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Tuesday, May 11, 2010

"Ensaio sobre a cegueira” de José Saramago (Caminho)




A frase retirada do Livro dos Conselhos - Se podes olhar, vê; se podes ver, repara -, colocada em epígrafe no romance, é a chave que ajuda a descodificar a mensagem que o Autor pretende transmitir. Para Saramago a visão divide-se em vários patamares: olhar, ver e reparar são as suas três declinações, sendo que a primeira, de carácter nível mais elementar, implicando, por isso, uma panorâmica geral, istó é, pressupõe o abarcar de um determinado espaço que é “varrido” pela vista, sem contudo se deter, muito sobre nenhum aspecto em particular. Logo depois vem o “ver” que obriga a fixar a vista em algo que chamou a atenção durante o “olhar”, pressupondo, já, algum grau de descodificação ou capacidade de interpretação. Como se a lente ocular ampliasse o objecto, tal como a lente de um binóculo, de um telescópio ou mesmo dum microscópio. Por último, o grau máximo de precisão nesta escala tem a ver com o acto de “reparar” em algo. O aspecto focado no estágio anterior é, além de analisado e dissecado, retido na memória a longo prazo, A memória é permite a detecção, identificação, ligação e finalmente a compreensão das situações, por analogia, proporcionando as adaptações do comportamento necessárias à mudança.


É sobre este prisma que a leitura de “Ensaio sobre a Cegueira” faz com que olhemos, vejamos e reparemos numa humanidade que sofre um colapso temporário, o qual se manifesta numa estranha cegueira que não tem relação com qualquer tipo de anomalia física. Trata-se de uma ocorrência de teor apocalíptico que se concretiza numa mutação repentina, traz o caos ao quotidiano. Apenas um único ser humano consegue escapar ao flagelo, fazendo tudo para minimizar os seus efeitos mais nocivos.

A obra é, toda ela, uma alegoria (aliás não é por acaso que nenhuma das personagens tem nome) que opõe a consciência e o sentimento de responsabilidade social – incarnados na mulher do médico – ao alheamento e à passividade, à demissão do sujeito face às suas funções sociais e aos seus deveres cívicos.

A trama desenvolve-se em crescendum, à semelhança do processo de propagação de uma epidemia, tal como no romance A Peste de Albert Camus, a quem o Autor foi beber, talvez, a inspiração para o desenvolvimento estrutural do romance. A temática de Saramago é, no entanto, diferente da de Camus, embora sejam análogas. A “peste” de que fala o Autor francófono é o nazismo, que consistiu na primeira metade do século XX, uma espécie de cegueira ideológica. Já a cegueira de que fala Saramago é o individualismo levado ao extremo. Em ambos os romances existe uma calamidade social, que se desenvolve como uma pandemia, isto é, em progressão geométrica.

Em termos estéticos, José Saramago descreve cada cena como se empunhasse uma câmara de filmar em movimento. O tom de voz do narrador é quase o de um locutor de televisão a fazer um documentário do National Geographic, mas onde o cenário é uma grande metrópole e o animal a observar, o Homem. Por exemplo: a narração da primeira cena, faz com que o leitor sinta que está por detrás de uma câmara de filmar, como se esta fosse um “olho omnisciente – o narrador – o qual acabará por delegar, a dada altura, parte das suas funções na única personagem que não perde a visão: a mulher do médico, a qual se torna líder de uma facção de cegos que a escolhem democraticamente. Nela, estão presentes um forte impulso maternal e um vincado instinto de protecção face ao Outro, assim como um elevado sentido de responsabilidade cívica, que a tornam imune à misteriosa cegueira.

O Autor caracteriza uma sociedade distópica, que nada mais é do que uma selva de betão, um meio urbano onde habita o homo economicus e onde se ergue a sociedade do ter e do “salve-se quem puder”. Esta encontra-se caracterizada logo na primeira cena, onde a agressividade natural dos participantes anónimos parece conter em si o gérmen da sua própria destruição:

O disco amarelo iluminou-se (…) na passadeira dos peões surgiu o desenho do homem verde (…). Os automobilistas, impacientes, com o pé no pedal da embraiagem, mantinham em tensão os carros, avançando, recuando, como cavalos nervosos que sentissem vir no ar a chibata.

