“Doze Histórias de Mulheres” – Vários (Dom Quixote)
Doze Histórias de Mulheres é uma antologia de contos que reúne várias autoras de origem Ibérica, sendo elas seis de origem Portuguesa e seis de origem espanhola.
Estas mini-histórias tratam, sobretudo, de explorar emoções e comportamentos humanos que são, na sua maior parte, inerentes à cultura dos Países Ibéricos e que foram sendo cristalizados no inconsciente colectivo pelas contingências da História.
Os dois contos iniciais chegam-nos do país vizinho pela pena de Carme Riera – A Reportagem – e Esther Tusquets – As subtis Leis da Simetria. Trata-se de duas histórias que mexem com os tabus sexuais numa sociedade ainda muito condicionada pelo peso do catolicismo. A história de Carme Riera diz respeito a uma pequena comunidade na ilha de Maiorca, onde o leitor toma contacto com a forma violenta como aquela sociedade, fechada e profundamente tradicional, reage à transgressão. Talvez aquilo que mais choque o leitor (desprevenido) nos dias de hoje seja o notório peso da culpa que se sente nos obstinados silêncios com que os habitantes da ilha respondem sempre que questionados sobre uma tragédia ocorrida cerca de quarenta anos antes e sobre a qual ninguém se quer pronunciar: reina, ali, uma espécie de Omertà siciliana. Trata-se, no entanto, de uma história assaz suculenta, que agarra imediatamente o leitor com as suas frases enigmáticas, povoadas de subentendidos, dando origem a uma irresistível envolvente de mistério. A atmosfera criada por Carme Riera tresanda a transgressão, implícita na forma como as personagens secundárias tentam, a todo o custo, ocultar os factos. Um conto que fala de conflito entre culturas, da agressão aos costumes locais por forasteiros, do medo da exposição e quebra dos padrões de conduta social.
Esther Tusquets, aborda a problemática daquilo que se pode considerar como adultério dentro de uma relação, quando as regras entre o casal não estão bem definidas ou são subitamente alteradas por um dos cônjuges. Ou de como o peso da tradição judaico-cristã se impõe ainda quando alguém se quer assumir como "à frente do seu tempo". Outro aspecto a realçar é a lucidez expressa pelo narrador no tocante à percepção do momento exacto de quando deve uma relação acabar para, de imediato, ser colocado, de forma taxativa e irrevogável, um ponto final. O narrador apresenta um discurso profundamente emotivo, contado na primeira pessoa. Poderá parecer um texto algo caótico na forma, mas exibe, no entanto, um preciosismo extremo quando se trata de descrever as nuances que compõem cada estado de alma em particular, ou de elaborar um quadro de emoções comparável apenas à forma como os grandes génios da pintura manipulam a cor. O tema central é, nada mais, nada menos, do que a lei do boomerang nas relações afectivas. Um brilhante trabalho de introspecção contado, inteiramente, numa óptica psicológica em que o leitor se sente como psicanalista que ouve o paciente no divã.
Seguem-se as seis autoras portuguesas. A começar por Helena Marques que nos apresenta A Mulher sem Rugas onde o discurso do narrador nos dá a conhecer uma personagem feminina, Vera, casada com o trabalho, emancipada, independente, mas sem descurar a sua feminilidade, tratando da manutenção da sua beleza e forma física com um zelo quase obsessivo, enquanto pensa no relógio biológico e num amor que transcende convenções. A mensagem do conto é a de que o stress causado pelo trabalho acelera o processo de depreciação da beleza feminina. O silogismo poderá ser questionável (ou não, pelo menos na parte psicológica), mas o texto exibe uma elevada mestria no domínio da narrativa, sobretudo quando descreve o estado interior de uma mulher obcecada pela perda da juventude e do amor, ou da forma impactante como conclui o conto na cena final, durante uma viagem de comboio.
Inês Pedrosa expõe um tema muito semelhante ao apresentado por Esther Tusquets, mas sob a perspectiva de um narrador autodiegético, isto é, um narrador que conta uma história onde é, também, personagem, no conto intitulado Como de Costume. No entanto, não se trata de um narrador omnisciente pois este não consegue entrar na mente daqueles a quem observa, limitando-se a captar apenas a componente externa das atitudes.
Segue-se a prestigiadíssima Lídia Jorge que expõe, em À Flor do Beijo, a revoltante desigualdade de oportunidades e, simultaneamente, a facilidade com que se pode defraudar as pessoas mais ingénuas ou inexperientes, num texto que disseca, de forma extremamente verosímil, o contexto da génese da exploração do trabalho infantil, aliado a formas mais obscuras de comércio. Um texto que trata a problemática da dificuldade em ultrapassar uma idade de transição para a vida adulta e o abandono escolar em idade precoce por pressão familiar. Uma visão sociológica da realidade. Um relato acutilante.
Luísa Costa Gomes conta-nos Uma História muito longa e imbricada, uma mini-sátira, a brincar com o saudosismo tipicamente português relativo ao período imperialista, através das actividades de um grupo de pseudo guias-turísticas, constituído por um endiabrado bando de rapariguinhas do liceu. Estas divertem-se distorcer os factos históricos e a inventar peripécias de forma a iludir o tédio nos tempos livres. Uma visão psicossocial que nos é dada pelas diferentes reacções dos turistas das mais diversas nacionalidades face às patranhas históricas contadas pelas divertidas “diabinhas”. A Autora constrói, um caleidoscópio de estereótipos sociais, baseado nas reacções características de cada grupo.
