“O Lápis do Carpinteiro” de Manuel Rivas (Dom Quixote)
Manuel Rivas é um reputado romancista galego, nascido na Corunha em 1957. Licenciado em Ciências da Comunicação, Rivas é um escritor multifacetado: ensaio, poesia, conto, romance são os géneros aos quais dedica a sua actividade literária, paralelamente à escrita jornalística.
O local de acção de O Lápis do Carpinteiro situa-se na Galiza, em 1936.
Franco está no poder e a repressão ideológica é apertada.
Na prisão, um preso político, um “pintor de ideias” desenha o Pórtico da Glória, utilizando um lápis de carpinteiro. Vermelho. Cor do sangue e da fraternidade.
O Pórtico representa o Dia do Juízo Final. Os rostos dos anjos e dos profetas estão representados pelos prisioneiros políticos enquanto que os demónios torturadores são os guardas do inferno prisional da prisão de San Simón. O rosto de Daniel da Barca, o médico cubano e amigo de Che, representa o profeta Daniel. Na cova dos leões. Um dos poucos que consegue escapar à voracidade da fúria das feras humanas.
Dono de uma prosa sublime, Rivas manipula o lápis (ou a caneta) não de carpinteiro mas de artífice da Palavra, construindo frases e ideias a partir de factos e personagens reais. O resultado é a criação de uma obra de ficção cuja dolorosa beleza cria no leitor a sensação de verosimilhança semelhante àquela que experimentámos ao visualizar uma obra cinematográfica como A Lista de Schindler, realizada por Steven Spielberg.
Isto porque tal como no romance de Thomas Keneally que deu origem ao filme, a personagem principal, neste caso o ex-guarda prisional Herbal, muda, a dado momento da narrativa, de convicções mediante o choque causado por uma imagem. Tal como Schindler, o fabricante de armas nazi, que sofre uma revolução emocional face ao impacto do cadáver de uma criança de vestida de vermelho em cima da pilha de cadáveres destinados ao forno crematório. No caso do carcereiro da prisão de San Simón assistimos à ocorrência de um abalo emocional do mesmo género após esta sinistra personagem ser obrigada a executar o autor do Pórtico da Glória – pintura mural executada com um vulgar lápis de carpinteiro representando o Apocalipse, onde os rostos dos prisioneiros políticos dão forma a anjos e profetas. O “pintor de ideias”, considerado subversivo e perigoso para o regime de Franco, faz uma última conversão antes de morrer, através do impacto imagético do seu génio artístico, a qual se traduz na redenção do seu próprio assassino.
Herbal, o guarda que assassina o pintor, herda o vulgar lápis de carpinteiro que inspirava a arte nos seus dedos, transformando o pensamento em imagens. Após a sua morte, o mesmo lápis vermelho de carpinteiro, transforma-se na voz da sua Consciência. Ou do Remorso…
… sempre que o coloca atrás da orelha.
Como se o artista lhe segredasse ao ouvido do carrasco os próprios pensamentos. Um toque de realismo mágico, introduzido pelo Autor, que se serve deste recurso para expressar a voz do humanismo.
O pretexto para a narração da história é despoletado pelo jornalista Carlos Sousa, de origem portuguesa, o qual tem como missão entrevistar o Doutor Da Barca, antigo prisioneiro político, defensor dos direitos humanos e das condições de higiene nas prisões no tempo da ditadura. Daniel da Barca será, posteriormente, exilado e lutará pelos seus ideais ao lado de Che Guevara.
Carlos visita o Doutor, já idoso e agonizante, martirizado pela tísica.
Paralelamente, a narrativa continua do outro lado, do ponto de vista do ex-guarda, Herbal, que gere o bar de alterne local com a proxeneta Manila. Sentado à mesa, Herbal vai desfiando o rosário das suas memórias à jovem prostituta Maria de la Visitación, enquanto olha o lápis do carpinteiro, seu companheiro de tantos anos – a voz dos fantasmas que lhe povoam a mente..
O desenvolvimento da narrativa é feito com base no confronto entre forças duas opostas: aqueles que lutam por um ideal de justiça social, como o Dr. Da Barca, o Padre Poeta e o Pintor de Ideias e todos aqueles que tentam defender o regime.