E é precisamente no momento de arranque, quando o semáforo passa a verde, que cega a primeira personagem.

A cegueira vai afectando sucessivamente as personagens é “uma estranha cegueira branca” que impede o discernimento, impossibilita a distinção das coisas (note-se que na bandeira francesa o branco simboliza a igualdade): a verdade da mentira, o bem do mal, o justo do injusto. Trata-se de uma incapacidade de discernimento que dilui os limites que separam o lado positivo e negativo de um mesmo continuum, aumentando a zona de transição, um limbo de incerteza que leva à desorientação. O campo de concentração onde são isolados os primeiros “portadores da doença” é um microcosmos onde se reproduzem vários modelos sociais, representados pelas diferentes camaratas. Esses modelos sociais esses vão desde a democracia à autocracia, como sublinhou a Socióloga Maria do Rosário Fardilha durante o debate na Biblioteca Municipal de Vila Nova de Famalicão, em Março último, a propósito de Blindness o filme de Fernando Meirelles, baseado neste romance. Segundo MRF, a um idealismo quase platónico, presente numa das camaratas ( aquela onde se encontram o médico e a mulher que não é cega), onde o representante da camarata é eleito democraticamente, opõe-se a camarata daquele que se autoproclama chefe, porque detém uma arma (o símbolo do poder militar, ainda segundo Rosário Fardilha) e das ditaduras, como sucedeu em países como o Chile, o Iraque, Portugal, Itália, entre outros.

A cegueira espiritual progride traduzindo-se num aumento insustentável dos detidos que vivem de um estado de providência. Não trabalham e subsistem à custa do Estado. A par da dependência e da falta de autonomia produtiva prolifera, cada vez mais, a ausência de clarividência, o crescimento da ignorância, em todos os grupos sociais, como se estivessem ofuscados por uma cegueira de luzao, ao mesmo tempo que se vêem esgotar os recursos e o espaço se torna cada vez mais exíguo.


A "cegueira" faz com que estímulos visuais se tornem progressivamente auditivos, exactamente como nas sociedades onde proliferam os boatos e onde a informação raras vezes é confirmada. As pessoas deixam de ser testemunhas oculares dos factos para apenas reproduzirem o que ouvem , facilitando a progressão do boato pela deturpação da informação. Até os lugares passam a ser reconhecidos pelos odores e a atmosfera das emoções pela oposição silêncio/ruído. Trata-se de uma humanidade cujo raciocínio se baseia muito mais na intuição do que nos factos e, por isso, muito mais facilmente manipulável pelos órgãos de informação e poder, sobretudo por aqueles que são responsáveis pela distribuição dos bens essenciais à sobrevivência. Para um controlo social mais eficaz, as autoridades governamentais da cidade sem nome, encarregam-se de difundir mensagens optimistas – censura de informação – na tentativa de acalmar os ânimos. E, desta forma, se constitui uma sociedade composta por cegos alegremente envoltos numa luminosidade nublada.

Para estes a cegueira não era viver banalmente rodeado de trevas mas no interior de uma glória luminosa...


Esta luminosidade seria o paliativo da sociedade de consumo onde os média vendem uma ilusão glamurosa, baseada em mensagens douradas e vazias de conteúdo, com o objectivo de expurgar toda uma população de capacidade de raciocínio e sentido crítico.

Por outro lado, os atrasos no fornecimento das refeições (ou dos salários), a insuficiência das provisões (ou a diminuição do poder de compra) e o aumento em massa do número de pessoas internadas (desemprego) aceleram o processo de deterioração das condições de vida. Instala-se o caos, multiplicam-se fraudes e casos de extorsão. Prostituição, proxenetismo e lenocínio, em nome da sobrevivência, fazem com que as vítimas deixem de ser consideradas como pertencentes ao género humano. O domínio de um género pelo outro ou o domínio de um povo pelo outro, a subjugação do mais fraco pelo mais forte, são sintomas de um sistema judicial que se encontra em grave estado de enfermidade. Porque em tempo de crise, a sobrevivência cabe aos mais fortes, ao poder das armas. Ou do dinheiro.