Seguem-se os dois melhores textos desta mini-antologia de contos. São eles da autoria de Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, duas das controversas autoras de As novas Cartas Portuguesas.
O Azul-Cobalto de Maria Teresa Horta é uma história arrepiante que se lê de um só fôlego. Trata-se de uma escrita obsessiva, ou mesmo, maníaco-depressiva, traço fundamental da protagonista e narradora. É uma história sobre a privação dos afectos na infância e das suas consequências nefastas numa personalidade adulta. A genialidade do conto está, não só, na escrita de MTH, mas sobretudo no encadeamento dos acontecimentos. Carência. Obsessão. Abandono. Loucura. Causa e consequência. Como se se accionasse um mecanismo. A fatalidade está presente logo na primeira frase. E ao longo do texto in crescendum até atingir o clímax no final.
A Prima Odília de Maria Velho da Costa é inspirada nos dois arquétipos do feminino, presentes no conto tradicional russo O Lago dos Cisnes que deu origem ao bailado de Tchaikovsky com o mesmo nome: Odette, a mulher-anjo, luminosa, ideal, solar; Odília, sombria, austera, lunar. O dia e a noite. Mas os arquétipos estão, na verdade, invertidos no tocante à sensualidade, figurando aqui uma caracterização de cada um que teria mais a ver com arquétipos da cultura clássica - Odette aparece como uma figura apolínea ou afrodisíaca na sua beleza perfeita, tão etérea que se torna quase angélica, e Odília, um ser dos infernos, triste, sombrio, profundamente terreno, mas lembrando Perséphone, ou outra criatura do Hades. A narração é feita, mais uma vez, na primeira pessoa, mas por uma personagem masculina. Mas este protagonista masculino de MVC revela muito mais acerca de si próprio assim como de tudo e de todos os que gravitam à sua volta, à medida que progride na narrativa. O ambiente do início do sec. XX , pouco antes da Primeira Grande Guerra, é aqui, magnificamente recriado tanto ao nível do guarda-roupa, como da decoração, da própria casa, hábitos da época, preconceitos, etc. Mas o mais importante é perceber em que consiste para o protagonista o amor ideal que é tudo menos aquilo o que lhe foi destinado.
E voltamos às autoras de nacionalidade espanhola.
Montserrat Roig descreve, em Before the Civil War uma party em estilo dos anos setenta, num lugar para onde convergem uma enorme variedade de culturas e nacionalidades. Um ambiente representativo de uma sociedade algo caótica, semelhante a uma micro-babel, onde são focadas as dificuldades de integração e de identidade para aqueles que são o produto de várias culturas.
Ofélia Grande de Andrés conta-nos a História do Porque não me chamo Concepción como a minha Avó. A busca das raízes e a reconstituição do passado com uma nota de nostalgia e de romance. É o mais romântico de todos os contos da obra.
E, por último, duas histórias que tocam a problemática da violência.
Rosa Montero aborda a questão dos mal-amados que acabam por se transformar em excluídos sociais, fazendo lembrar, por vezes, um filme de Almodóvar com a insólita História de Paulo Pumilio, o arrogante e mal-querido anão que despreza a feiúra e as fraquezas humanas. Uma história também contada na primeira pessoa a falar das injustiças da Justiça pelo ponto de vista de um psicopata, uma hiena, animal que sempre se mostra fraco com os fortes e forte com os fracos.
A visão de Soledad Puértolas foca o mesmo problema, na vertente psicológica mas situado ao nível da classe média-alta. É a história do psicopata de sucesso. Um predador infalível que, tal e qual a aranha, tece meticulosamente a sua teia de forma a apanhar a presa desprevenida. Um ser movido por afectos distorcidos, inquinados.
Por tudo isto, Doze Histórias de Mulheres é um livro imperdível.
Um colar com doze diamantes da mais pura água na literatura Ibérica.
O poder da palavra no feminino.
Cláudia de Sousa Dias
(texto reformulado a 12-01-2015)
Estas mini-histórias tratam, sobretudo, de explorar emoções e comportamentos humanos que são, na sua maior parte, inerentes à cultura dos Países Ibéricos e que foram sendo cristalizados no inconsciente colectivo pelas contingências da História.
Os dois contos iniciais chegam-nos do país vizinho pela pena de Carme Riera – A Reportagem – e Esther Tusquets – As subtis Leis da Simetria. Trata-se de duas histórias que mexem com os tabus sexuais numa sociedade ainda muito condicionada pelo peso do catolicismo. A história de Carme Riera diz respeito a uma pequena comunidade na ilha de Maiorca, onde o leitor toma contacto com a forma violenta como aquela sociedade, fechada e profundamente tradicional, reage à transgressão. Talvez aquilo que mais choque o leitor (desprevenido) nos dias de hoje seja o notório peso da culpa que se sente nos obstinados silêncios com que os habitantes da ilha respondem sempre que questionados sobre uma tragédia ocorrida cerca de quarenta anos antes e sobre a qual ninguém se quer pronunciar: reina, ali, uma espécie de Omertà siciliana. Trata-se, no entanto, de uma história assaz suculenta, que agarra imediatamente o leitor com as suas frases enigmáticas, povoadas de subentendidos, dando origem a uma irresistível envolvente de mistério. A atmosfera criada por Carme Riera tresanda a transgressão, implícita na forma como as personagens secundárias tentam, a todo o custo, ocultar os factos. Um conto que fala de conflito entre culturas, da agressão aos costumes locais por forasteiros, do medo da exposição e quebra dos padrões de conduta social.
