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Friday, July 14, 2006

“Contos do Mal Errante” de Maria Gabriela Llansol (Assírio e& Alvim)


Não se pode dizer que estejamos perante uma colectânea de contos ou pequenas estórias propriamente dita, mas antes diante de um conjunto de narrativas, ou segundo Manuel Gusmão, de fragmentos interligados.

Segundo MG, o autor do posfácio do livro, a obra pode ser classificada entre a narrativa e o romance, onde os capítulos descontínuos formam uma espécie de caos organizado.
São cento e dez fragmentos por onde deambula o pensamento errante, especulativo, tal qual um andarilho à procura da regra. Segundo o mesmo Autor, “os segmentos verbais que iniciam cada fragmento anunciam o tema ou seleccionam o acontecimento principal de cada texto”, constituindo uma espécie de costura que une os fragmentos e dá continuidade ao descontínuo.

A escrita fragmentária de Maria Gabriela Llansol é, sobretudo, de carácter introspectivo cuja finalidade é a de dar a voz a uma mulher culta, de inteligência muito acima da média e uma sensibilidade fora do comum para a época, que pretende legar o seu pensamento para a posteridade: Isabôl ou Isabel, nada mais nada menos que a lendária rainha Santa Isabel de Portugal, exilada na cidade de Münster.

Trata-se, obviamente, de uma obra de ficção, uma fábula, composta por personagens históricas, que a audácia da Autora relaciona de uma maneira invulgar, formando um triângulo amoroso. Que é a consagração de uma união física e mística ou espiritual: Isabôl ou Isabel é amante de Copérnico – o herético – e de uma beguina holandesa denominada Hadjewich, que viveu na primeira metade do século XIII e dedicou grande parte da sua vida a escrever poesia sacra.

O objectivo da escrita de Isabôl é a análise da génese do Mal, melhor dizendo, em que consiste - a ontologia do Mal – e de onde provém – a gnosiologia - , o eterno enigma genesíaco.

Conjuntamente com Copérnico e Hadjewich, Isabôl tenta, isolada pelas neves numa mansão situada nos arredores de Münster formando uma barreira natural contra a cidade sitiada, estudar o eterno dualismo e luta de contrários presentes na alma humana: o bem e o mal, a luz e as trevas, o caos e o cosmos. O frio e o gelo convidam ao isolamento e ao amor no aconchego do lar, aquecido pelo fogo da lareira e da paixão, numa luta inglória face à morte e ao esquecimento.

O dilema de Isabôl está em saber se a origem do mal está no amor ou no conhecimento. As sua reflexões levam-na a concluir que a infelicidade ou a tristeza provém do não conhecimento, logo a alegria é identificada com a sophia ou sabedoria.

Por outro lado, ao explorar o dualismo do amor ímpar – onde entra um terceiro elemento que forma uma tríade mulher-homem-mulher, Isabôl explora a dualidade sexual do seu ego: o seu lado masculino expresso no desejo de possuir um pénis para melhor desempenhar a sua dupla função sexual, masculina e feminina.

Isabôl, no auge da ânsia do seu gozo sensual, manifesta esse mesmo desejo, de teor freudiano, que caracteriza a bipolaridade das suas pulsões sexuais: “todo o animal humano tem um chifre na testa, ou seja um falo”.


Daqui emerge um conceito de cosmologia proveniente da necessidade de ligar, da atracção mútua dos corpos, formando a tríade – o símbolo da perfeição.

A dualidade da alma de Isabôl está patente nesta sua ambivalência sexual e permite-lhe formar um triângulo com os outros dois elementos no plano sexual, intelectual e místico. Copérnico funciona como elemento de ligação entre Hadjewich e Isabôl, ou a hipotenusa do triângulo humano cujos lados são compostos pelas duas mulheres – as duas faces do mesmo caminho.