A mulher do médico, cuja visão se associa a uma personalidade que a coloca próxima do ponto de vista do narrador consegue enxergar os comportamentos que os outros julgam ser impossíveis de ser observados, como se estivesse num laboratório. Apercebe-se, inclusive, dos elementos de ligação entre os que com ela partilham a mesma camarata, passando, a dada altura, a saber mais sobre as pessoas do que elas próprias. A sua lucidez permite-lhe tomar consciência de que, sozinha, não pode alterar as coisas rapidamente. A viragem da situação terá de ser feita de forma lenta e inexorável, mas nunca isoladamente. Nunca sem o apoio das massas. mas para isso é preciso combater a agnosia.

A mulher do médico, apesar de ser a única que vê realmente aquilo que se passa, mantém-se em silêncio quanto ao facto. Da mesma forma que em tempos de ditadura, aqueles que são contrários ao regime vigente têm de manter ocultas as suas convicções. Mas possui capacidade de análise e raciocínio comparativo todas as representações sociais estão contidas naquele campo de concentração-manicómio.

O mundo está todo aqui dentro.

Com a chegada de um outro personagem “ o homem da venda preta” chegam, também, notícias do exterior e a percepção de que a cegueira se generalizou a tal ponto que a sociedade inteira está à beira do colapso, fazendo com que as estruturas burocráticas político-jurídicas e económicas de desintegrem de vez. A quarentena serve apenas para obter alimentos com certa periodicidade, mas por pouco tempo. Enquanto houver para distribuir.


Na vida real, Saramago pretende, muito antes da crise actual se instalar, utilizar a metáfora do financiamento do alimentos em analogia com o esgotar dos fundos do Estado de Providência, a generalização do desemprego e da exclusão social estão condensados, inicialmente, dentro dos muros do sanatório/campo de concentração espahando-se, depois, para além dos muros que o cercam. Da mesma forma, estão implícitas fortes críticas às directivas emanadas da União Europeia desde o início dos anos 1990, com a alusão à PAC – Política Agrícola Comum –, personificada em atitudes como a do cego contabilista, encarregue de recolher e orientar o pagamento da comida pelas restantes camaratas:

(...)não se esqueceria o cego contabilista de condenar (…) o procedimento criminoso dos cegos opressores que preferem deixar que se estrague a comida a cedê-la a quem dela tão precisado está.

Por outro lado, a crise económica favorece o surgimento de actividades paralelas como o tráfico humano. As mulheres tornam-se o alvo mais fácil, uma vez que, por razões históricas de exclusão das esferas do poder e de autonomia económica, estão em situação mais vulnerável – de notar que tiveram de se prostituir para se alimentarem a si mesmas e aos seus homens e que estes as encorajaram a fazê-lo logo após se lhes terem esgotado os objectos de valor ou, pelo menos, não se opuseram. Uma espécie de cobardia, instalada também por razões culturais ou históricas: é mais fácil entregar o corpo alheio ao sacrifício do que enfrentar as feras e revoltar-se, enfrentando a prepotência em nome da justiça.

Violações e Infidelidades

Em relação aos comportamentos sexuais desempenhados pelas personagens arquetípicas ou, se quisermos alegóricas, de Ensaio sobre a Cegueira, vemo-nos diante de situações extremas que fazem emergir o lado mais animal do ser humano enquanto espécie, ou por outro lado o tempramento magnânimo consoante o temperamento de cada um enquanto sujeito individual. Comecemos pela mulher do médico - um ser atípico. Em circunstâncias normais do quotidiano, uma infidelidade conjugal, ainda que pontual, poderia abalar uma relação estável. Mas as circunstâncias em que ocorre o episódio de atracção sexual entre o médico e a rapariga de óculos escuros, em que a esposa está demasiado ocupada em salvar a humanidade, ou pelo menos, a protegê-la de uma crise sem precedentes, faz com que quase não tenha tempo ou disposição para a intimidade. A faceta de mãe da humanidade e o sentido de responsabilidade social sobrepõem-se à faceta de mulher-fêmea, o que faz com que encare o episódio com bastante mais indulgência do que o que seria habitual. A atracção entre o médico e a rapariga dos óculos escuros ocorre, precisamente, quanto a relação entre ambos esfria um pouco em termos sexuais. O médico, na opinião de Maria do Rosário Fardilha, também não se sente confortável na situação de dependente face aos cuidados da mulher o que contribui um pouco para que se crie alguma distância entre ambos. É um facto que, a partir do momento em que a mulher passa a cuidar do marido como se de uma mãe se tratasse, se cria uma espécie de barreira face ao papel de amante , o qual passa, durante algum tempo, para segundo plano. Quanto ao médico e à rapariga dos óculos escuros, o sentimento de culpa e o da vergonha não deixam de estar presentes. Nenhum deles deseja que a mulher do médico se aperceba do que sucedeu, porque a amam.