Esther Tusquets, aborda a problemática daquilo que se pode considerar como adultério dentro de uma relação, quando as regras entre o casal não estão bem definidas ou são subitamente alteradas por um dos cônjuges. Ou de como o peso da tradição judaico-cristã se impõe ainda quando alguém se quer assumir como "à frente do seu tempo". Outro aspecto a realçar é a lucidez expressa pelo narrador no tocante à percepção do momento exacto de quando deve uma relação acabar para, de imediato, ser colocado, de forma taxativa e irrevogável, um ponto final. O narrador apresenta um discurso profundamente emotivo, contado na primeira pessoa. Poderá parecer um texto algo caótico na forma, mas exibe, no entanto, um preciosismo extremo quando se trata de descrever as nuances que compõem cada estado de alma em particular, ou de elaborar um quadro de emoções comparável apenas à forma como os grandes génios da pintura manipulam a cor. O tema central é, nada mais, nada menos, do que a lei do boomerang nas relações afectivas. Um brilhante trabalho de introspecção contado, inteiramente, numa óptica psicológica em que o leitor se sente como psicanalista que ouve o paciente no divã.
Seguem-se as seis autoras portuguesas. A começar por Helena Marques que nos apresenta A Mulher sem Rugas onde o discurso do narrador nos dá a conhecer uma personagem feminina, Vera, casada com o trabalho, emancipada, independente, mas sem descurar a sua feminilidade, tratando da manutenção da sua beleza e forma física com um zelo quase obsessivo, enquanto pensa no relógio biológico e num amor que transcende convenções. A mensagem do conto é a de que o stress causado pelo trabalho acelera o processo de depreciação da beleza feminina. O silogismo poderá ser questionável (ou não, pelo menos na parte psicológica), mas o texto exibe uma elevada mestria no domínio da narrativa, sobretudo quando descreve o estado interior de uma mulher obcecada pela perda da juventude e do amor, ou da forma impactante como conclui o conto na cena final, durante uma viagem de comboio.
Inês Pedrosa expõe um tema muito semelhante ao apresentado por Esther Tusquets, mas sob a perspectiva de um narrador autodiegético, isto é, um narrador que conta uma história onde é, também, personagem, no conto intitulado Como de Costume. No entanto, não se trata de um narrador omnisciente pois este não consegue entrar na mente daqueles a quem observa, limitando-se a captar apenas a componente externa das atitudes.
Segue-se a prestigiadíssima Lídia Jorge que expõe, em À Flor do Beijo, a revoltante desigualdade de oportunidades e, simultaneamente, a facilidade com que se pode defraudar as pessoas mais ingénuas ou inexperientes, num texto que disseca, de forma extremamente verosímil, o contexto da génese da exploração do trabalho infantil, aliado a formas mais obscuras de comércio. Um texto que trata a problemática da dificuldade em ultrapassar uma idade de transição para a vida adulta e o abandono escolar em idade precoce por pressão familiar. Uma visão sociológica da realidade. Um relato acutilante.
Luísa Costa Gomes conta-nos Uma História muito longa e imbricada, uma mini-sátira, a brincar com o saudosismo tipicamente português relativo ao período imperialista, através das actividades de um grupo de pseudo guias-turísticas, constituído por um endiabrado bando de rapariguinhas do liceu. Estas divertem-se distorcer os factos históricos e a inventar peripécias de forma a iludir o tédio nos tempos livres. Uma visão psicossocial que nos é dada pelas diferentes reacções dos turistas das mais diversas nacionalidades face às patranhas históricas contadas pelas divertidas “diabinhas”. A Autora constrói, um caleidoscópio de estereótipos sociais, baseado nas reacções características de cada grupo.
Seguem-se os dois melhores textos desta mini-antologia de contos. São eles da autoria de Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, duas das controversas autoras de As novas Cartas Portuguesas.
O Azul-Cobalto de Maria Teresa Horta é uma história arrepiante que se lê de um só fôlego. Trata-se de uma escrita obsessiva, ou mesmo, maníaco-depressiva, traço fundamental da protagonista e narradora. É uma história sobre a privação dos afectos na infância e das suas consequências nefastas numa personalidade adulta. A genialidade do conto está, não só, na escrita de MTH, mas sobretudo no encadeamento dos acontecimentos. Carência. Obsessão. Abandono. Loucura. Causa e consequência. Como se se accionasse um mecanismo. A fatalidade está presente logo na primeira frase. E ao longo do texto in crescendum até atingir o clímax no final.