A crise no amor ímpar é despoletada por Hadjewich quando esta decide afastar-se das emoções terrenas e dedicar-se apenas ao aprofundamento espiritual. A bela holandesa torna-se, então, objecto das emoções negativas de Isabôl: ressentimento, mágoa e algum ódio que é desviado para uma estranha figura do imaginário medieval – Potropato, um estranho ser híbrido, metade ave, metade equídeo –, que facilita a Isabôl a passagem da realidade do quotidiano para o mundo onírico, oferecendo-lhe a possibilidade de viajar pelo espaço sem, no entanto, sair da mansão.

Potropato representa o mundo da imaginação e do sonho da narradora, o fantástico, a esperança e a experiência; aponta para os novos mundos e, claro, para o momento de crise no amor ímpar, devido à sua chegada estar associada à partida de Hadjewich. Potropato simboliza a mudança.

O número ímpar é, segundo Manuel Gusmão, aquele que mantém os seres abertos ao conhecimento e, por isso, comparável a um curto-circuito de energia. O número três personifica, assim, a intensificação de uma energia quebrada pela partida de um dos elementos.

O mesmo curto-circuito não acontece no mecanismo repetitivo das oposições binárias, onde o dinamismo da síntese e da criação de algo de novo não se verifica.

As quatro personagens principais estão relacionadas com os quatro elementos. Hadjewich está conotada com a Água – um elemento que pode ser tanto de ligação como de cisão ou separação – uma vez que esta personagem desempenha, ao longo da narrativa, ambos os papéis.
As duas mulheres são sôfregas da alegria do conhecimento. Mas enquanto que Hadjewich representa a ânsia pela alegria do género contemplativo – com a quietude e serenidade de um rio ou lago gelado –, Isabôl encarna a sofreguidão pela alegria associada ao júbilo de possuir. Por este motivo, Isabôl representa o elemento Fogo, o ardor sensual, o poder de acumular calor e exalar frieza. Porque o gelo também queima. E é esta a razão pela qual as duas mulheres se atraem e, posteriormente, se repelem em diferentes momentos da narrativa.

Porque Hadjewich vive um conflito gerado pelo desejo carnal e a sua sede de auto conhecimento relativo à esfera espiritual é inesgotável. O que se traduz numa necessidade imperiosa de explorar os seus impulsos sensuais para melhor analisar e desenvolver as faculdades do espírito levando-a, num segundo momento da narrativa, a renegar os desejos do próprio corpo, para procurar, no deserto, “as formas mais puras”.

“Receio pertencer-vos
e que me pertençais
a mim, porque tenho
medo de vós, e medo
de mim”.

A tríade ou unidade sistémica que era constituída pelas partes que se interligavam através de forças recíprocas, é interrompida atiçando o fogo do ódio de Isabôl. A alma de Hadjewich é conotada com a frieza da água gelada ou com o gelo propriamente dito uma vez que esta oculta as emoções, permanecendo este aspecto da sua personalidade encoberto nas profundezas das massas geladas (note-se aqui a influência de Freud e da teoria do inconsciente no imaginário da Autora) aparecendo, à primeira vista, fugaz ou volátil.

Hadjewich age solitariamente, como se os restantes intervenientes não fossem humanos mas deuses que devem obediência um ente superior.
Hadjewich torna-se no núcleo de um amor absoluto, que acaba por dar origem ao desamor ou “atracção de repelir”, segundo as palavras de Isabôl.

Já Potropato é conotado com o Ar, o elemento associado à mentalidade e ao vento. Potropato ajuda Isabôl a evocar o país de origem, o sonho, a memória. O facto de a sua chegada coincidir com a partida de Hadjewich, faz convergir o ódio de Isabôl para si. Por fim, Copérnico pode ser identificado com o elemento Terra, associado ao poder e à estabilidade – “Copérnico esconde o seu poder (conhecimento científico) num estojo fechado”.

