Um post sobre um livro que não é literatura
Vidas Suspensas: histórias de
mulheres, vítimas de violência doméstica, que lutam nos tribunais
pelos direitos dos seus filhos” organização de Rita Montez com
fotos de Nuno Correia
Antes de mais, gostaríamnos de aqui
frisar que, contrariamente ao habitual, o conteúdo deste post não
diz respeita a uma obra literária. Trata-se, inclusive, de um livro
cuja importância não se define sequer pela qualidade da prosa. O
motivo que nos leva a falar de uma publicação deste género tem, a
ver com a pertinência do conteúdo em e não relativamente ao estilo
ou à forma. A edição está a cargo da Associação Portuguesa das
Mulheres Juristas e diz respeito a um trabalho jornalístico levado a
cabo por Rita Montez, jornalista da Revista Visão, que compilou e
trabalhou na reconstituição de vários depoimentos que relatam
alguns dos mais estarrecedores casos de violência doméstica
ocorridos em Portugal nas últimas décadas. A (in)eficácia dos
meios existentes de protecção à vítima, as lacunas na lei, a
falta de coordenação das instituições neste domínio específico
do Direito onde se cruzam os ramos do Direito Penal com o Direito da
Família, o preconceito cultural de uma boa parte dos magistrados
portugueses são alguns dos aspectos mais enfatizados pela autora
desta publicação.
As mulheres entrevistadas são oriundas
de todos os estratos sociais abrangendo operárias, administrativas
empresárias, medicas e mesmo juízas. A autora preocupou-se, também, com a representatividade geográfica fazendo com que o conjunto de entrevistadas cobrisse o território de norte a sul do País.
Os relatos que compõem o livro não
nos parecem, no entanto, discursos autênticos, isto é, aparentam
ser a transcrição exacta dos discursos das mulheres cujas histórias
são aqui reunidas, devido à ausência de sinalização, das pausas,
hesitações, silêncios, para não falar de ser notório o discurso
estar lexicalmente homogeneizado nos vários depoimentos. É pena, porque a obra perde parte da sua autenticidade. A transcrição de uma entrevista
seguindo um guião que, podendo ser mais ou menos rígido, deveria ter
pelo menos um conjunto de linhas básicas de orientação e figurar no livro terminado
com uma conclusão elaborada por parte de um narrador ou jornalista. Isto beneficiaria o leitor não só em termos de autenticidade como já foi referido, mas também de fiabilidade e
qualidade jornalística e científica, facilitando a comparação dos casos entre
si. Mas é, no entanto, já bastante positivo que uma publicação como este tenha
visto a luz do dia.
Do conjunto de relatos que fazem parte
deste livro (que não sabemos se constituirá ou não uma amostra
representativa de uma realidade nacional devido à ausência de
detalhes relativamente à metodologia utilizada que levou à selecção destes casos em particular)
sobressai o factor respeitante a uma excessiva departamentalização
das instituições e falta de coordenação de esforços das mesmas no sentido
de proteger as vítimas e a sociedade. Essa mesma falta de
coordenação exprime-se sobretudo na presença de decisões
contraditórias entre o Tribunal Penal e o Tribunal de Família, tal
como sucede no caso em que o Tribunal de família decide no sentido
de os filhos do casal continuarem a a ser expostos à presença do
cônjuge agressor, tendo este último sido condenado pelo Tribunal
Penal por tentativa de homicídio à progenitora das crianças e
tendo estas testemunhado o facto.
O quadro de vulnerabilidade das vítimas
de violência doméstica apresentado pela autora do livro mostra-se,
de acordo com os relatos nele contidos, assaz preocupante, por ser
essencialmente o resultado também da cultura que parece dominar
parte da magistratura em Portugal e que assenta no pressuposto de
que um mau marido, namorado ou companheiro, independentemente de
demonstrar uma conduta violenta para com a companheira, possa ser um
bom pai. O que na verdade se passa nos casos aqui apresentados é que
não é ainda interiorizado por parte de alguns decisores nos
tribunais, sobretudo no âmbito da jurisprudência, é que os comportamentos
violentos são em regra apreendidos por modelação em idades
precoces, pelo que a convivência com um adulto agressivo, além de
se mostrar negativa na formação da personalidade da criança,
coloca-la-á, a médio e longo prazo, em risco de sofrer uma agressão ou de vir a
praticar o mesmo tipo de comportamento agressivo no futuro.
Nesta compilação de Vidas
Suspensas deparamo-nos com um catálogo de tudo quanto se possa
esperar de uma relação disfuncional, desequilibrada, com vista ao
silenciamento e à submissão do outro, quer pela via física quer
psicológica: espancamentos, agressão com arma branca, violação,
insultos, humilhações, lenocínio. Num dos casos descritos, o
Tribunal de Família decreta a obrigatoriedade de permissão pelo
cônjuge agredido de visitas semanais à cadeia de um menor ao
progenitor agressor que havia esfaqueado a mãe do mesmo menor. Há
também um caso mediático a
envolver agressões, proxenetismo e lenocínio que facilmente se
reconhece como um episódio que figurou durante meses nos tablóides
nacionais e inclusive, nalgumas revistas cor-de-rosa.
Frisando, mais uma vez, não estarmos hoje a falar de literatura, a obra de que aqui falamos não
deixa de ser uma publicação de interesse relevante, a
apresentar-se como um resumo de um estudo de casos, cujo objectivo é
apontar
as falhas na protecção aos cidadãos em situação particularmente
vulnerável.
Londres, 30.03.2016
Cláudia de Sousa Dias
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