"A Terceira Miséria" de Hélia Correia (Relógio d'Água)
A obra da consagradíssima escritora
Hélia Correia, uma das
melhores escritoras das primeiras décadas deste século e de todo o
século anterior, está dispersa por vários géneros
literários, destacando-se a escrita em prosa, a qual se desdobra em
romance, conto, novela. Mas também o teatro, a literatura
infanto-juvenil e, por fim a poesia, não escapam ao seu ímpeto
criativo. E, apesar de este último género literário ser aquele que
conta, até ao momento, com menos publicações, a escrita poética
de Hélia está sempre presente, inscrita no seu discurso,
oral e escrito, até mesmo sob a forma de prosa.
Antes de A Terceira Miséria
a autora havia apenas publicado um livro de poesia em forma de
díptico A Pequena
Morte/ Esse Eterno Canto
(1986) em parceria com o poeta Jaime
Rocha,
seu companheiro, e, quase duas décadas depois, outro livro de
poesia intitulado Apodera-te
de Mim
(2002). Dentro do género ficção, publicou as novelas O
Separar das Águas
(1981), Villa
Celeste (1985)
e Soma (1987)
mais tarde reunidas no volume O
Separar das Águas e outras Novelas (2012).
É, no entanto, no romance que a sua produção literária se tem
tornado mais profícua, contando com um vasto currículo publicado no
âmbito deste género literário: O
Número dos Vivos (1982)
Montedemo (1983),
A Fenda Erótica
(1988), A Casa
Eterna
(1991), Insânia
(1996),
Lilias Fraser
(2001, Prémio de Ficção PEN Clube 2001 e Prémio D. Dinis 2002),
Antártida de Mil
Folhas
(2001) Bastardia
(2005 e Prémio Máxima da Literatura 2006), Adoecer
(2010,
Prémio Fundação Inês de Castro e Prémio Especial do Júri Máxima
de Literatura, 2011). Tem ainda dois volumes de contos publicados até
à à data: Contos
(2008)
e Vinte Degraus e
Outros Contos
(2014, Grande Prémio do Conto Camilo Castelo Branco, 2014), estando
ainda vários deles dispersos por antologias e revistas literárias
como a Granta Portugal
e a Egoísta.
Também o drama a seduz, tendo publicado a trilogia inspirada na
Antiguidade Clássica Perdição,
Exercício sobre
Antígona (1991),
O Rancor,
Exercício sobre Helena
(2000) e Desmesura,
Exercício com Medeia
(2006), Florbela
(1991),
O Segredo de
Chantel
(2005) e A Ilha
Encantada
(2008). A Terceira Miséria
(2012) é o livro que a confirma como poeta, pelo qual recebe o
Prémio de Poesia PEN Clube 2012 e o Prémio Correntes d'Escritas
2013. Este é o ano em que recebe também o Prémio Vergílio
Ferreira pelo conjunto da sua obra. É ainda agraciada, em 2015, com
o Prémio Camões.
Hélia
Correia
é licenciada em Filologia Românica e mestre em Teatro da
Antiguidade Clássica o que terá influenciado largamente a sua
escrita sobretudo no âmbito do teatro e da poesia. O livro de que
hoje falamos, A Terceira Miséria, emana
directamente influência da literatura clássica, já que surgiu como
homenagem à Grécia, à cultura grega, enfatizando a respectiva
importância na memória histórica que sustenta o edifício cultural
e civilização europeia, numa altura em que a mesma Europa decidia
impor pesadas sanções económicas àquele país. O livro surge,
assim, como forma de protesto, numa atitude reactiva às política
tecno-burocratas que lançaram centenas de milhares de pessoas para a
pobreza e o desemprego, despoletando uma vaga de imigração apenas
comparável à que sofreria Portugal, cerca de dois anos depois.