A Prima Odília de Maria Velho da Costa é inspirada nos dois arquétipos do feminino, presentes no conto tradicional russo O Lago dos Cisnes que deu origem ao bailado de Tchaikovsky com o mesmo nome: Odette, a mulher-anjo, luminosa, ideal, solar; Odília, sombria, austera, lunar. O dia e a noite. Mas os arquétipos estão, na verdade, invertidos no tocante à sensualidade, figurando aqui uma caracterização de cada um que teria mais a ver com arquétipos da cultura clássica - Odette aparece como uma figura apolínea ou afrodisíaca na sua beleza perfeita, tão etérea que se torna quase angélica, e Odília, um ser dos infernos, triste, sombrio, profundamente terreno, mas lembrando Perséphone, ou outra criatura do Hades. A narração é feita, mais uma vez, na primeira pessoa, mas por uma personagem masculina. Mas este protagonista masculino de MVC revela muito mais acerca de si próprio assim como de tudo e de todos os que gravitam à sua volta, à medida que progride na narrativa. O ambiente do início do sec. XX , pouco antes da Primeira Grande Guerra, é aqui, magnificamente recriado tanto ao nível do guarda-roupa, como da decoração, da própria casa, hábitos da época, preconceitos, etc. Mas o mais importante é perceber em que consiste para o protagonista o amor ideal que é tudo menos aquilo o que lhe foi destinado.
E voltamos às autoras de nacionalidade espanhola.
Montserrat Roig descreve, em Before the Civil War uma party em estilo dos anos setenta, num lugar para onde convergem uma enorme variedade de culturas e nacionalidades. Um ambiente representativo de uma sociedade algo caótica, semelhante a uma micro-babel, onde são focadas as dificuldades de integração e de identidade para aqueles que são o produto de várias culturas.
Ofélia Grande de Andrés conta-nos a História do Porque não me chamo Concepción como a minha Avó. A busca das raízes e a reconstituição do passado com uma nota de nostalgia e de romance. É o mais romântico de todos os contos da obra.
E, por último, duas histórias que tocam a problemática da violência.
Rosa Montero aborda a questão dos mal-amados que acabam por se transformar em excluídos sociais, fazendo lembrar, por vezes, um filme de Almodóvar com a insólita História de Paulo Pumilio, o arrogante e mal-querido anão que despreza a feiúra e as fraquezas humanas. Uma história também contada na primeira pessoa a falar das injustiças da Justiça pelo ponto de vista de um psicopata, uma hiena, animal que sempre se mostra fraco com os fortes e forte com os fracos.
A visão de Soledad Puértolas foca o mesmo problema, na vertente psicológica mas situado ao nível da classe média-alta. É a história do psicopata de sucesso. Um predador infalível que, tal e qual a aranha, tece meticulosamente a sua teia de forma a apanhar a presa desprevenida. Um ser movido por afectos distorcidos, inquinados.
Por tudo isto, Doze Histórias de Mulheres é um livro imperdível.
Um colar com doze diamantes da mais pura água na literatura Ibérica.
O poder da palavra no feminino.
Cláudia de Sousa Dias
(texto reformulado a 12-01-2015)
13 Comments:
Dezanove anos depois de ter escrito este post, estou a reler o livro e a fazer um refresh da leitura. Creio que o impacto destas histórias não é exactamente o mesmo que há quase duas décadas: a história/conto policial de Carme Riera está mais actual do que nunca. A minha simpatia vai para a figura da narradora/repórter/jornalista de investigação, para a professora/testemunha que vence o medo e quebra o silêncio e para os transgressores. Gostaria de ler mais coisas escritas por Carme Riera, ela própria professora de literatura, além de escritora. Gosto também do facto de a história estar construída como um epílogo de um conto de Annaïs Nin.
Relativamente a Esther Tusquets, creio que a história está construída para desconstruir preconceitos e estereótipos. Ela faz uma inversão de género, onde a mulher é quem se comporta como um homem adúltero e o homem tem uma reacção passionalmente 'feminina', reagindo com uma retórica que Sigmund Freud não hesitaria de apelidar de 'histérica'. A intenção da autora parece-me, hoje, ser a de demonstrar como seriam as coisas se tudo se passasse 'ao contrário'. É uma história que, parecendo, à primeira vista, ser uma 'historinha' de amores e desamores de literatura para adolescentes, fala-nos, no entanto, de limites nas relações. Tusquets trata aqui também de um tema que está na ordem do dia: a violência no namoro, que vai surgindo gradualmente na história através de pistas muito subtis, e do narcisismo. Estou a gostar muito desta releitura e deste 'refreshment'.
O contraste absoluto com o conto anterior, de Esther Tusquets. A protagonista de Helena Marques é uma mulher subjugada pela visão conservadora do papel da mulher em sociedade. Uma mulher que tem de ser bela a todo o custo, exercendo esforços absolutamente impossíveis para conservar o frescor da juventude através do tempo. A mulher deste conto vive obcecada com a ideia de que o amor, sobretudo quando existe um desfazamento etário face ao parceiro, apesar de todas as 'bandeiras 'verdes' ou 'azuis' no comportamento do mesmo, está ligada apenas ao vigor físico. É a redução da mulher à sua condição de fêmea em idade reprodutora. A obsessão é de tal forma, a ponto de a protagonista, Vera, esquecer as regras e os limites que regem a intimidade do outro. Há elementos que me agradam no conto, como a cena inicial, do stress para apanhar um comboio em que se tem de mudar de linha e que um atraso pode fazer perder a ligação. Mas o final da história dá a entender que a beleza e o amor são um custo de oportunidade que se tem de enfrentar, mais tarde ou mais cedo, quando uma mulher opta por uma carreira profissional. Numa sociedade conservadora ou onde impera o capitalismo selvagem, uma mulher nunca pode esperar ter ambas as coisas. Está também presente no conto , além da obsessão com a aparência, uma peso excessivo da pressão social a interferir com a auto-imagem e as expectativas a longo prazo. Há ainda um interessante jogo fonético entre o nome Vera e 'severa' no texto a sublinhar, entrelinhas, um dos principais traços de personalidade da protgonista.