José Saramago introduz, aqui, uma interessante parábola relativa à especificidade e às circunstâncias em que se processam a ocorrência de uma relação extra-conjugal criando, ao mesmo, tempo uma intertextualidade com o Génesis e a noção do Pecado Original, mas fazendo ver aos homens que se libertam da cegueira da ignorância que qualquer transgressão, sobretudo nas relações pessoais tem ser olhada e avaliado à luz de cada caso concreto e não ao abrigo de convenções obsoletas.


Já o episódio do estupro colectivo, ou da concretização do acto sexual sob coação, é apresentado com todas as cores do grotesco. O objectivo é o de causar asco no leitor e consequente repúdio por todo o acto sexual que não resulte directamente do desejo e da livre vontade de todos os intervenientes.

A violação é usada em Ensaio sobre a Cegueira como forma a mostrar o repúdio pela violência de género, pelo tráfico humano e pela tradição do uso a violência sexual como imposição do domínio do género feminino pelo masculino. Como contraponto, Saramago utiliza o recurso do silêncio na obra, que Fernando Meirelles utiliza – e muito bem – em Blindness para sublinhar a humilhação do género feminino na cena em que as mulheres da primeira camarata lavam o corpo de uma companheira, morta em consequência das sevícias sofridas pelos membros da camarata opressora.

A própria relação entre os membros das diferentes camaratas assemelha-se àquela que se estabelece entre os diferentes estados, cuja acção é ditada pelos respectivos regimes políticos.

O Autor aborda este tema ao descrever uma situação agudizada ao extremo onde o ponto de viragem só se dá quando a mulher que vê encontra aliados activos. Sobretudo com a entrada em cena do velho da venda preta o qual toma a dianteira no sentido de, colocar-se na linha de frente e ao lado da mulher do médico, a encabeçar uma revolução que fará valer os direitos dos mais vulneráveis. A frase paradigmática que faz emergir esta atitude e se torna o sentimento dominante na maioria dos habitantes da primeira camarata é a de que

Sempre houve quem enchesse a barriga com a falta de vergonha.

Destruição /reconstrução


A revolução culmina com a destruição pelo fogo. O manicómio, ou campo de concentração onde estão detidos os cegos, desfaz-se em cinzas e a humanidade ressurge. Como a Fénix. As intertextualidades presentes relacionam-se não só a figura da mitologia clássica, mas também com o livro do Apocalipse onde a velha ordem é destruída pelo fogo que actua como elemento purificador.
A súbita libertação destes “cegos”, aprisionados numa sociedade cheia de contradições, despoleta um período de transição, readaptação e reorganização, marcado inicialmente pela total anomia ou desordem. O sentimento de insegurança paira sobretudo naqueles que até aí sentiam uma segurança relativa, apesar das privações, mas tinham o mínimo, garantido por um estado de providência, mas que mal dava para se manterem vivos.
As sociedades, cegas pela ignorância e pela alienação não sabem, normalmente, viver em regime democrático, porque não têm consciência política, sentido crítico ou responsabilidade cívica: “Numa sociedade de cegos, governada também por cegos, a humanidade ao habituar-se a viver sem olhar, deixará de ser humanidade.”


E que “Se a vítima não tiver direitos sobre o criminoso, deixará de haver justiça; deixará de haver humanidade.”

A mulher do médico, após a libertação do manicómio, continua a exercer o seu papel de provedora daqueles que lhe são mais próximos durante os momentos mais críticos.


As casas – O regresso

Os habitantes da primeira camarata regressam do exílio às suas casas mas nada está como antes. O tempo exerceu a sua acção sobre as coisas e sobre as pessoas. As casas estão desabitadas, ocupadas por outros habitantes ou sofreram a degradação dos elementos, falta de cuidados ou, simplesmente, a pilhagem.
Uma cena curiosa é aquela em que os elementos do grupo dialogam com o escritor que ocupa a casa do primeiro cego e recorre a informadores qualificados quando não tem elementos para completar as suas descrições. As visitas do grupo são-lhe úteis para o desenvolvimento da obra. Um alter-ego de Saramago, a colocar-se discretamente como uma personagem periférica.