O
livro A Terceira Miséria
consiste numa obra composta por um único poema, dividido em trinta
e três fragmentos, que brota da necessidade dar resposta à questão
que assombrava o Eu da poeta: para que servem os poetas em tempos de
indigência? O que equivale a interrogarmo-nos para que serve a
cultura, a filosofia, a estética, as artes, a procura do
conhecimento pelo puro prazer, sem ter em vista fins utilitários ou
critérios económico-financeiros. É, pois, a este conflito que
pretende dar resposta este livro composto por um único poema, cuja
tónica do discurso é em si uma catarse (como afirma a autora no
discurso de agradecimento na altura da entrega do Prémio Correntes
d'Escritas na Póvoa de Varzim1)
alicerçada no diálogo inter-textual entre o sujeito poético e os
poetas e pensadores ao longo de várias épocas históricas, desde a
Antiguidade Clássica passando pelo Romantismo, Modernismo e
pós-Modernismo. Este recurso à intertextualidade permite ao sujeito
poético a construção de um discurso polifónico onde, na voz do
locutor, ecoam vozes de outros poetas, filósofos, historiadores,
artífices da palavra, que vão surgindo com uma intencionalidade à
qual nunca é alheio o discurso político que a questão lançada
inicialmente convoca e que está já muito longe de dizer apenas
respeito à Grécia ou à Europa. O diálogo inter-textual com poetas
e filósofos, à semelhança da viagem no tempo efectuada pela
personagem Orlando de Virginia Woolf, ao transpôr barreiras
geográficas e temporais, é a pedra de toque necessária à
construção do discurso poético de A Terceira
Miséria exprimindo-se
nas alusões a Plutarco, Tucídides , Ésquilo, Hölderlin,
Nietzsche, Byron, Llansol, Wescott (que o blogger Camel&Coca-cola
se encarrega de explorar aqui2).
Não nos vamos deter aqui a explorar as intertextualidades, fragmento
a fragmento, como já fizeram outros autores que aqui referenciamos,
mas optaremos por ligar a mensagem poética numa leitura mundana à
conjuntura social e política cujo desenrolar parece dar origem a uma
preocupante configuração da realidade a afectar todo o planeta.
O
título do livro pressupõe o desdobramento de uma perspectiva
tripartida da qual se pode olhar o significado da palavra “miséria”,
que assume três rostos: o primeiro, refere-se ao sentimento de
abandono experimentado pelo homem face à deserção, ao abandono dos
deuses, que o deixam à mercê do seu destino; o segundo, representa
a morte dos mesmos deuses pelo facto de os homens se cansarem do seu
silêncio cessando, consequentemente, de os procurar; e, por fim, o
terceiro rosto da miséria, na sua expressão mais nefasta e
absoluta, será o esquecimento, o desvanecimento, que se manifesta,
na sua forma mais extrema, pela destruição de símbolos e
santuários que preservam essa mesma memória ancestral (bibliotecas,
museus, livros), ou seja, o apagamento da História. A principal
consequência para a Humanidade deste estilhaçar da memória será a
perda da identidade (vide pg. 29):
A
terceira miséria é esta, a de hoje.
A
de quem já não ouve nem pergunta.
A
de quem já não recorda. E, ao contrário
Do
orgulhoso Péricles, se torna
Num
entre os mais, num entre os que se entregam,
Nos
que vão misturar-se como um líquido
Num
líquido maior, perdida a forma,
Desfeita
em pó a estátua.
A
relação entre esta forma extrema de miséria espiritual e a
necessidade de instituir uma ética e estética democráticas através
da cultura é invocada através do golpe de audácia de todos os que
ousam não se deixar levar ao sabor da corrente, assumindo um
posicionamento político marginal que, muitas vezes, parece assumir
para os ditos “normais” a forma de loucura, como Hölderlin ou
Nietzsche,(o primeiro, vítima do abandono dos deuses e o segundo,
consciente da sua morte3)
sendo que, quer o isolamento de um quer o pensamento divergente de
outro, são vistos pelos que sempre se querem situar dentro do status
quo,
como a sempre incómoda loucura revolucionária, encarada, quase
sempre, como uma forma afrontosa forma de
hybris pelo
pensamento dominante.
A Terceira Miséria
é escrito um pouco antes da febre de apagamento da memória
histórica que tomou como missão o DAESH na Síria e no Iraque e que
fora já precedido pela actividade terrorista da Al-Qaeda e partido
Taliban, responsáveis pela destruição de monumentos históricos
locais num impulso de xenofobia religiosa no Afganistão, poderão
ser outra das fontes de inspiração que levou a autora a escrever
este livro, pois o sujeito poético assume nele o papel de pitonisa,
a avisar a humanidade, tal como Cassandra de Tróia, para o perigo da
destruição da memória, da história e da identidade cultural
levando posteriormente à alienação. E a seguir à alienação vem
a manipulação a par da escravatura. A poeta denuncia-o, como já
referimos, em jeito de catarse ou mesmo como uma espécie de
exorcismo face à antevisão da iminente chegada do caos generalizado
veiculado simultaneamente pelo ódio que gera a divisão entre o
“nós” e os “outros” e pelo excesso de avidez económica, a
fim de inspirar alguma lucidez na humanidade. Como contraponto à
loucura destruidora do ser humano motivado pelaganância e pela sede
ilimitada de poder, Hélia
Correia
convoca os guardiães do conhecimento, os que indagam e exploram o
universo, os criadores de Beleza, como a vanguarda numa guerra contra
a indigência espiritual, mas sempre sem divorciar a estética da
ética que a fundamenta, a fim de que a arte não se torne uma
criação vazia de sentido. Foi precisamente este o ponto de vista
enfatizado pela autora, em Fevereiro deste ano, durante uma leitura
do livro na Fundação Cupertino de Miranda, em que lembrava os
ouvintes de que os soldados do exército nazi levavam na mochila os
poemas de Hölderlin como antídoto à extrema dureza da guerra, onde
a beleza da palavra se opunha ao espectáculo de extrema miséria e
fealdade da guerra. Mas os olhos de quem lia as palavras só atendiam
à forma, à sonoridade, à musicalidade das palavras e não ao seu
significado. A Alemanha do século das luzes tinha-se bestializado.