Herbal, o carcereiro e, a dada altura carrasco, sendo um dos narradores da história, representa, na altura em que conhece o jovem médico Daniel da Barca, a categoria dos excluídos sociais, um camponês de origem humilde, sem estudos, carente a todos os níveis, vítima de maus tratos por parte do pai. Desenvolve, em consequência das privações, um ódio social face àqueles que têm a oportunidade de ter tudo aquilo que lhe foi vedado. Principalmente o jovem médico, belo e culto, que consegue cativar Marisa Mallo, a filha do cacique da região, a mulher mais bela da terra.
O Dr. Da Barca, chegado à Galiza, vindo de Cuba, partilha muitas das convicções de Che Guevara a respeito dos ideais de justiça social, tornar-se-á, mais tarde, o médico dos seus companheiros de prisão, ao declarar guerra à tísica e ao assumir a luta pelas melhorias das condições de vida dos prisioneiros.
Antes de ser preso, Daniel da Barca sofre a discriminação por parte da família da noiva, devido à precariedade da situação económica de médico recém-formado, sem reputação construída. Além do mais, a sua situação de forasteiro causa, também, desconfiança.
Daniel vê-se duplamente visado: primeiro, pelas suas ideias políticas e, depois, pela sua paixão correspondida por Marisa.
A beleza e o carácter da jovem tornam-na admirada por todos e, consequentemente, desejada por muitos. De tal forma que a sua preferência por Daniel acaba por colocá-lo em perigo…
Por outro lado, o espírito rebelde e independente de Marisa faz dela a perfeita heroína romântica e o par ideal para uma personagem com o carácter de Daniel da Barca.
A paixão romântica dos dois protagonistas, uma típica história de amor em tempo de guerra civil, foge ao lugar comum pela exposição do sofrimento dilacerante como o gume de uma lâmina do anti-herói, Herbal, o mal-amado.
Também o ultrapassar das barreiras ideológicas, após o final da guerra, leva à acalmia e à estabilização emocional do vilão, permitindo que as peças se encaixem no seu devido lugar, ao mostrar-lhe com a passagem das décadas, uma visão mais global da realidade. Estamos a falar do amadurecimento que resulta da consolidação da mudança de Herbal, motivada pelo poder persuasivo de um lápis de carpinteiro, atrás da orelha.
Ou das memórias a ele associadas.
O lápis do qual saiu uma pintura mural (ou, neste caso, moral) numa prisão, como testemunho e denúncia das atrocidades cometidas.
O lápis que despoleta o extirpar do mal através de uma espécie de exorcismo dos demónios internos, de dissolução da podridão emocional causada pelo Ciúme e pela Inveja, ao usar a jovem prostituta como confessora…
É, também, o lápis que traz a memória de um poema a falar do canto dos melros da autoria de um jovem padre poeta assassinado.
A memória e a nostalgia de um passado que são trazidas à consciência do tempo presente, pela voz associada a um lápis, fraternal e revolucionário, que segreda ao ouvido a doutrina do amor pela Humanidade…
Cláudia de Sousa Dias
O local de acção de O Lápis do Carpinteiro situa-se na Galiza, em 1936.
Franco está no poder e a repressão ideológica é apertada.
Na prisão, um preso político, um “pintor de ideias” desenha o Pórtico da Glória, utilizando um lápis de carpinteiro. Vermelho. Cor do sangue e da fraternidade.
O Pórtico representa o Dia do Juízo Final. Os rostos dos anjos e dos profetas estão representados pelos prisioneiros políticos enquanto que os demónios torturadores são os guardas do inferno prisional da prisão de San Simón. O rosto de Daniel da Barca, o médico cubano e amigo de Che, representa o profeta Daniel. Na cova dos leões. Um dos poucos que consegue escapar à voracidade da fúria das feras humanas.
Dono de uma prosa sublime, Rivas manipula o lápis (ou a caneta) não de carpinteiro mas de artífice da Palavra, construindo frases e ideias a partir de factos e personagens reais. O resultado é a criação de uma obra de ficção cuja dolorosa beleza cria no leitor a sensação de verosimilhança semelhante àquela que experimentámos ao visualizar uma obra cinematográfica como A Lista de Schindler, realizada por Steven Spielberg.
