“Uma Mulher Nua” de Lola Beccaria (Teorema)
Martina Iranco é uma advogada de sucesso, detentora de um importante cargo político que, devido à sua posição, quer social quer no mundo do trabalho, é obrigada a vestir uma máscara que não corresponde à sua verdadeira personalidade.
Oriunda de uma família extremamente conservadora, de excelente nível sócio-económico, Martina tem, apesar de tudo, uma infância condicionada por uns pais extremamente exigentes quanto à aquisição de competências intelectuais, artísticas e regras de comportamento social. Estes gostam de exibir as capacidades da filha para as visitas mas esquecem-se da compensação afectiva necessária ao bem-estar, responsável pela segurança e autonomia de uma criança, durante a primeira infância. Ao mesmo tempo recusam-se a aceitar que esta tenha uma qualquer forma embrionária de sexualidade.
A vulnerabilidade de uma criança como Martina, em virtude desta situação, transforma-a na vítima perfeita para alguém que tem dificuldade em estabelecer o limite entre aquilo que deve ser uma relação afectiva saudável entre um adulto e uma criança.
É o que acontece quando entra em cena Damián, um charmoso e distinto médico, amigo da família, íntimo da casa. Uma pessoa acima de qualquer suspeita. E Martina é uma criança que está disposta a utilizar o último átomo da sua criatividade em troca de uma migalha de afecto.
Trata-se, no fundo, da versão actual do Lobo Mau e do Capuchinho Vermelho, com a particularidade de os limites entre o Bem e o Mal, entre o lícito, e o ilícito se apresentarem de uma forma mais diluída daquilo que é habitual.
O tema da pedofilia ou do abuso sexual de crianças é, por si só, um tema que provoca reacções “a quente” e despoleta reacções violentas. Um tema que incomoda. Tanto que, há cerca de década e meia atrás, no início dos anos noventa, a maior parte da população se recusava, sequer, a admitir a existência de tal fenómeno.
E Lola Beccaria, ao mostrar uma situação de proximidade sexual entre um adulto e uma criança em Uma Mulher Nua, é tudo menos politicamente correcta. Pode-se mesmo afirmar que é transgressora. Uma Mulher Nua é um livro cuja leitura causa algum desconforto, não só pela crueza da linguagem em alguns capítulos, mas sobretudo pela pormenorizada descrição dos breves contactos sexuais entre Martina e Damián.
E esse mesmo desconforto decorre do facto de tomarmos consciência de que um abusador pode justificar a sua conduta com a possibilidade de a criança sentir prazer com um contacto sexual que não chega às últimas consequências, isto é, em que não há penetração.
Aqui, a grande questão está em definir o que é a norma. E a personagem Damián ultrapassa largamente aquilo que no geral, é definido como sendo a norma. O perfeito e intocável gentleman soube ver na verdadeira Martina, uma criança carente e vendida de antemão, disposta a aceitar qualquer simulacro de amor. Sem saber, contudo, lidar nem com ela, nem com o próprio desejo.
Quando isto acontece, a criança está não só apta a ser abusada por outros adultos como por crianças da mesma idade ou pouco mais velhas, para além de poder vir a tornar-se num potencial abusador(a).
Por outro lado, dá-se uma divisão, uma cisão ao nível do foro psíquico: isto é, entre aquilo que é condenável pela sociedade e aquilo que é premiável pelo amante adulto. O resultado é a criação de uma mundo oculto, onde há uma busca desenfreada de sensações e a idealização do amante.
Na realidade este livro poderia ser intitulado de “A outra face de Lolita” – a mesma personagem de Nabokov – desta vez contada pelo ponto de vista de uma criança que é abusada e que cresce a pensar que o abuso de que foi vítima é a norma.
Com uma escrita de certa forma chocante, desprovida da beleza estética e poética com que a personagem Humbert Humbert de Nabokov tenta colorir as suas atitudes, recorrendo ao mecanismo de defesa do ego a que podemos chamar de sublimação, a personagem Martina Iranco consegue ser bastante incómoda, no seu papel de narradora, ao relatar os primeiros anos do desenvolvimento da própria sexualidade, o que faz de Uma Mulher Nua uma das obras mais polémicas que já surgiram no universo literário nas últimas duas décadas.
A capa do livro, inspirada num dos mais belos quadros da pintora Tamara de Lempicka – representa Andrómeda acorrentada – vai de encontro à forma como a Autora encara a Moral: “um cinto de castidade do prazer que faz com que a sociedade crucifique o próximo, praticando a censura como o sucedâneo da felicidade” (sic). Para Lola Beccaria quebrar as regras ou correntes do bom comportamento significa a exclusão numa sociedade em que, mais do que a virtude em si, importa a aparência da virtude.