Nesta perspectiva, a beleza palavra não se encontra aqui pois
restrita ao seu conteúdo material, formal ou fonético mas visa
sobretudo o alcance espiritual e emocional que, em última análise,
se revela responsável pela deterioração ou não das relações dos
humanos entre si e destes com o planeta, onde o ser humano no auge da
sua miséria espiritual se mostra geralmente como um ser não apenas
desumanizado, mas bestializado. E a mesma bestialização provém do
facto de as palavras se esvaziarem do seu conteúdo. Esta relação
entre pobreza material e espiritual e a bestialização da relações
humanas não aparece exclusivamente neste volume da obra Heliana.
Trata-se de uma correlação que surge também na escrita ficcional
da autora como faz notar Anabela Martins Coutinho a propósito da
novela da autora Bastardia4
(sublinhados
meus):
«Hélia
Correia, nesta novela, enquadra efectivamente a sua acção no campo
e povoa o espaço com gente
rude e triste. As suas
personagens são, na fase inicial da novela, fracas
de espírito e inocentes e, por tal facto, os seus atos podem podem
levá-las à loucura ou à total infelicidade.»
É
também disto que trata A Terceira Miséria,
no seu estágio mais terrível, a fase que a humanidade parece estar
agora a atravessar, onde a iliteracia e a pobreza espiritual instilam
loucura e a infelicidade entre os homens, levando-os a desprezar os
valores estéticos e éticos, inscritos na produção artística,
literária e filosófica, para privilegiar o critério do
utilitarismo, como dá a entender António Cabrita em “Pequenos
passos para uma Ecologia política”5:
«O
sublime desaparece quando a humanidade, tendo sido lançada na parte
mais baixa da roda da fortuna, toca o fundo. O homem torna-se mais
pobre, mesmo enquanto pensa estar enriquecendo (…). No universo
deste utilitarismo, um martelo vale mais do que uma sinfonia, uma
faca mais do que um poema, uma chave de fendas mais do que um quadro:
porque é fácil compreender a eficácia de um utensílio, enquanto
que é difícil compreender para que pode servir a música, a
literatura ou a arte».
São
pois os guardiães das artes e das belas-letras quem detém a
capacidade de demonstrar o engano a que leva a supremacia dos novos
reis Midas que Hélia denuncia em A Terceira
Miséria
e como já o havia feito em obras anteriores, atirando para a
multidão a locução polifónica em defesa nos valores primordiais
arquetípicos como a Beleza, a Verdade, o Amor, o Saber e aos quais
que alude, também, Cabrita ao citar Keynes:
«De
fato, a produção industrial moderna eleva o nível médio sem
atenuar a desigualdade entre as classes e, somando tudo, remedeia só
casualmente o desconforto social».
E
agora deixo-vos com esta breve interpretação sociológica e
política do ethos sibilino da voz poética da musa contemporânea
das letras lusas para que o eco das suas palavras reverbere como uma
toada incessante e persistente como um alarme nos vossos ouvidos pelo
menos até ao fim da presente década. Tenham uma boa semana.
Londres,
31 de Julho de 2016,
Cláudia
de Sousa Dias
1http://bibliotecariodebabel.com/geral/helia-correia-ao-receber-o-premio-casino-da-povoa/
2http://camelecocacola.blogspot.co.uk/2012/03/helia-correia-terceira-miseria.html
3https://mjcantinho.com/2016/05/29/a-terceira-miseria-de-helia-correia/
4http://revistas.ua.pt/index.php/formabreve/article/viewFile/2800/2625
5https://caliban.pt/pequenos-passos-para-uma-ecologia-pol%C3%ADtica-ceebfa25c516#.n94n3oyhj
2 Comments:
Li, salvo erro, A Casa Eterna, há muitos anos e lembro-me de ter gostado. Tenho de voltar à Hélia um dia destes!
Fantástica resenha, com sempre!
Beijinhos :)
É pena não gostares de poesia. Este é do melhor que já se publicou nos últimos dez anos.
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