A casa do médico e da mulher é aquela que se encontra em melhores condições porque inviolada. A chegada do grupo a casa do médico e da mulher assemelha-se à chegada dos eleitos à Terra Prometida, à terra do “leite e do mel”. Lá, encontram água potável armazenada, que acompanha os alimentos que a mulher do médico conseguiu retirar de um supermercado. A água sacia-lhes a sede e a chuva que cai lava-lhes a alma. A água é usada como recurso estilístico a simbolizar a limpeza da alma e a sua revitalização. Para as mulheres, a chuva lambe-lhes as feridas do corpo e da alma, uma vez que a água, ao contrário do fogo, purifica sem destruir.

Pausa na Igreja

A pausa na igreja para um momento de descanso, após a ida ao supermercado, introduz um episódio de conteúdo algo surrealista – aliás toda a obra, porque alegórica, simbólica, acaba por revestir-se de um carácter algo surrealista – em que todas as esculturas e imagens pictóricas estão de olhos vendados. Aliás os olhos das imegens encontram-se cobertos por uma venda branca, na tentativa de imitar a cegueira que afecta a humanidade. Para o Autor, As imagens vêem com os olhos que as vêem e como os olhos humanos são incapazes de ver ou de discernir, o autor da façanha terá pensado que seria justo que os santos tivessem a mesma sorte que os humanos. Esta ideia provém da convicção de Saramago é da opinião que os deuses são construídos à imagem e semelhança do Homem e não o contrário, uma vez que o Autor vai beber a maior parte das suas concepções ideológicas ao Século das Luzes, muito ao estilo de Voltaire, Renan ou Rabelais ao qual mistura o humanismo de Victor Hugo.

Deste episódio decorre a ideia de que os deuses são indiferentes ao destino dos homens e o acto “sacrílego” de colocar uma venda branca proviria de alguém, segundo o narrador, com um espírito crítico e sentido humanitário muito vincados tendo-o executado o acto antes de cegar – se é que chegou a cegar.
Dentro do grupo que se abriga na casa do médico e da mulher, as reacções ao acto são o mais variadas possível. Mas as opiniões expressam-se livremente, são analisadas e integradas. A casa é o lugar onde se albergam a Liberdade e o Respeito pela Diferença.

Então, de um momento para o outro – e não é por acaso – um por um, começam a recuperar a vista. Fazem-no, apenas e só, a partir do momento em que a Humanidade, ou pelo menos parte dela, atinge um estágio de maturidade que lhes permite agir de forma construtiva.

O pensamento dominante no último parágrafo do romance é, precisamente, aquele que confirma a hipótese da agnosia psicológica, proposta logo no início: a de que, na realidade, ninguém cegou realmente e que, a humanidade, salvo raríssimas excepções, continuará cega ou atravessará períodos em que a incapacidade de discernimento pela alienação a atingirá com a mesma violência das grandes catástrofes naturais.

A escrita de Saramago

A escrita de José Saramago em Ensaio sobre a Cegueira é feita ao correr do pensamento. Assemelhando-se mais a um relato e tem nela impregnadas muitas marcas da oralidade. Os diálogos são entremeados com o discurso indirecto, sucedendo-se as diferentes vozes separadas por vírgulas e maiúsculas, o que acelera de forma vertiginosa quer a narração quer a leitura.

Chamem a polícia, gritavam, tirem daí essa lata. O cego implorava, Por favor, alguém me leve a casa. A mulher que falava de nervos foi de opinião que se deveria chamar a ambulância, mas o cego disse que isso não, não queria tanto, só pedia que o encaminhassem até à porta do prédio onde morava, Fica aqui muito perto, seria um grande favor que me faziam.”

Trata-se de um estilo de narrativa onde se fundem as vozes do narrador e as das personagens. O efeito daí resultante é a transmissão da Babel de vozes que traduzem o pânico vivido, onde todos falam e ninguém ouve. O ponto final que nesta cena marca uma pausa silenciosa, em oposição ao ruído.

