“A Última Criada de Salazar: a vida doméstica e os dias do fim” de Miguel Carvalho (Oficina do Livro)
Já nos habituámos às reportagens e
ao estilo narrativo no jornalismo de Miguel Carvalho, cujas
peças sempre se assemelham ora a crónicas de viagens – quer pelo
território nacional quer pelo mundo –, ora a um romance policial,
juntando muitas vezes o talento para a construção de uma biografia.
O discurso de Miguel Carvalho apresenta-se numa prosa ágil,
escorreita, a lembrar um pouco o romantismo ou até mesmo os autores
neo-realistas, tal como acontece com primeira parte da biografia de
Lúcio Feteira, onde encontramos, por vezes, ecos de Raul Brandão.
Nesta última obra de Miguel
Carvalho, publicada já há dois anos atrás, é notória a
preocupação do autor em não deixar que as suas próprias
convicções ideológicas ocultem o ponto de vista da protagonista,
D. Rosália Araújo, criada no Palácio de S. Bento. Trata-se de uma obra que valor documental, apresentada como o testemunho de uma época.
A variedade das fontes consultadas
pelo Autor permitiram-lhe operar uma reconstrução fiel da
mentalidade e da época e da forma de viver o quotidiano do palácio
durante o Estado Novo, assim como efectuar a adequada
contextualização histórica , socorrendo-se de um vastíssimo
leque de fontes (a bibliografia consultada aparece
totalmente descrita no final da obra) as quais se estendem por todo o
espectro político-ideológico. Apesar disso, o perfeccionismo de
Miguel Carvalho, ao citar Franco Nogueira in Salazar,
vol VI (1985) não deixa de frisar que: “muitas
perguntas estão [ainda] sem resposta, muitas lacunas ficam por
preencher...”. No entanto, Miguel Carvalho não deixa de
responder a algumas questões de peso, que nunca antes foram
colocadas, ou se o foram, nunca se focaram na perspectiva que é aqui
enunciada por Miguel Carvalho,
por exemplo: a personalidade de Salazar e a forma de se
relacionar com as pessoas dentro do espaço doméstico gigantesco
como era o Palácio de S. Bento; as estratégias e segredos a que
recorriam as criadas para sobreviver à ditadura de Dona Maria, a
Governanta; a forme como eram geridas as finanças, as despesas e a
alimentação na residência oficial; que episódios foram ocultados
nos últimos anos de vida do político; qual a versão foi contada ao
pessoal doméstico sobre a tão falada “queda da cadeira; e, por
último, como tentou o regime de então “matar” o ditador.
A protagonista do livro é uma figura
feminina que contava apenas com dezanove anos aquando da morte do
Ditador. Para verter o texto sob o olhar de uma jovem que passou a
adolescência protegida pelos muros do Palácio de S. Bento, o tom do
discurso usado por Miguel Carvalho neste livro aparentemente,
um pouco mais ligeiro em relação a outras obras da autoria: o
olhar de uma jovem que conviveu de perto com a faceta doméstica de
António Oliveira Salazar, alheia à sua faceta política e ao
ethos ou imagem de si que a figura polémica deste político
carismático projectava quer para o país (figura de autoridade
máxima cujas convicções políticas nunca se podiam pôr em causa)
quer para o resto do mundo (uma figura de atitude ambígua,
escorregadia, de postura dúplice, sobretudo durante a segunda guerra
mundial, um animal político, embora profundamente provinciano na sua
forma de conceber o mundo), mas que nos mostra a imagem de um pai de
família, dotado de autoridade em relação aos restantes habitantes
do Palácio, mas benevolente. É nesta relação estabelecida entre
todos estes dois pontos de vista, estas imagens, estes ethe
relativos ao estadista português, que assenta a o interesse do livro
de que hoje aqui falamos: a jovem Rosália desconhecia, por exemplo,
a existência de uma polícia política, da qual só tomaria
consciência aquando do atropelamento de que fora vítima, ao sair em
serviço para abastecer a despensa do palácio. Esta simples
ocorrência desencadeou todo um esquizofrénico processo de
investigação para verificar uma qualquer hipótese de atentado.
O posicionamento do autor assenta num
delicado equilíbrio que se atinge sem subscrever na íntegra a visão
de Dona Rosália Araújo acerca do Ditador, mas contudo sem a
rejeitar, incorporando-a na imagem prévia que já possuía do antigo
chefe de Estado, aglutinando a perspectiva transmitida por Dona
Rosália ao conhecimento anteriormente adquirindo, fornecendo-nos
assim um retrato mais completo, com uma faceta até então pouco
conhecida daquele que esteve quase meio século à frente dos
destinos do País.