Voltando ao cerne da questão – a origem e o devir do mal – Isabôl tenta especular se este provirá do amor ou do conhecimento. Do corpo ou do espírito.
Desta reflexão ela extrai várias ilações.

A primeira é a de que o mal é o excluído do ciúme, a inveja. Será, portanto, esta a pedra angular do processo, ficando a descoberta do corpo que se desconhece como o segundo desfolhamento do espírito, ou seja, o amor sensual como o caminho para o auto-conhecimento e crescimento interior.

A segunda é a de que há um certo maniqueísmo a propósito da simbologia da pomba na cidade de Münster – o lado bom e o lado mau, o construtivo e o destrutivo, o cosmos e o caos. A dualidade da alma humana.

Em terceiro lugar, para Isabôl, “no amor não há juízo final, mas fora dele não terão conta as contas que nos serão pedidas” logo: no amor não há lugar para a maldade quando as motivações pessoais estão voltadas para o bem-estar do Outro.

Quarto, a alma humana e a cidade são o espaço onde se movimentam duas forças opostas: o amor e o ódio. A fragilidade deste jogo de forças, provém quer da falta de habilidade quer de rectidão interior. Ambas as circunstâncias levam, muitas vezes, a danos irreparáveis numa relação.

Quinto, a manifestação da beleza gera o amor (o bem) e o ciúme (o mal). Hadjewich é bela mas devido à falta de discernimento torna-se objecto de ódio de Isabôl. Esta identifica a bela holandesa com as freiras que reprimem a sexualidade “deixando-se seduzir pela tábua rasa do espírito” e que se convencem ver nas trevas a ilusão da verdade.

Em sexto lugar, a reunião de forças, tal como acontece em Münster e em todas as situações de guerra, acelera o mal.

Em sétimo lugar, outra das fontes de onde provém o mal “são os pensamentos dos outros que originam os nossos preconceitos”.

Para Isabôl existem três formas fundamentais de exercício de poder:
a) A atracção dos corpos, em que o móbil mais fraco é atraído pelo mais forte.
b) A influência mágica, na qual um ser inexperiente é subjugado por outro mais hábil.
c) A degustação hipnótica, em que a serpente da fábula de Esopo aniquila a vontade de uma ave, atraindo-a às suas mandíbulas.

Segundo ela, existem ainda três formas de vida e de medo (sempre o número da tríade, da unidade perfeita, que contém em si as partes e o todo) e a consciência da dependência relativa entre os seres depende de saber ou não modular o olhar segundo as três imagens do poder que vimos anteriormente. No fundo trata-se das diferentes formas de manipulação. Isto é: o ser humano sofre a influência moral e sugestiva proveniente dos outros seres mais confiantes.
Contudo, nenhum poder humano é absoluto e, para Isabôl, “a própria serpente há-de morrer, provavelmente, devorada. Há uma certa afinidade com o pensamento de Platão, quando afirma que só o Divisor – Deus, a forma suprema – pode separar o que está unido pela mesma forma. Hadjewich usurpa, de certa forma este papel agindo como o divisor, abandonando os amantes e regressando ao deserto para se encontrar a si mesma. Hadjewich constrói uma imagem antropofágica do casal ao qual está unida.

Por sua vez, Isabôl é capaz de abandonar Hadjewich pela escrita e Copérnico de fazer o mesmo pela ciência.

O pensamento de Isabôl é profundamente herético pois, ao contrariar os desígnios do divisor – separar escolher os seus aliados e eliminar os adversários, Isabôl tenta fazer a reunião, a síntese dos contrários. Para ela, o Divisor (a religião?) é a máscara da fome e da falta de amor.
Quanto ao ambiente da vizinha cidade de Münster, este exprime, em termos sociais, aquilo que se passa a nível individual na mansão. O povo revolta-se contra o tirano Jan de Leyde, revolta essa que é violentamente reprimida.

