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Sunday, July 31, 2016

"A Terceira Miséria" de Hélia Correia (Relógio d'Água)




A obra da consagradíssima escritora Hélia Correia, uma das melhores escritoras das primeiras décadas deste século e de todo o século anterior, está dispersa por vários géneros literários, destacando-se a escrita em prosa, a qual se desdobra em romance, conto, novela. Mas também o teatro, a literatura infanto-juvenil e, por fim a poesia, não escapam ao seu ímpeto criativo. E, apesar de este último género literário ser aquele que conta, até ao momento, com menos publicações, a escrita poética de Hélia está sempre presente, inscrita no seu discurso, oral e escrito, até mesmo sob a forma de prosa.

Antes de A Terceira Miséria a autora havia apenas publicado um livro de poesia em forma de díptico A Pequena Morte/ Esse Eterno Canto (1986) em parceria com o poeta Jaime Rocha, seu companheiro, e, quase duas décadas depois, outro livro de poesia intitulado Apodera-te de Mim (2002). Dentro do género ficção, publicou as novelas O Separar das Águas (1981), Villa Celeste (1985) e Soma (1987) mais tarde reunidas no volume O Separar das Águas e outras Novelas (2012). É, no entanto, no romance que a sua produção literária se tem tornado mais profícua, contando com um vasto currículo publicado no âmbito deste género literário: O Número dos Vivos (1982) Montedemo (1983), A Fenda Erótica (1988), A Casa Eterna (1991), Insânia (1996), Lilias Fraser (2001, Prémio de Ficção PEN Clube 2001 e Prémio D. Dinis 2002), Antártida de Mil Folhas (2001) Bastardia (2005 e Prémio Máxima da Literatura 2006), Adoecer (2010, Prémio Fundação Inês de Castro e Prémio Especial do Júri Máxima de Literatura, 2011). Tem ainda dois volumes de contos publicados até à à data: Contos (2008) e Vinte Degraus e Outros Contos (2014, Grande Prémio do Conto Camilo Castelo Branco, 2014), estando ainda vários deles dispersos por antologias e revistas literárias como a Granta Portugal e a Egoísta. Também o drama a seduz, tendo publicado a trilogia inspirada na Antiguidade Clássica Perdição, Exercício sobre Antígona (1991), O Rancor, Exercício sobre Helena (2000) e Desmesura, Exercício com Medeia (2006), Florbela (1991), O Segredo de Chantel (2005) e A Ilha Encantada (2008). A Terceira Miséria (2012) é o livro que a confirma como poeta, pelo qual recebe o Prémio de Poesia PEN Clube 2012 e o Prémio Correntes d'Escritas 2013. Este é o ano em que recebe também o Prémio Vergílio Ferreira pelo conjunto da sua obra. É ainda agraciada, em 2015, com o Prémio Camões.

Hélia Correia é licenciada em Filologia Românica e mestre em Teatro da Antiguidade Clássica o que terá influenciado largamente a sua escrita sobretudo no âmbito do teatro e da poesia. O livro de que hoje falamos, A Terceira Miséria, emana directamente influência da literatura clássica, já que surgiu como homenagem à Grécia, à cultura grega, enfatizando a respectiva importância na memória histórica que sustenta o edifício cultural e civilização europeia, numa altura em que a mesma Europa decidia impor pesadas sanções económicas àquele país. O livro surge, assim, como forma de protesto, numa atitude reactiva às política tecno-burocratas que lançaram centenas de milhares de pessoas para a pobreza e o desemprego, despoletando uma vaga de imigração apenas comparável à que sofreria Portugal, cerca de dois anos depois.