O conto de Inês Pedrosa parece, à primeira vista, aproximar-se do de Tusquets, mas sem os elementos inovadores presentes na narrativas da autora espanhola, acima mencionados. O narrador-locutor, masculino é, até agora, a única novidade trazida pelo conto de Pedrosa a esta antologia. A passagem que faz uma jovem mulher de uma relação para outra, apego ao hábito de uma relação de namoro sólida, que se tornou quase um casamento. Uma separação onde o vínculo não é quebrado e se mantém uma proximidade que não dá lugar a que se procure outros caminhos. E paralelamente, uma outra relação em espera. A primeira, uma relação normal, consolidada mas já sem paixão. E outra que emerge com o arrepio da novidade de um homem frívolo que usa os dotes culinários para seduzir. Há desapego, algum narcisismo e correr atrás das ilusões. O argumento ainda assim tem muito pouca força, face às outras histórias desta antologia.
Comentando o longo conto de Lídia Jorge, recordo duas situações da minha experiência de trabalho: a primeira, numa IPSS nos final dos anos 1990, como estagiária profissional onde tinha de aplicar uma série de inquéritos à população de 5 freguesias a fim de identificar várias situações de crianças em risco (desde situações de abandono iminente da escolaridade antes do 9º ano a possíveis casos de abuso ou risco de abuso sexual). Foram muitas as crianças que encontrei que tinham de trabalhar na agricultura e até na indústria (miseravelmente pagas) numa situação muito semelhante à que descreve Lídia Jorge no conto. E Mesmo uma década mais tarde, já a trabalhar num regime de subcontratação que na pratica se transformava em recibo verde para o Centro de Emprego num gabinete deslocalizado para uma freguesia periférica, a situação não era muito diferente. Havia mães e avós, como a do conto, agora na véspera de que a escolaridade obrigatória passasse a ser o 12º ano, que incentivavam as filhas e netas a mal acabassem o 9º ano a saírem para irem trabalhar sem pensar nas limitações que no futuro isso lhes iria acarretar.
Aqui no conto de Lídia Jorge temos exploração do trabalho pura e dura, com empresas e supostos 'empresários' a faltar com compromissos e promessas feitas na hora de convencer as pessoas a aderir a uma situação de trabalho, para depois não pagarem de todo ou pagarem só uma fracção do prometido. Na história de Lídia Jorge acontece tanto com um jovem de 20 anos na construção civil, como com uma adolescente de 14 anos, cujo empresário recolhe numa carrinha fazendo-a passar alguém dois anos mais velha para uma situação de pré-exploração sexual. O que depreendo deste conto é que se a ausência de cumprimento na situação remuneratória é muito semelhante em ambos os casos, independentemente da idade ou sexo (considerando que estamos a falar de dois jovens com uma diferença de idade de seis anos e, possivelmente, de vaga origem africana - a autora refere, a dada altura o 'cabelo crespo' da jovem - vindos das ex-colónias por altura da revolução ou mesmo antes). Mas a forma como a matriarca trata as duas situações é completamente diferente: ao neto, ela dá-lhe dinheiro para as suas necessidades quando este fica na situação de desemprego e sem receber salário; à neta incentiva-a deixar a escola e trabalhar em limpezas, mas nunca lhe dá dinheiro. A criança cresce a perceber que as mulheres têm sempre de ajudar 'o homem da casa' mesmo colocando o corpo e a dignidade em risco. Por isso aceita o convite do angariador para participar no concurso 'Miss Beijo Dourado' numa boite.
Bom, espero que me perdoem todos estes spoilers, ao longo deste comentário, mas senti a necessidade de estabelecer um paralelo entre o conto e a realidade com que me fui deparando, ao logo da minha vida profissional. Só para terminar, a jovem que na vida real abandonou com dezasseis anos a escolaridade ao 9º ano, (e que não era emigrante, mas sim extremamente pobre) em 2010-2011 encontrei-a 6 meses depois. Tinha engordado imenso. Levantava-se todos os dias às 6 da manhã para ordenhar vacas, fizesse chuva ou sol, Verão ou Inverno. Ganhava uma miséria, sem estar inscrita na Segurança Social e não tinha grandes alternativas em como mudar de vida ou situação profissional. Por isso, este conto de Lídia Jorge esteve actual pelo menos até ao início da troika. E estará, muito provavelmente, para muita gente que não tem qualquer possibilidade de lutar pelos seus direitos, como hoje, em 2025 muitos imigrantes sem protecção. E não só.