Isto porque tal como no romance de Thomas Keneally que deu origem ao filme, a personagem principal, neste caso o ex-guarda prisional Herbal, muda, a dado momento da narrativa, de convicções mediante o choque causado por uma imagem. Tal como Schindler, o fabricante de armas nazi, que sofre uma revolução emocional face ao impacto do cadáver de uma criança de vestida de vermelho em cima da pilha de cadáveres destinados ao forno crematório. No caso do carcereiro da prisão de San Simón assistimos à ocorrência de um abalo emocional do mesmo género após esta sinistra personagem ser obrigada a executar o autor do Pórtico da Glória – pintura mural executada com um vulgar lápis de carpinteiro representando o Apocalipse, onde os rostos dos prisioneiros políticos dão forma a anjos e profetas. O “pintor de ideias”, considerado subversivo e perigoso para o regime de Franco, faz uma última conversão antes de morrer, através do impacto imagético do seu génio artístico, a qual se traduz na redenção do seu próprio assassino.
Herbal, o guarda que assassina o pintor, herda o vulgar lápis de carpinteiro que inspirava a arte nos seus dedos, transformando o pensamento em imagens. Após a sua morte, o mesmo lápis vermelho de carpinteiro, transforma-se na voz da sua Consciência. Ou do Remorso…
… sempre que o coloca atrás da orelha.
Como se o artista lhe segredasse ao ouvido do carrasco os próprios pensamentos. Um toque de realismo mágico, introduzido pelo Autor, que se serve deste recurso para expressar a voz do humanismo.
O pretexto para a narração da história é despoletado pelo jornalista Carlos Sousa, de origem portuguesa, o qual tem como missão entrevistar o Doutor Da Barca, antigo prisioneiro político, defensor dos direitos humanos e das condições de higiene nas prisões no tempo da ditadura. Daniel da Barca será, posteriormente, exilado e lutará pelos seus ideais ao lado de Che Guevara.
Carlos visita o Doutor, já idoso e agonizante, martirizado pela tísica.
Paralelamente, a narrativa continua do outro lado, do ponto de vista do ex-guarda, Herbal, que gere o bar de alterne local com a proxeneta Manila. Sentado à mesa, Herbal vai desfiando o rosário das suas memórias à jovem prostituta Maria de la Visitación, enquanto olha o lápis do carpinteiro, seu companheiro de tantos anos – a voz dos fantasmas que lhe povoam a mente..
O desenvolvimento da narrativa é feito com base no confronto entre forças duas opostas: aqueles que lutam por um ideal de justiça social, como o Dr. Da Barca, o Padre Poeta e o Pintor de Ideias e todos aqueles que tentam defender o regime.
Herbal, o carcereiro e, a dada altura carrasco, sendo um dos narradores da história, representa, na altura em que conhece o jovem médico Daniel da Barca, a categoria dos excluídos sociais, um camponês de origem humilde, sem estudos, carente a todos os níveis, vítima de maus tratos por parte do pai. Desenvolve, em consequência das privações, um ódio social face àqueles que têm a oportunidade de ter tudo aquilo que lhe foi vedado. Principalmente o jovem médico, belo e culto, que consegue cativar Marisa Mallo, a filha do cacique da região, a mulher mais bela da terra.
O Dr. Da Barca, chegado à Galiza, vindo de Cuba, partilha muitas das convicções de Che Guevara a respeito dos ideais de justiça social, tornar-se-á, mais tarde, o médico dos seus companheiros de prisão, ao declarar guerra à tísica e ao assumir a luta pelas melhorias das condições de vida dos prisioneiros.
Antes de ser preso, Daniel da Barca sofre a discriminação por parte da família da noiva, devido à precariedade da situação económica de médico recém-formado, sem reputação construída. Além do mais, a sua situação de forasteiro causa, também, desconfiança.
Daniel vê-se duplamente visado: primeiro, pelas suas ideias políticas e, depois, pela sua paixão correspondida por Marisa.
A beleza e o carácter da jovem tornam-na admirada por todos e, consequentemente, desejada por muitos. De tal forma que a sua preferência por Daniel acaba por colocá-lo em perigo…
Por outro lado, o espírito rebelde e independente de Marisa faz dela a perfeita heroína romântica e o par ideal para uma personagem com o carácter de Daniel da Barca.
A paixão romântica dos dois protagonistas, uma típica história de amor em tempo de guerra civil, foge ao lugar comum pela exposição do sofrimento dilacerante como o gume de uma lâmina do anti-herói, Herbal, o mal-amado.
Também o ultrapassar das barreiras ideológicas, após o final da guerra, leva à acalmia e à estabilização emocional do vilão, permitindo que as peças se encaixem no seu devido lugar, ao mostrar-lhe com a passagem das décadas, uma visão mais global da realidade. Estamos a falar do amadurecimento que resulta da consolidação da mudança de Herbal, motivada pelo poder persuasivo de um lápis de carpinteiro, atrás da orelha.