Em Contos do Mal errante, podemos vislumbrar a génese do iluminismo, na primeira metade do século XIII, a partir da cosmologia de Copérnico, transposta para as relações humanas, pela pena de Isabôl. O iluminar da mente, da consciência, provém do desejo de morder a maçã da sabedoria, da fome de conhecimento e, nas classes mais humildes, de alimento e melhores condições de vida. O desejo, considerado então herético, de utilização do conhecimento e engenho para atingir a elevação material e espiritual é reprimido pelo Poder. E a heresia está em que, na época, esta posição colide com a ordem social estabelecida, que considerava o sistema de divisão social em três estados – clero, nobreza e povo ou terceiro estado – como legitimada pela divindade – a teoria da predestinação. Para Isabôl o povo precisaria não de milagres mas de palavras e obras. No fundo, é a postura de Isabel de Portugal enquanto rainha. Enquanto isso, povo sofre a opressão de um poder que conduzirá ao abismo do não poder – à anarquia. Isabôl assiste às consequências da vertigem do poder absoluto na cidade de Münster: a perseguição dos amantes da liberdade que Maria Gabriela Llansol traduz numa das mais belas frases de toda a narrativa. “a noite caiu num estado de vigília que agitou de insónia e de luzes, a cidade”.

Jan de Leyde, o rei perverso, manda executar crianças que traficam os livros indexados no mercado negro. Estas retiram-nos sub-repticiamente da fogueira para ganharem algum dinheiro acabando, assim, por preservar a memória do passado e o conhecimento para a posteridade.
Face aos princípios sanguinários de Jand de Leyde, a atitude do bando das crianças-ladrões, leva à preservação dos arquivos da memória e, ao salvar os livros da destruição, acabam também por preservar a imortalidade dos seus autores.

O legado de Copérnico e Isabôl, apesar de herético, tenciona ser uma obra de esperança e luz sobre o processo de construção do Homem. Um processo que conduz à laicização – na perspectiva da Autora, onde se nota a influência de Nietzsche ( para que a paz sobrevenha é necessário que se proceda à morte de Deus) - , do homem e do iluminar da consciência.

O final traduz-se num rito de união da tríade perfeita, simbolizando a síntese dos contrários como fim da História da Humanidade – um paraíso de tolerância e harmonia.

Um livro para os verdadeiros apaixonados da literatura.
E da beleza da escrita.
E da audácia do acto criativo.
A coragem de desafiar preconceitos e convenções.

Cláudia de Sousa Dias

10 Comments:

Blogger Claudia Sousa Dias said...

Olá Pirata!Estamos peran~te uma autora com um estilo poético impressionante!Mas nada fácil de analisar.Foi um desafio...

Beijinho

CSD

7:40 PM  
Anonymous Anonymous said...

This comment has been removed by a blog administrator.

4:27 PM  
Anonymous Anonymous said...

nicolau

4:28 PM  
Anonymous Anonymous said...

I like it! Keep up the good work. Thanks for sharing this wonderful site with us.
»

4:09 AM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

Dialógico:

De todos só não li o segundo!

Quanto ao promeiro tens um comentário no arquivo de Novembro de 2005!

Um abraço

CSd

11:50 AM  
Blogger Vanda said...

Ganhou hoje asas.


Esperemos que para um mundo melhor.

De Luz.


Obrigada a ti, pela tua obra tb.

5:25 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

Esperemos.

Mas fico triste mesmo que seja o caso...

Queria que ela tivesse chegado a ganhar o Nobel...sei que o merecia...


CSD

9:57 PM  
Blogger till said...

Estou a reler este livro, e a sua análise ajudou-me a "arrumar" ideias, pela sua excelente explicação. Obrigado por partilhar.

5:35 AM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

é com muito gosto que o faço. Obrigada :-)


CSD

2:30 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

http://revistamododeusar.blogspot.de/2011/10/hadewijch-de-antuerpia-1190-1240.html

1:51 PM  

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