao campo magnético da sua perturbadora e algo predatória sensualidade dá ao romance a tensão necessária ao acelerar da leitura: Madeleine faz lembrar a típica vamp dos anos 30/40 na época dourada dos gansters de Nova Iorque ou Chicago.
A trama do romance desdobra-se, ainda, na ligação dos crimes ocorridos na Sevilha contemporânea que se liga à introdução das Máfias no Leste na Península Ibérica, cujas raízes se estendem até Portugal e às investigações do FBI relacionadas com o 11 de Setembro de 1973 no Chile, altura do golpe de estado de Pinochet, após o assassínio de Salvador Allende, uma nítida inspiração do Autor no carismático juiz Baltasar Garzón.
A estrutura do romance permite uma noção mais ou menos aproximada do tempo real em que se desenvolvem as investigações e de como estas se prolongam no tempo durante anos a fio, cheias de avanços e recuos, na exploração dos vários temas da actualidade sem cair no sensacionalismo ou na vulgaridade.
A escrita de Robert Wilson é, também, dotada de um sentido estético que se pauta pelo equilíbrio e sobriedade transpostos para uma escrita que obriga a uma leitura concentrada, mas de ritmo constante, com poucas interrupções.
Trata-se de um romance de ficção policial de invulgar nível de excelência pela criação do contraponto entre a exibição de um paraíso artificial onde, à superfície, dominam o luxo e a beleza mas debaixo do qual se movimentam as forças tectónicas dos dejectos da alma humana, à semelhança do que acontece na casa de Ortega, o lugar onde Falcón começa por encontrar o fio condutor que o leva ao esclarecimento de grande parte das questões que parecem carecer de sentido.
As facetas mais obscuras e fétidas da personalidade humana acabam por explodir e revelar uma realidade muito mais apodrecida do que os dejectos que afloram à superfície da casa de Ortega, o lugar onde parece desaguar "toda a merda do bairro". E dos crimes alheios.
As Mãos Desaparecidas é, sem dúvida, uma leitura empolgante e absorvente para os insaciavelmente curiosos, temerários e indiscretos humanos de temperamento felino.
Cláudia de Sousa Dias
8 Comments:
Não li. Como sempre, fico curioso depois de ler os teus textos. Depois, a preguiça (chamemos-lhe preguiça para não irmos em vbusca de causas mais graves) trinufa...
bjs
P.
Pelo menos lês os textos do hasempreumlivro....
:-)
o que já não é nada mau. revela que tens paciência para aquilo que um dos meus ex-patrões chamava de "masturbações intelectuais".
csd
Fazendo uma espécie de homenagem ao teu blog, 'Há sempre um idiota pronto a...' continua mas é, Cláudia.
Tenho paciência porque vale muito a pena ter acesso a este patamar de contacto com os livros. E que tenhamos muito prazer com a actividade intelectual, de múltiplas formas? Para quem não consegue...temos pena...
P.
:-D
LOLOL...!
CSD
nada a propósito de temperamentos caninos :)?????
mais uma excelente sugestão que eu não terei tempo de aproveitar :(
Há sempre um livro à minha espera e eu falto ao encontro!!! Não é horrível?
bom ver-te de volta, inominável!
Não há problema nenhum em faltares aos "encontros". Os textos são para abrir o apetite. Pode-se também abrir uma porta à discusssão dos temss mesmo sem ter lido o livro ou sem remeter directamente para a obra...
Este livro pode ser lido sem conhecer o primeiro volume ou há mesmo necessidade de conhecer contextos anteriores? (pergunto se dá para ler como “histórias individuais”)
Este livro pode ser lido sem conhecer o primeiro volume ou há mesmo necessidade de conhecer contextos anteriores? (pergunto se dá para ler como “histórias individuais”)
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