Ou das memórias a ele associadas.
O lápis do qual saiu uma pintura mural (ou, neste caso, moral) numa prisão, como testemunho e denúncia das atrocidades cometidas.
O lápis que despoleta o extirpar do mal através de uma espécie de exorcismo dos demónios internos, de dissolução da podridão emocional causada pelo Ciúme e pela Inveja, ao usar a jovem prostituta como confessora…
É, também, o lápis que traz a memória de um poema a falar do canto dos melros da autoria de um jovem padre poeta assassinado.
A memória e a nostalgia de um passado que são trazidas à consciência do tempo presente, pela voz associada a um lápis, fraternal e revolucionário, que segreda ao ouvido a doutrina do amor pela Humanidade…
Cláudia de Sousa Dias
15 Comments:
Bom ano 2008!
Mais uma excelente prosa, a fazer crescer a vontade de ler essa outra prosa do Manuel Rivas. Nunca tinha ouvido falar...
Não há nenhum sítio onde se possa ver a programação do cineliterário?! Para não andar sempre a aborrecer com perguntas ;)
Eu envio-lhe por e-mail, logo que tenha a confirmação das datas para 2008!
Também posso postar essa mesma programação no Rendez-vous...
Um beijinho grande e obrigada pela visita!
Vai adorar ler Manuel Rivas! Ainda para mais é um livro fininho...
Lê-se numa tarde...
CSD
Tenho de ler o Rivas!
Feliz 2008!
é sempre bom ler pelos teus olhos.
pelo teu sentido crítico, analítico, de humor.
este não conheço.
mas fica a apetecer.
bom ano, menina dos livros e das leituras :)
Gosto das tuas palavras...fazem-me bem ao ego...
preciso de uma editora....(buá, buá)
áh... bom ano Cláudia
Baudolino, deste não tenho a menor dúvida: vais MESMO gostar!
Feniana, és uma querida! Obrigada e um excelente 2008 para ti também.
Carlos: estás tu a precisar de editora, estou eu e mais uma boa mão cheia de bloggers cheios de talento que enconttro por aqui: a Rosário do "Divas" a Elipse com as suas Palavras em linha, o Pedro ribeiro que escreve uma poesia fenomenal no www.xamachama.blogspor.com que lá vai publicando embora ainda sem ter o destaque que verdadeiramente merece...
Mas tenho a certeza que mais cedo ou mais tarde o reconhecimento virá à tona...
Um beijinho
CSD
bom ano 2008
à Rapariga das Palavras
/que lê e diz muito para além das
...palavras!! :)
abraÇo e beijO
Obrigada pelo cumprimento!
Beijo grande
CSD
Cláudia,
continuas imparável nas sugestões e com muita acuidade nos textos.
Parabéns, bom ano, bom dia de Reis, bom tudo.
Obrigada!
Não consegui foi provar hoje o meu prato preferido da época natalícia: os mexidos.
Vou tentar convencer a minha mãe a fazer alguma coisa. Mas para o p´roximo ano vou aprender a fazê-los com a minha tia Fernanda e depois posto a receita no rendez-vous.
A aletria dela também é fora de série, porquie é feita com leite!
Simplesmente divinal!
CSD
Antes de mais um bom ano.
Já me tinhas recomendado este livro que, confesso, desconhecia em absoluto assim como o seu autor.
Pela tua exposição parece-me de facto um livro interessante, um livro a ler numa próxima oportunidade.
Olha, já leste "A estrada" do Cormac McCarthy?
Lê, é um livro brutal.
Bjs
Nuno
Obrigada!
Não, ainda não li,mas fá-lo-ei logo na primeira oportunidade...
Abraço
CSD
Não li! Começo o ano a aumentar a lista do que quero ler! E tu és em larga medidade responsável por um elenco infindável de livros "a ler", depois de comentários tão ricos e entusiasmantes!
Aproveito, também, para te desejar um excelente Ano Novo de 2008! :-)
(são votos tardios - ando um pouco arredida da blogosfera - mas que nunca pecam por excesso!)
Fico infinitamente feliz por despertar nas pessoas aisdade e a vontade de ler, principalnmente no que toca a Autores como Rivas cuja alma projectada na escrita vale ea pena explorar!
Um beijo
CSD
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