Aos olhos de Dona Rosália Araújo a
pessoa do Ditador, com a qual convivia todos os dias no Palácio,
apresentava-se como um homem amável, cavalheiro, quase paternal. Por
outro lado, cabia a uma figura feminina incarnar a faceta repressiva
do regime dentro dos muros de S. Bento. Essa figura seria D. Maria, a
governanta, retratada a partir de uma imagem projectada para o
leitor que se aproxima muito da das bruxas maléficas dos contos da
fadas tradicionais. É ela quem exibe a postura tirânica, despótica
e quase que sádica na forma como exerce o poder face aos que estão
sob a sua responsabilidade e também na gestão dos fluxos de
informação dentro do palácio, correspondência incluída. Esta
polarização entre as duas figuras de maior autoridade dentro do
palácio,o ditador Benevolente e a Governanta perversa, assim
percepcionadas por Dona Rosália, é outra característica de grande
interesse na obra, por ter a ver com as relações de poder que se
estabelecem dentro da residência oficial do chefe de estado e da
forma como é percebido e exercido o poder dentro de uma estrutura
hierárquica com um líder autoritário. A crueldade desta chefe do
staff doméstico de António Oliveira Salazar ficou inscrita
na memória daqueles que com ela conviviam diariamente, sobretudo as
criadas que se encontravam sob sua chefia directa. D. Maria era
conhecida por mandar executar tarefas especialmente difíceis sem se
preocupar com as condições da sua exequibilidade.
Deixo-vos agora com a Introdução e
com a “voz” de Miguel Carvalho para vos dar a conhecer a
extensão e minúcia deste trabalho de reconstituição da vida
doméstica do Palácio de S. Bento durante o “reinado” de António
Oliveira Salazar:
Rosália Araújo foi a última
criada de António Oliveira Salazar.: entrou em São Bento em 1965,
com quase 14 anos, e de lá saiu, com um interregno, após a morte do
ditador, em 1970. Tinha, então, 19 anos.
Conheci-a em Março de 2012, quando
pela primeira vez me desloquei a Favaios, concelho de Alijó, em
reportagem.
Queria contar a sua história nas
páginas da Revista Visão,
mas não estava certo de a ter convencido.
Nas nossas conversas prévias pelo
telefone, esta afamada padeira da região várias vezes me disse que
detestava protagonismos e não desejaria que as pessoas pensassem que
se estava a pôr em bicos de pés.
Creio que a convenci a desfiar as
suas recordações , não pelo mediatismo inevitável das suas
memórias, mas à medida que fomos conversando, olhos nos olhos.
Sobre este livro, termino aqui com o
testemunho de Manuel António Pina que afirmava, peremptório:
«Miguel Carvalho é a prova (se tal
carecesse de prova) de que um bom jornalista há-de ser,
necessariamente, um bom escritor».
Cláudia de Sousa Dias
13.09.2015
5 Comments:
Likes no grupo "Livros"
https://www.facebook.com/groups/118522201491451/permalink/1073099386033723/
Rosario Duarte da Costa, Ana P. P. Ribeiro e Alvaro Manadelo gostam disto.
https://www.facebook.com/groups/366036136807459/permalink/909479232463144/
e no grupo "o que andamos a ler comentaram e gostaram:
Maria Cantinho,Ana P. P. Ribeiro, Sérgio Correia, Elvira Fernandes e
Maria João Lima
Ana P. P. Ribeiro: Já li sobre a obra no JL e muito bem...
Claudia De Sousa Dias: Atenção que quando digo que "não é literatura" não estou a diminuir a obra. Estou dizer que não pertence ao género romance, conto, poesia, drama, ou simplesmente literatura de viagens ou aquele género metaliterário que é a narrativa ou escrita diarística (que pode também ser literatura, embora muitas vezes não o seja). Trata-se de uma obra escrita em tom testemunhal que pode servir como documento histórico. Eu friso isso no texto.
No mural do facebook da Blogger:
Pessoas que gostam disto: Vanda Prazeres, Álvaro Araújo Rocha Vasconcelos; Walid Maciel Chaves Saad e Paula Oliveira Cruz
"O ditador Benevolente e a Governanta perversa" faz-me lembrar o polícia bom e o polícia mau dos interrogatórios...
Muita coisa, contudo, nunca se chegará a saber, pelo menos pelas massas.
Óptima resenha, já fiquei com vontade de o ler!
Beijinhos
Best comment ever Madalena! Thank you so much.
CSD
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