O Autor recorre a diversas figuras de estilo como a parábola, a metáfora e a ironia, enriquecendo o conteúdo da obra, já de si complexo, dotando-o assim de múltiplas significações:

No fim de contas não é assim tão grande a diferença entre ajudar um cego para depois o roubar e cuidar de uma velhice caduca e tatebitate com o olho posto na herança.

Ou o paradoxo:

Fazemos dos olhos uma espécie de espelho virado para dentro, com o resultado de muitas vezes, mostrarem eles o que estávamos negando com a boca.

As intertextualidade com a Bíblia são, como já vimos, mais do que muitas. Para além destas nota-se a influência de Victor Hugo no paralelismo que se pode estabelecer em Os Miseráveis, presente sobretudo na linguagem que apela à solidariedade ou à condenação: “os pobres infelizes” ou “a camarata dos malvados” . ´

A influência maior parece ser, no entanto, a de Albert Camus, sobretudo no desenvolvimento estrutural da trama. Aí encontramos uma nítida inspiração na obra do autor franco-argelino, A Peste, também ela uma alegoria, mas neste caso, denunciadora de um flagelo ideológico


A descrição dos momentos de maior abjecção dentro do manicómio onde são depositados – ou exilados – os primeiros cegos – é ajudada por inúmeras sinestesias fazendo lembrar uma pintura representativa do inferno pelo pintor Hyeronymous Bosch, povoada dos monstros que habitam a mente humana, aprisionados no inconsciente e de cuja ignorância ou inconsciência faz de todos nós cegos perante as aittudes dos outros e das nossas.


Para o Autor este é o livro que traça um retrato fiel da essência do Homem: porque


É desta massa que nós somos feitos: metade de indiferença, metade de ruindade.



Cláudia de Sousa Dias

22 Comments:

Blogger Maria do Rosário Sousa Fardilha said...

Continuo a achar espantoso o teu trabalho___ de leitura atenta, de pesquisa, de significação. e depois, a tua generosidade na partilha. coisas raras, Cláudia. Beijo enorme

6:42 PM  
Blogger Au chocolat said...

Que crítica literária excelente. Não tenho mais palavras, 5*

10:47 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

Beijo para ti tb, minha querida. Tudo de bom o obrigada pela tua presença.

CSD

10:09 AM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

Au chocolat, obrigada...pelas palvras!

:-)


Croissants, são uma das minhas tentações irresistíveis. Sobretudo quando tenho oportunidade de passar no Chiado...


csd

10:15 AM  
Blogger Au chocolat said...

Querida Cláudia,

Muito obrigada pelo carinhoso comentário no meu blog. Também adoro os croissants da Bénard, só é pena o serviço deixar um pouco a desejar. Durante 6 meses da minha vida trabalhei num escritório na Rua Anchieta, Chiado, rua que vai da Bertrand até ao Governo Civil de Lisboa, rua onde fica a loja Vida Portuguesa. Foram bons momentos da minha vida, adorei trabalhar naquele local, mesmo no coração da cidade, e claro, perdi a conta ao número de vezes que fui degustar aqueles deliciosos croissants com chocolate... Sabiam-me pela vida.

À semelhança do comentário da Maria, acho sublime a imensa dedicação e generosidade de partilha dos conhecimentos tão vastos e interessantes da Cláudia. É um verdadeiro privilégio poder ler as suas críticas literárias.

10:39 AM  
Blogger Carlos Pires said...

Só indiferença e ruindade? Há tantos outros componentes! E as porções da mistura estão longe de ser iguais em todas as pessoas... Seja como for, não li o livro mas essa simplificação não o impede certamente de ser bom.

12:26 AM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

Entendo-o perfeitamente,Carlos.

Mas também entendo Saramago.

O seu ponto de vista aplica-se a uma sociedade onde tudo corre segundo a normalidade.

Mas experimente, colocar a mesma humanidade numa situação extrema onde imprera a fome. E veja se o egoísmo não se coloca em primeiro plano.

Senão, que dizer daquelas pessoas cujo avião se despenha no meio de uma cordilheira, como secedeu há uns atrás, e os poucos sobreviventes chegaram a alimentar-se de carne uns dos outros. Então também me pode dizer que o filme "A estrada" e o livro que lhe deu origem também não é um bom livro.Ne um bom filme, porque apcalíptico e pessimista em relação à natureza humana.