O livro A Terceira Miséria consiste numa obra composta por um único poema, dividido em trinta e três fragmentos, que brota da necessidade dar resposta à questão que assombrava o Eu da poeta: para que servem os poetas em tempos de indigência? O que equivale a interrogarmo-nos para que serve a cultura, a filosofia, a estética, as artes, a procura do conhecimento pelo puro prazer, sem ter em vista fins utilitários ou critérios económico-financeiros. É, pois, a este conflito que pretende dar resposta este livro composto por um único poema, cuja tónica do discurso é em si uma catarse (como afirma a autora no discurso de agradecimento na altura da entrega do Prémio Correntes d'Escritas na Póvoa de Varzim1) alicerçada no diálogo inter-textual entre o sujeito poético e os poetas e pensadores ao longo de várias épocas históricas, desde a Antiguidade Clássica passando pelo Romantismo, Modernismo e pós-Modernismo. Este recurso à intertextualidade permite ao sujeito poético a construção de um discurso polifónico onde, na voz do locutor, ecoam vozes de outros poetas, filósofos, historiadores, artífices da palavra, que vão surgindo com uma intencionalidade à qual nunca é alheio o discurso político que a questão lançada inicialmente convoca e que está já muito longe de dizer apenas respeito à Grécia ou à Europa. O diálogo inter-textual com poetas e filósofos, à semelhança da viagem no tempo efectuada pela personagem Orlando de Virginia Woolf, ao transpôr barreiras geográficas e temporais, é a pedra de toque necessária à construção do discurso poético de A Terceira Miséria exprimindo-se nas alusões a Plutarco, Tucídides , Ésquilo, Hölderlin, Nietzsche, Byron, Llansol, Wescott (que o blogger Camel&Coca-cola se encarrega de explorar aqui2). Não nos vamos deter aqui a explorar as intertextualidades, fragmento a fragmento, como já fizeram outros autores que aqui referenciamos, mas optaremos por ligar a mensagem poética numa leitura mundana à conjuntura social e política cujo desenrolar parece dar origem a uma preocupante configuração da realidade a afectar todo o planeta.

O título do livro pressupõe o desdobramento de uma perspectiva tripartida da qual se pode olhar o significado da palavra “miséria”, que assume três rostos: o primeiro, refere-se ao sentimento de abandono experimentado pelo homem face à deserção, ao abandono dos deuses, que o deixam à mercê do seu destino; o segundo, representa a morte dos mesmos deuses pelo facto de os homens se cansarem do seu silêncio cessando, consequentemente, de os procurar; e, por fim, o terceiro rosto da miséria, na sua expressão mais nefasta e absoluta, será o esquecimento, o desvanecimento, que se manifesta, na sua forma mais extrema, pela destruição de símbolos e santuários que preservam essa mesma memória ancestral (bibliotecas, museus, livros), ou seja, o apagamento da História. A principal consequência para a Humanidade deste estilhaçar da memória será a perda da identidade (vide pg. 29):

A terceira miséria é esta, a de hoje.
A de quem já não ouve nem pergunta.
A de quem já não recorda. E, ao contrário
Do orgulhoso Péricles, se torna
Num entre os mais, num entre os que se entregam,
Nos que vão misturar-se como um líquido
Num líquido maior, perdida a forma,
Desfeita em pó a estátua.

A relação entre esta forma extrema de miséria espiritual e a necessidade de instituir uma ética e estética democráticas através da cultura é invocada através do golpe de audácia de todos os que ousam não se deixar levar ao sabor da corrente, assumindo um posicionamento político marginal que, muitas vezes, parece assumir para os ditos “normais” a forma de loucura, como Hölderlin ou Nietzsche,(o primeiro, vítima do abandono dos deuses e o segundo, consciente da sua morte3) sendo que, quer o isolamento de um quer o pensamento divergente de outro, são vistos pelos que sempre se querem situar dentro do status quo, como a sempre incómoda loucura revolucionária, encarada, quase sempre, como uma forma afrontosa forma de hybris pelo pensamento dominante.