A 'História muito Longa e Imbricada' da Luísa Costa Gomes impactou-me agora, em 2025 de forma muito mais profunda do que há 19 anos ou mesmo há dez anos atrás (altura em que dei uma mexidela apenas nos aspectos formais do texto deste post, mas não no conteúdo, limitando-me a um pequeno 'skimming' ás histórias, mas sem relê-las de fio a pavio - com excepção da de Maria Teresa Horta, que foi objecto da minha tese de mestrado.). Há detalhes em que atentei agora e que antes me passaram ao lado. Por exemplo, a questão da selectividade da memória: duas adolescentes que, passados alguns anos, retém detalhes diferentes acerca do mesmo evento vivido por ambas, ou então que se lembram do mesmo evento, recorrente, mas em ocasiões diferentes. Apenas porque cada uma gravou na memória os detalhes para si mais marcantes. A relação entre os sexos na camada adolescente, ali, não é propriamente igualitária: as raparigas 'gravitam' à volta dos rapazes como satélites à volta dos planetas e as que não o fazem - como as duas protagonistas - são vistas pelo grupo como excêntricas ou elementos marginais. Elas são 'outras', estando aqui presente o sentido de alteridade relativo a duas jovens que têm interesses diferentes dos da maioria. Nos seus tempos livres, elas exploram a cidade e tentam conhecer quem está de passagem e traz outra visão do mundo, pessoas que têm uma amplitude que transcende os limites da cidade, do território do país. Contam histórias da História, ficcionadas ou distorcidas pela propaganda que forma a mentalidade de um país fechado dentro dos limites do seus império. Mais tarde, a História do país e as suas vidas tomarão outro rumo - mas durante aqueles anos em que se entretêm a distrair os visitantes da cidade com as suas efabulações, conseguimos perceber as diferenças entre os povos pela forma como vão reagindo às patranhas. Essa forma especifica de reagir ao embuste marca também a cultura específica de cada um, com o seus padrões distintos: o rigor dos Alemães, que as corrigem mediante a informaçâo resultante das pesquisas que efectuaram, a credulidade do americanos, devido ao seu desinteresse pela história dos outros povos e relativo isolamento, os suíços e os franceses com a sua fria desconfiança. Luísa Costa Gomes acaba por traçar um mapa de comportamentos culturais que fascinam as duas miúdas e as fazem ambicionar sair do reduto da cidade e do país, ver o Mundo que fica para lá do horizonte visto do cais das colunas da cidade ulisseia.
O conto de Maria Teresa Horta continua a ser, para mim e ainda nesta primeira versão - na qual me baseei dez anos depois para escrever parte da minha tese de mestrado - de longe o mais impactante do doze. Pela violência das paixões inscritas no discurso do narrador autodiegético e pela conturbada relação de amor-ódio entre mãe e filha, em que para a primeira a segunda parece ser sempre uma inconveniência, um empecilho, um móvel, da casa ou um animal doméstico sempre a requerer atenção. Mas mais do que uma explicação de teoria da literatura para analisar os elementos estéticos que conduzem o narrador pela trama, sob a qual é construída a história, os aspectos linguísticos que ajudam à sua tessitura, seria preciso analisar também a história do ponto de vista psicanalítico. Três pontos de vista que ajudam a compreender um texto demasiado longo, complexo e controverso para explorar aqui de forma exaustiva. No primeiro caso, temos longas descrições de cenários sumptuosos, onde paira um ambiente de luxúria e sensualidade a gravitar à volta da Mãe de 'Teresinha', a criança da história. Tudo à volta das restantes personagens reveste um teor muito mais discreto ou formal como é o caso da avó ou do pai. Do ponto de vista linguístico, há dois detalhes a ter em conta: o jogo entre o tempo distante (a infância de tTeresinha) e o tempo presente (a adolescência no colégio de freiras), onde os sentimentos em relação à figura materna mudaram de forma radical, o que se pode observar, pelo teor da adjectivação, pela violência contida nas frases iniciais 'Devia ter...'. No aspecto psicanalítico, temos uma criança num esforço constante de busca pelo corpo e afecto da mãe, que está ausente, de passagem, uma presença rara e sempre fugidia. Não há praticamente reciprocidade na atenção que a filha lhe dispensa, invertendo-se os papeis. Na cena final a mãe já partiu definitivamente, como se depreende pela fala da freira, no colégio onde a menina foi depositada ou pela mãe ou por outro membro da família e onde está a sofrer um cruel castigo por algum comportamento proibido naquele lugar para as meninas. Segundo as religiosas, 'a menina é assim por não ter mãe'. É também através da fala da religiosa que intuímos a mudança radical de sentimentos da menina face à figura materna. Este é um conto que nunca deixa ninguém indiferente ficando, de forma circular, no início e no final uma forte sensação de desconforto pela magnitude dos sentimentos expressos: ódio, como resultado de um amor esmagado pelo desprezo e abandono, revolta contra a situação presente e uma incomensurável atitude de inconformismo.
Em relação ao conto de Maria Velho da Costa, não sei se haverá muito mais a acrescentar para além do que já aqui foi escrito. Os dois arquétipos do feminino Representados por Odília e Odette, ou a seriedade versus a extroversão, estes encontram-se invertidos em Maria Velho da Costa, se pensarmos no conto russo, adaptado ao bailado de Tchaikóvski onde é Odíllia a figura sensual e Odette a discreta. Há mais elementos que Maria Velho da Costa acrescenta numa história que ainda tem aqui presentes muitos elementos do estilo literário gótico e simbolista, nomeadamente na descrição fúnebre do cenário e da casa, um palacete no início do século XX, mas onde proliferam objectos datados de épocas anteriores, sec XIX ou mesmo XVIII. O conto abre com o funeral da matriarca num cenário onde a referida caracterização sombria da casa e sobretudo da prima do narrador e protagonista, Odília são destacados por um narrador, o herdeiro principal, um homem frio e calculista. Esta prima é retratada em traços muito pouco lisonjeiros (face 'equina', por exemplo) em contraste com a aparição grácil e etérea do fantasma de Odette a qual é recordada durante o funeral da mãe. O peso da recordação é no entanto impiedosamente afastado pela substituição imediata por um novo "amor" que vai de encontro às ambições do volúvel e arrogante protagonista.