E então como expplicar o antisemitismo generalizado durante o período do nazismo no país mais culto da europa?

E certo que nem todos partilharam do mesmo sentimento patológico ou grau de patologia de Hitler, Himmler, Goering entre outros, mas o ódio a determinadas etnias como os judeus e os ciganos era generalizado. E a indiferença o sentimento dominante.

Mas para julgar o trabalho de Saramago não basta ler o meu artigo. Convém ler o livro primeiro.

CSD

10:39 AM  
Blogger Carlos Pires said...

Cláudia:

Claro que para avaliar um livro é preciso lê-lo primeiro. Por isso, eu falei da ideia isolada e disse que isso não implicava que o livro fosse mau.

Relativamente ao que as pessoas fazem em situações extremas... Os casos que referiu não podem ser ignorados. Mas em casos semelhantes sucedeu que nem todas pessoas se comportaram assim. Primo Levi descreve a barbaridade imensa dos campos de concentração nazis em "Se isto é um homem", mas não deixa de assinalar algumas excepções: pessoas, como Lorenzo, que não perderam a sua humanidade (ver aqui, por exemplo).

Quanto à "Estrada" - tanto o livro como o filme são terrivelmente realistas e pessimistas, mas mesmo assim não mostram que todas as pessoas se portem do mesmo modo: há algumas excepções, e o final, embora não seja propriamente esperançoso, não mostra as pessoas que são excepção a morrer - sugere que há uma possibilidadezinha pequena de sobrevivência e de melhoria).
Já agora: escrevi sobre a Estrada aqui e aqui. Tendo em conta o que escreveu, talvez as considerações que aí fiz lhe possam interessar.

5:02 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

vou dar uma espreitadela aos seus artigos, Carlos.

Ainda não li Primo Levi.

Mas é verdade. Também em Saramago há excepções: a mulher do médico e aqueles que a escolhem como líder, na primeira camarata.


:-)

um abraço.


CSD

5:09 PM  
Anonymous Anonymous said...

Como sempre, a interpretação e a análise que faz são um regalo. Obrigada pela partilha!
Esta obra-prima é imperdível.

10:02 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

Obrigada, djanb.

o seu blogue também está muito interessante.

csd

1:01 PM  
Blogger Elipse said...

Muito boa a tua longa dissertação, que é também uma análise polivalente.
A obra, aliás, tem pano para mangas... e tu costuras a rigor.
Beijo.

1:28 AM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

Obrigada, Elipse um beijinho.


;-)


CSD

10:25 AM  
Blogger Violeta Extravagante said...

Confesso que li a sua critica na diagonal. Prometo voltar para ler melhor, ou seja para degustar por um lado e aprender por outro.
Gostei muito do livro - é um dos livros da minha vida. Curiosamente também gostei da versão do filme.

Abraceijo Claudia, gostei muito.

1:00 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

Obrigada, Violeta.


Um grande beijinho


csd

1:24 PM  
Blogger Mónica said...

mas isto é mm um blogue sério :DD peço desculpa mas é mta letra apesar do tema ser interessante e um privilégio estar aqui disponivel.. vi o filme e gostei, n vou ler o livro. vou ler/ver é o resto dos posts

2:38 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

Obrigadfa, Mónica...são de facto posts de muita letra...

:-D

csd

11:57 AM  
Blogger -pirata-vermelho- said...

Apesar da surpresa anunciada tenho que reconhecer o 'alcance' deste trabalho.´
Um abraço, querida Claúdia. Parabéns

7:56 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

Obrigada, Pirata.


csd

10:07 AM  
Blogger Totoia said...

Não consigo acabar de ler este livro, é muito duro, retrata-nos com uma crueldade que me assusta. Reconheço o génio de Saramago na obra, lamento é não ter a coragem de acabar o livro.

2:15 AM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

é verdade...mas eu, em contrapartida ardia para ver o final e sair da dita "cegueira branca"...

:-)

um beijinho


csd

10:54 AM  
Blogger Bárbara said...

Olá Cláudia,

Adoro o seu e-mail. Tenho aprendido imenso, e tirado imensos bons livros indicados por si.
Preciso da sua ajuda, caso saiba.
O José Saramago refere diversas vezes do livro dos Conselhos. Que livro é esse?
Beijinho e felicdades

1:14 PM  

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