A Terceira Miséria é escrito um pouco antes da febre de apagamento da memória histórica que tomou como missão o DAESH na Síria e no Iraque e que fora já precedido pela actividade terrorista da Al-Qaeda e partido Taliban, responsáveis pela destruição de monumentos históricos locais num impulso de xenofobia religiosa no Afganistão, poderão ser outra das fontes de inspiração que levou a autora a escrever este livro, pois o sujeito poético assume nele o papel de pitonisa, a avisar a humanidade, tal como Cassandra de Tróia, para o perigo da destruição da memória, da história e da identidade cultural levando posteriormente à alienação. E a seguir à alienação vem a manipulação a par da escravatura. A poeta denuncia-o, como já referimos, em jeito de catarse ou mesmo como uma espécie de exorcismo face à antevisão da iminente chegada do caos generalizado veiculado simultaneamente pelo ódio que gera a divisão entre o “nós” e os “outros” e pelo excesso de avidez económica, a fim de inspirar alguma lucidez na humanidade. Como contraponto à loucura destruidora do ser humano motivado pelaganância e pela sede ilimitada de poder, Hélia Correia convoca os guardiães do conhecimento, os que indagam e exploram o universo, os criadores de Beleza, como a vanguarda numa guerra contra a indigência espiritual, mas sempre sem divorciar a estética da ética que a fundamenta, a fim de que a arte não se torne uma criação vazia de sentido. Foi precisamente este o ponto de vista enfatizado pela autora, em Fevereiro deste ano, durante uma leitura do livro na Fundação Cupertino de Miranda, em que lembrava os ouvintes de que os soldados do exército nazi levavam na mochila os poemas de Hölderlin como antídoto à extrema dureza da guerra, onde a beleza da palavra se opunha ao espectáculo de extrema miséria e fealdade da guerra. Mas os olhos de quem lia as palavras só atendiam à forma, à sonoridade, à musicalidade das palavras e não ao seu significado. A Alemanha do século das luzes tinha-se bestializado. Nesta perspectiva, a beleza palavra não se encontra aqui pois restrita ao seu conteúdo material, formal ou fonético mas visa sobretudo o alcance espiritual e emocional que, em última análise, se revela responsável pela deterioração ou não das relações dos humanos entre si e destes com o planeta, onde o ser humano no auge da sua miséria espiritual se mostra geralmente como um ser não apenas desumanizado, mas bestializado. E a mesma bestialização provém do facto de as palavras se esvaziarem do seu conteúdo. Esta relação entre pobreza material e espiritual e a bestialização da relações humanas não aparece exclusivamente neste volume da obra Heliana. Trata-se de uma correlação que surge também na escrita ficcional da autora como faz notar Anabela Martins Coutinho a propósito da novela da autora Bastardia4 (sublinhados meus):

«Hélia Correia, nesta novela, enquadra efectivamente a sua acção no campo e povoa o espaço com gente rude e triste. As suas personagens são, na fase inicial da novela, fracas de espírito e inocentes e, por tal facto, os seus atos podem podem levá-las à loucura ou à total infelicidade

É também disto que trata A Terceira Miséria, no seu estágio mais terrível, a fase que a humanidade parece estar agora a atravessar, onde a iliteracia e a pobreza espiritual instilam loucura e a infelicidade entre os homens, levando-os a desprezar os valores estéticos e éticos, inscritos na produção artística, literária e filosófica, para privilegiar o critério do utilitarismo, como dá a entender António Cabrita em “Pequenos passos para uma Ecologia política”5:

«O sublime desaparece quando a humanidade, tendo sido lançada na parte mais baixa da roda da fortuna, toca o fundo. O homem torna-se mais pobre, mesmo enquanto pensa estar enriquecendo (…). No universo deste utilitarismo, um martelo vale mais do que uma sinfonia, uma faca mais do que um poema, uma chave de fendas mais do que um quadro: porque é fácil compreender a eficácia de um utensílio, enquanto que é difícil compreender para que pode servir a música, a literatura ou a arte».

São pois os guardiães das artes e das belas-letras quem detém a capacidade de demonstrar o engano a que leva a supremacia dos novos reis Midas que Hélia denuncia em A Terceira Miséria e como já o havia feito em obras anteriores, atirando para a multidão a locução polifónica em defesa nos valores primordiais arquetípicos como a Beleza, a Verdade, o Amor, o Saber e aos quais que alude, também, Cabrita ao citar Keynes:

«De fato, a produção industrial moderna eleva o nível médio sem atenuar a desigualdade entre as classes e, somando tudo, remedeia só casualmente o desconforto social».


E agora deixo-vos com esta breve interpretação sociológica e política do ethos sibilino da voz poética da musa contemporânea das letras lusas para que o eco das suas palavras reverbere como uma toada incessante e persistente como um alarme nos vossos ouvidos pelo menos até ao fim da presente década. Tenham uma boa semana.



Londres, 31 de Julho de 2016,
Cláudia de Sousa Dias

1http://bibliotecariodebabel.com/geral/helia-correia-ao-receber-o-premio-casino-da-povoa/
2http://camelecocacola.blogspot.co.uk/2012/03/helia-correia-terceira-miseria.html
3https://mjcantinho.com/2016/05/29/a-terceira-miseria-de-helia-correia/
4http://revistas.ua.pt/index.php/formabreve/article/viewFile/2800/2625

5https://caliban.pt/pequenos-passos-para-uma-ecologia-pol%C3%ADtica-ceebfa25c516#.n94n3oyhj

2 Comments:

Blogger M. said...

Li, salvo erro, A Casa Eterna, há muitos anos e lembro-me de ter gostado. Tenho de voltar à Hélia um dia destes!
Fantástica resenha, com sempre!
Beijinhos :)

11:59 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

É pena não gostares de poesia. Este é do melhor que já se publicou nos últimos dez anos.

5:43 PM  

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