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Wednesday, May 04, 2011

"O Desprezo" de Alberto Moravia (Ulisseia)




Tradução de Maria Teresa de Barros Brito e Prefácio de Pedro Moura de Sá

Após termos já explorado os conflitos emocionais na pré-adolescência, pelo olhar do protagonista de “Agostinho” e no grupo de pares, relacionado com a afirmação da personalidade em “A Desobediência”, debruçamo-nos agora sobre a vida adulta de um jovem casal, a partir do momento em que o amor começa a arrefecer e a transformar-se n’ “O Desprezo”. A obra mostra o génio literário de Alberto Moravia em plena maturidade, foi adaptada ao cinema por Jean-Luc Goddard tendo como protagonista feminina a diva do cinema francês Brigitte Bardot. Contou ainda com a participação especial o realizador de cinema alemão Fritz Lang. O filme e a obra literária foram, ainda, objecto de discussão em Outubro de 2010 na Biblioteca Municipal de Famalicão, no âmbito do projecto “cineliterário” (ver http://rendez-vous-arabie.blogspot.com/2010/10/o-desprezo-le-mepris-de-jean-luc.html). Trata-se de um filme que reúne vários elementos que o tornam uma obra apetecível para coleccionadores, pois aparte de a fotografia ser belíssima, beneficiando de uma excelente utilização da luminosidade de Capri, que é filtrada pela janela da excêntrica residência do escritor Curzio Malaparte, amigo quer do autor quer do realizador. Malaparte disponibilizou a casa para ser utilizada como cenário durante as filmagens, favorecendo assim o enquadramento das personagens no espaço interior. Mais tarde voltaremos ainda a falar desta casa que está também relacionada com outra obra literária adaptada ao cinema.

Nesta obra, Alberto Moravia esmera-se em explorar minuciosamente o tema da deterioração das relações conjugais, ao criar simultaneamente uma intertextualidade com o dilema emocional e afectivo da personagem Ulisses de Homero.

Com um discurso narrativo fortemente marcado pelo pensamento analítico, a trama de “O Desprezo” é desenvolvida de forma lenta, retardada por longos momentos de pausa e reflexão, descrevendo o processo gradativo de transformação de um sentimento de amor fortemente presente num casal, em desamor ou desprezo, ao sublinhar todas as cambiantes e nuances comportamentais que traduzem a metamorfose daquilo a que se pode chamar de admiração incondicional pelo cônjuge em constante apreciação crítica, obrigando a uma cada vez maior distância emocional, alimentada pelo distanciamento do casal e pelos longos silêncios que se estabelecem entre ambos e se instalam no quotidiano e envenenam lentamente a relação. O processo torna-se irreversível pelo acumular de situações incómodas e mal entendidos, já que a verdadeira causa do problema nunca é abordada pelo casal, limitando-se ambos a fazer alusões, imbuídas de ácida ironia e corrosivo sarcasmo.

A erva daninha que se instala entre o casal protagonista, o escritor e guionista Molteni e a sua bela mulher Emilia - no filme, Camille, incarnada por BB – é o assédio sexual que esta sofre por parte do produtor de cinema, Battista, supostamente interessado no trabalho de Molteni para uma adaptação cinematográfica da Odisseia de Homero. A passividade do candidato a guionista do filme face às investidas sexuais do seu cliente à própria mulher desperta a indignação na jovem, que está convencida que o marido está a usá-la como “isco” para conseguir o contrato com o produtor.

Alberto Moravia com “O Desprezo” pretende, para além de realçar a questão da exposição feminina e do assédio sexual de que são alvo as mulheres no cinema, pretende lançar a questão da prostituição da própria Arte em nome do dinheiro, das audiências e das receitas da bilheteira. Batista é um produtor que deseja fazer um filme sensacionalista, explorando o corpo da mulher, pretendendo fazer de um dos grandes clássicos da literatura mundial um desfile de mulheres nuas ou, na melhor das hipóteses, em trajos menores. Batista pretende converter o filme num espectáculo de imagética vulgar sem se preocupar se está ou não a desvirtuar a obra, entrando em conflito laboral directo com Molteni.