Montserrat Roig é uma escritora catalã que eu não conhecia de todo. Aliás esta professora de Lingua Catalã na Universidade de Barcelona tem uma escassíssima e creio que esgotada obra publicada em Portugal, havendo inclusive já falecido quando este livro foi publicado. O que é pena, dada a acutilância das sua capacidade de observação de comportamentos sociais que é projectada na sua escrita.
Na festa descrita neste conto 'Before the Civil War' reina o multiculturalismo. O cenário escolhido é um bairro de estudantes na cidade de Bristol, no final dos anos 1970 ou, talvez, 1980. O comportamento das estridente das elegantemente exuberantes jovens inglesas em ambiente festivo, onde as regras devido ao álcool e outros estímulos são bastante mais flexíveis do que o habitual, capta a atenção da narradora-observadora participante que vai catalogando a forma como uns interagem com os outros, admirando o á-vontade das anfitriãs britânicas. Pessoas de origem estrangeiras começam a agrupar-se e a falar entre si. A música envolvente vai marcando o ritmo à história e aos acontecimentos, começando por ser suave e depois mudando gradualmente o ritmo para se tornar frenética até à altura em que a história atinge o climax e continuando sempre a subir de tom até ao final abafando todo o restante ruído de vozes e rumores humanos.
Há o americano de maia idade que acompanha a jovem italiana a cair ali como que de para-quedas com estatuto de arquitecto, mas que escolhe não exercer a profissão e vender jornais. Num curto diálogo com a narradora é dado a perceber que o homem é uma nulidade que se apresenta e se imiscui na festa fazendo-se passar por homem culto. Na passagem à cena seguinte a música sobe de tom e o foco centra-se no rapaz de origem indiana, crescido no Uganda, educado como britânico e a dar aulas no Reino Unido. A narradora, quando lhe percebem a origem catalã tem sempre de dar uma explicação professoral da língua, das origens do seu país, das fronteiras, da guerra civil, do antes e do depois da guerra civil, o que lhe granjeia a fama de fria e pretenciosa, não lhe confere a popularidade das jovens que se limitam a ser femininas e a deixar-se seduzir. Há também a problemática do desenraizamento que se espelha tanto no Americano, peter, como no Indo-Ugandês, de educação britânica, Bishan. No fundo a história é sobre estereótipos, a dificuldade de estabelecer relações onde o ruído e a preferência pela superficialidade abafa a comunicação.
Ofélia Grande de Andrés estreava-se aqui na sua vertente de escritora, ofício que exerceu sempre, até hoje, de forma esporádica, já que a sua actividade é, essencialmente, a de editora, sobretudo na chancela Siruela, que dirige.
O conto que aqui temos presente, 'História de como não me Chamo Concepción, como a Minha Avó', aparenta ter uma componente fortemente autobiográfica, como dá a entender a primeira frase onde parecem coincidir as instâncias narrativas de Autor(a) e Narrador(a):
«As pessoas que, como eu, acreditam ter a pouca sorte de serem lançadas ao mundo com um nome de que não gostam, procuram sempre qualquer motivo que, pelo menos aos seus olhos, liberte os seus progenitores da responsabilidade de tal malfeitoria.» Sendo que autora, narradora e protagonista partilham todas o mesmo nome próprio, Ofélia, põe-se aqui a hipótese de este ser um conto com uma forte componente autobiográfica ou, muito provavelmente, uma ficção que parte de um componente autobiográfico - nome e origens geográfico-familiares -, aquilo que hoje se denomina de auto-ficção.
Entre a Galiza e Cuba há uma história que é contada por alguém, mas de que na realidade só se conhece a metade o ponto de vista do bisavó galego, marido de Concepción protagonista de um episódio romântico ocorrido há mais de 100 anos. Duas geografias unidas numa dada época pela guerra e separadas depois por acontecimentos históricos. O pretexto da busca das origem do nome desemboca no verdadeiro móbil da história: um par, no qual o romantismo do elemento masculino se confronta com a hipótese/conjectura da narradora relativamente a uma protagonista com os pés assentes na terra e a consciência da efemeridade dos amores em tempo de guerra. O acaso vem, muitas décadas depois, interferir para fornecer um indício, mas o conto termina no limiar dos acontecimentos, obrigando-nos a adivinhar ou construir nós próprios, leitores, um final à medida da nossa intuição e criatividade.