Na obra, há três pontos de vista distintos e relação à interpretação estética que deverá conduzir a adaptação da epopeia à Sétima Arte. A de Batista é a mais superficial de todas, ao estilo de Hollywood. Batista vê a Odisseia como um desfile de mulheres belas a exibir os seus corpos em escassas roupagens, um filme-espectáculo que se limite a causar espanto e a deslumbrar pela beleza e efeitos especiais como nos filmes de Cecil B. deMille. Esta perspectiva colide directamente com a visão psicanalítica da obra, defendida pelo realizador, Rheingold, que não suporta o novo riquismo do produtor, demasiado evidente na vulgaridade da ostentação do seu poder económico. A figura de Rheingold é interpretada no filme de Goddard por Fritz Lang. Esta personagem de Moravia opta por construir o filme segundo um olhar psicanalítico, uma corrente da Psicologia que muito influenciou o Autor em toda a sua obra. Rheingold decide, assim, explorar as motivações de carácter afectivo-sexual que fazem com que Ulisses, ou Odisseu, retarde a sua chagada a Ítaca, ao longo de mais de dez anos. O modelo de desenvolvimento da história de Rheingold é baseado na estruturação dos diferentes arquétipos que compõem a personalidade individual de Carl Jung, discípulo de Freud. Molteni tem, por sua vez, uma visão mais lírica relativamente à adaptação da obra, inspirando-se num poema de Dante Aligheri. A ele, parece-lhe que o modelo interpretativo da Odisseia proposto por Rheingold rebaixa um pouco as personagens de Homero, simpatizando mais com a visão de Dante acerca da obra, muito mais lírica e poética. A visão bipolar de Rheingold aparece-lhe como plausível mas redutora quando despojada do sublime que está inequivocamente presente nos versos de Homero. A divisão de Rheingold das personagens da obra em dois arquétipos puros e antagónicos opõe o sentimentalismo, aliado à visão algo primitiva das relações, de personagens de mente simples como Emilia e Penélope, as quais estão convencidas de que o macho deve adoptar uma atitude agressiva em defesa da fêmea, sempre que ameaçada por assediadores ou invasores da esfera conjugal. Do outro lado, temos o pragmatismo de homens como Ulisses ou Molteni, seres educados e polidos, que desvalorizam os acontecimentos que estão a perturbar as respectivas esposas. O facto de a atitude de Molteni ser interpretada como oportunismo por parte de Emilia, acaba por semear o desprezo no seio do casal, assolado pelas dívidas – sobretudo pela aproximação da data de vencimento da prestação da casa ao banco, um receio que o contrato com Batista veio acalmar.

A escrita de Moravia

Os romances de Alberto Moravia são potenciadores da volúpia de uma leitura lenta, que obriga à introspecção e, ao mesmo tempo, a que o leitor se reporte constantemente ao próprio quotidiano ou à realidade circundante. Moravia é um Autor que parte da realidade para a ficção. Ao examinarmos a obra, capítulo a capítulo, colocamo-nos na pele do narrador e, ao “ver” com os seus olhos, passamos a analisar também as personagens - e o significado dos objectos com que se relacionam - para cada uma delas.

No caso de “O Desprezo”, o narrador é participante: trata-se do próprio Molteni, que se torna um narrador omnisciente por estar a relatar os factos de um passado do qual ele conhece perfeitamente a realidade e as peças que lhe faltavam na altura em que os viveu.

Perante ele, o leitor transforma-se num ouvinte, num confidente, enquanto o Molteni, que já ultrapassou os acontecimentos, vais descrevendo os factos, as situações, a emoções que perpassam no rosto e no corpo das personagens que se denunciam ao mínimo gesto, ao mais leve tremor facial, movimento de sobrancelhas ou bater de pestanas. Também os comportamentos de repúdio ou aprovação transparecem nos movimentos corporais em Moravia que descreve toda esta complexa e subtil metalinguagem relacionando-a com os silêncios entrecortados por frases enigmáticas, os quais revelam ao leitor, a pouco e pouco, o turbilhão de pensamentos dos intervenientes. A personagem mais fascinante é sobretudo Camille/Emilia claro. É ela a mola desencadeadora inconsciente do conflito, do clima de tensão presente na trama, porque é ela quem comanda a direcção dos diálogos, entrecortando-os com os seus penosos silêncios, modulações e tonalidades de voz. Muitas vezes, esses silêncios são impostos como uma penitência ou um castigo dos deuses. Camile assume o comportamento das Deusas do Olimpo que castigam os mortais quando se convencem que a sua devoção não lhes faz justiça…por vezes uma frase sua tem, nos ouvidos de Molteni, o mesmo efeito que uma chicotada.

A escrita de Alberto Moravia é passional mas sem sentimentalismo, apesar de revestida de uma certa aura de melancolia.