No conto de Rosa Montero temos uma Personagem, Paulo (Pablo) Pumiglio, um narcisista encoberto cuja principal característica psicológica é a distorção da auto-imagem. Trata-se de um anão, de 88 cm de altura - que pode ser também visto como uma metáfora, no sentido de que é alguém muito menos dotado de competências do que aquilo que se julga - e pernas tortas e curtas, convencido ser detentor da perfeição física de um atleta olímpico da Grécia clássica. Veja-se o seguinte parágrafo:
«Não sou anão. É verdade que sou um homem baixo: meço 88 centímetros descalço e cerca de 90 centímetros com sapatos. Mas o meu corpo é perfeitamente constituído, as minhas proporções são simultaneamente delicadas e atléticas: a cabeça pequena, braquicéfala e bem desenhada, o pescoço robusto mas esbelto, os ombros largos, os braços musculados, o busto elegante: os meus membros inferiores são fracos, sou um pouco cambaio e tenho as pernas tortas...» (pg 141). Note-se o exagerar daquilo que considera ser os pontos fortes, mesmo com algumas distorções em contraste coma minimização dos pontos fracos. E a seguir corrobora:
«É verdade que depois de vestido o ângulo das minhas pernas não se nota e posso garantir-lhes que a minha postura é garbosa e apolínea.» Este é o auto-elogio. Mas as vozes do contraditório são de imediatamente por ele mesmo desvalorizadas, na tentativa de as anular:
«Mas há outro termo, de entre os venenos destilados pela imprensa, , que se presta a confusão e que gostaria muito de esclarecer: é verdade que todos me conhecem por O Marreco. Mas não se deixam enganar...» (pg.141). É de notar também que ele não está a usar de ironia ao referir-se a si próprio, ele acredita ou quer acreditar piamente naquilo que está a dizer.
Além de tudo isto, tem particular fascínio pelos organismos que representam o uso do poder pela força e pela repressão, aliado ao desprezo pelos mais fracos ou destituídos de poder. As pessoas que mostram compaixão por ele acabam sempre ou por definhar - os pais adoptivos - ou então vítimas da sua violência que irrompe quase sempre como um cataclismo movido por forças infernais.
Seria à primeira vista uma personagem cómica, se as consequências desta visão de si mesmo não fossem tão trágicas. A misoginia também está fortemente impregnada no seu carácter, projectada num ódio às mulheres que poderá estar enraizado num rancor que tem origem nos primeiros anos da infância. A gratidão é também coisa que não lhe assiste como se vê sempre que se refere aos pais adoptivos - 'peudo-pai', etc - ou a outras pessoas que tentam de facto ajudá-lo, pagando-lhes com desdém ou desprezo ostensivo, como é o caso de Asunción, artista de circo e do seu ex-amante Ali, quando perde a pujança e porte de gladiador que antes Pablo Pumiglio admirava.
Este magnífico e violento conto de Rosa Montero é o retrato perfeito da personalidade autoritária de Adorno, cozinhada aqui num ambiente de ideologia fascista da Espanha de Franco.
Relativamente ao conto de Soledad Puértolas há que corrigir algumas imprecisões relativamente ao texto original neste port. Não se trata necessariamente de um psicopata assassino originário da classe media-alta, mas a vítima sim. O psicopata é um polícia ou faz-se passar por tal.
A história passa-se em dois momentos diferentes, desdobra-se em dois planos distintos: o primeiro, exclusivamente do ponto de vista da protagonista, com a narrativa vertida através do discurso indirecto livre - como se o narrador qua observa a cena de um ponto de vista panorâmico, fosse aproximando lentamente uma câmara de filmar da personagem e entrando na sua mente através da pupila do olho da mesma, passando depois a dar ao leitor o conhecimento do que se passa através da sobreposição do seu próprio ponto de vista (do narrador) e do ponto de vista da personagem - e depois, num segundo momento do ponto de vista do seu oponente, o assassino, com o discurso na primeira pessoa.
Estamos aqui perante uma mulher que cai na teia de uma personagem maquiavélica e que comete um crime fazendo recair as culpas em alguém que depois pretende submeter e manter sob o seu domínio. Apenas porque, a dada altura se deixou convencer pelo seu charme e estando no lugar errado à hora errada. É, talvez, um dos contos mais perturbadores da colectânea, senão mesmo o mais perturbador, já que acabamos o livro com um sentimento desesperante de desassossego.
O livro é quase todo ele uma denúncia de aspectos misóginos na sociedade Ibérica - talvez com a excepção do conto de Helena Marques onde domina ainda a perspectiva tradicional de objectificação da mulher, embora até mesmo neste caso, o texto literário possa também ser lido como uma dissecação do mesmo fenómeno (mas aqui de uma perspectiva de quem defende a tradição patriarcal do papel da mulher na sociedade). A contestação a esta perspectiva aparece no conto de Maria Teresa Horta, em que a mulher-objecto, incarnada na figura da mãe negligente, surge como oposição à filha rebelde que é torturada ou manietada na cena final, com o propósito de controlar o seu comportamento, a fim de torná-la conforme ao código de conduta do patriarcado. Destaco também a forma especialmente inteligente como Maria Velho da Costa expõe as atitudes misóginas da sociedade patriarcal no período imediatamente antes da Primeira Guerra Mundial, colocando a narração na voz de uma personagem masculina que representa essa forma de olhar a Mulher. A frase aparentemente desconcertante do final é explicada pela contextualização do discurso do mesmo protagonista na época em que decorrem os acontecimentos. As mulheres não podiam ficar à frente dos negócios na altura. Por isso, o primo teria de herdar o património e casar com uma das primas, de forma a manter os bens na família. No entanto Odette, a mulher moderna - traço que se percebe pela forma como veste quando aparece o seu fantasma, não é a mulher que convém ao herdeiro, como se vê no seu discurso. Odília sim, porque se comporta, mais uma vez, segundo os ditames daquele sistema social.
O desconforto iniciado pelo primeiro conto de Carme Riera é completo de forma circular, exactamente como se fosse um círculo vicioso, com o conto de Soledad Puértolas.
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