Intertextualidades

A intertextualidade mais evidente na obra de que aqui tratamos é evidentemente a Odisseia, quer directa quer indirectamente, isto é quer através do objectivo do narrador ou protagonista – escrever um guião de cinema baseado na obra de Homero – que através da analogia que se estabelece entre as figuras arquetípicas da obra do poeta grego e as personagens de Moravia. Mais: a correspondência entre elas permite a aproximação das duas épocas, diluindo a fronteira histórica de mais de dois milénios e meio. Entre este dois núcleos de personagens, Moravia constrói uma trama que dá origem a um romance intemporal. Isto acontece porque as personagens são reduzidas àquilo que é o cerne das emoções que fazem parte da natureza humana, atribuindo igual dimensão quer às suas virtudes quer aos seus próprios vícios.

Desta forma, temos um Ulisses, Molteni, cuja mulher Emilia é uma espécie de Penélope, a qual deseja que o seu casamento seja como no início da sua lua-de-mel, isto é, sem que o trabalho do marido interfira no relacionamento de ambos. A viagem a Capri para a rodagem do filme será como a viagem de Ulisses a Tróia, cujo regresso a Ítaca- Roma é tão imprevisível quanto distante no tempo.

A Utilização dos Espaços

A acção decorre em dois locais distintos: a primeira parte, em Roma, ainda durante os tempos da felicidade dourada da lua-de-mel, num quarto envolto na penumbra – metáfora à visão toldada pelo amor – so dia com a luz velada. Um tempo de cegueira e de total devoção ao outro marcado pelo esquecimento face ao mundo exterior. O casal vive única e exclusivamente para o amor.

A chegada de Molteni vem arrefecer o clima romântico, e fica iminente uma partida para a ilha de Capri com o objectivo de rodar o filme. O ninho de amor é votado ao abandono e o idílio interrompido. Capri tornar-se-á uma espécie de exílio em relação ao lar, ao casamento e à actividade de escritor ou dramaturgo de Molteni, que não gosta de fazer guiões. Para ele, ser guionista é fazer um sucedâneo da escrita propriamente dita. Segundo dá a entender o Autor, Moltenio sentiria o mesmo que Ulisses ao partir para a guerra, dadas as quezílias deste com os rivais que pretendiam a mão de Penélope. Da mesma forma, Molteni entra em choque com o produtor pelas divergências de interpretação da obra que está subjacente ao filme e mudar o clima tenso da sua relação com Emilia/Camille, desviando, de forma inconsciente a verdadeira causa do problema – Batista – para a causa secundária, o ambiente saturado da cidade de Roma e a possibilidade de virem a perder a casa onde vivem.

A Cor

Capri é o lugar onde a pureza e intensidade da luz ofusca, encandeia e perturba a visão real e total dos factos, actuando como um anestésico da mente. A luz é ainda sublinhada pelo intenso azul que se espalha por toda a parte, dominando a região: no céu, na intensa cor do mar da baía de Nápoles e nas montanhas, onde até a cor dos lagartos é azul. O azul é, também, uma cor narcótica que favorece a tranquilidade e o sonho, sendo também associada à liberdade de expressão. Este é, também, um elemento que dificulta o regresso a Roma, sobretudo depois de ter encontrado em Rheingold um aliado contra Batista.

Numa das cenas finais, em visita de barco à Gruta Vermelha, o Autor cria uma descida aos infernos para o seu Ulisses contemporâneo, inferno esse onde encontra Emilia. Ao mergulhar o seu protagonista no reino de Plutão, Moravia impede-o de conseguir destrinçar completamente o sono da vigília, dando um toque de surrealismo à obra.

O final é surpreendente, dado que se afasta do final da Odisseia de Homero. Molteni acaba por deixar de lado a passividade, mas a passagem do tempo é irreversível.

O drama e a tragédia evidenciam a faceta emotiva da escrita de um autor profundamente conhecedor dos meandros da psique feminina e, sobretudo, dos grandes dilemas humanos, sobretudo daqueles que, ao não saberem lidar com as emoções, como Ulisses/Molteni se esforçam por ignorá-las, perdendo por vezes a batalha da vida. E o sabor do triunfo.

Cláudia de Sousa Dias

3 Comments:

Blogger M. said...

Já li e tenho este romance. Já vi muitas destas personagens por aí ;)
Também li e tenho "Os Indiferentes".
Beijinhos,
Madalena

6:22 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

sim, sem dúvida.
Já li "os indiferentes" também. Mas tenho-o em casa para reler.

6:23 PM  
Blogger Adriana Riva said...

Bom dia, Claudia. Ao ouvir a música tema do filme, achei o post . Não conheço o romance, mas os contos de Moravia me acompanham, assim como o cinema de Godard. A psicanálise, ofício diário. Li seus comentários, e agora busco o .livro. Abço, Adriana Riva

2:41 PM  

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