Pela voz da personagem Martina Iranco, a Autora pretende contar a estória de uma mulher que procura ser a representação do objecto sexual perfeito, em troca de amor e aprovação. Um objectivo frustrado pelo desconhecimento da maneira autêntica de o conseguir.
A narrativa é, toda ela, o desnudar da alma a partir do inconsciente, “da exploração do poço dos desejos” (sic). Trata-se da exposição integral do universo que gere a líbido ao exibir o belo e o feio, isto é, os pontos fortes e débeis da alma nua da mulher. Sem defesas e sem máscaras.
Porque “uma mulher nua é fácil de ferir e de humilhar”.
Um livro chocante para alguns. Realista para quem não deseja viver de olhos vendados.
Um verdadeiro murro no estômago.
Cláudia de Sousa Dias
Oriunda de uma família extremamente conservadora, de excelente nível sócio-económico, Martina tem, apesar de tudo, uma infância condicionada por uns pais extremamente exigentes quanto à aquisição de competências intelectuais, artísticas e regras de comportamento social. Estes gostam de exibir as capacidades da filha para as visitas mas esquecem-se da compensação afectiva necessária ao bem-estar, responsável pela segurança e autonomia de uma criança, durante a primeira infância. Ao mesmo tempo recusam-se a aceitar que esta tenha uma qualquer forma embrionária de sexualidade.
A vulnerabilidade de uma criança como Martina, em virtude desta situação, transforma-a na vítima perfeita para alguém que tem dificuldade em estabelecer o limite entre aquilo que deve ser uma relação afectiva saudável entre um adulto e uma criança.
É o que acontece quando entra em cena Damián, um charmoso e distinto médico, amigo da família, íntimo da casa. Uma pessoa acima de qualquer suspeita. E Martina é uma criança que está disposta a utilizar o último átomo da sua criatividade em troca de uma migalha de afecto.
Trata-se, no fundo, da versão actual do Lobo Mau e do Capuchinho Vermelho, com a particularidade de os limites entre o Bem e o Mal, entre o lícito, e o ilícito se apresentarem de uma forma mais diluída daquilo que é habitual.
O tema da pedofilia ou do abuso sexual de crianças é, por si só, um tema que provoca reacções “a quente” e despoleta reacções violentas. Um tema que incomoda. Tanto que, há cerca de década e meia atrás, no início dos anos noventa, a maior parte da população se recusava, sequer, a admitir a existência de tal fenómeno.
E Lola Beccaria, ao mostrar uma situação de proximidade sexual entre um adulto e uma criança em Uma Mulher Nua, é tudo menos politicamente correcta. Pode-se mesmo afirmar que é transgressora. Uma Mulher Nua é um livro cuja leitura causa algum desconforto, não só pela crueza da linguagem em alguns capítulos, mas sobretudo pela pormenorizada descrição dos breves contactos sexuais entre Martina e Damián.
E esse mesmo desconforto decorre do facto de tomarmos consciência de que um abusador pode justificar a sua conduta com a possibilidade de a criança sentir prazer com um contacto sexual que não chega às últimas consequências, isto é, em que não há penetração.
Aqui, a grande questão está em definir o que é a norma. E a personagem Damián ultrapassa largamente aquilo que no geral, é definido como sendo a norma. O perfeito e intocável gentleman soube ver na verdadeira Martina, uma criança carente e vendida de antemão, disposta a aceitar qualquer simulacro de amor. Sem saber, contudo, lidar nem com ela, nem com o próprio desejo.
Quando isto acontece, a criança está não só apta a ser abusada por outros adultos como por crianças da mesma idade ou pouco mais velhas, para além de poder vir a tornar-se num potencial abusador(a).
Por outro lado, dá-se uma divisão, uma cisão ao nível do foro psíquico: isto é, entre aquilo que é condenável pela sociedade e aquilo que é premiável pelo amante adulto. O resultado é a criação de uma mundo oculto, onde há uma busca desenfreada de sensações e a idealização do amante.
Na realidade este livro poderia ser intitulado de “A outra face de Lolita” – a mesma personagem de Nabokov – desta vez contada pelo ponto de vista de uma criança que é abusada e que cresce a pensar que o abuso de que foi vítima é a norma.
Com uma escrita de certa forma chocante, desprovida da beleza estética e poética com que a personagem Humbert Humbert de Nabokov tenta colorir as suas atitudes, recorrendo ao mecanismo de defesa do ego a que podemos chamar de sublimação, a personagem Martina Iranco consegue ser bastante incómoda, no seu papel de narradora, ao relatar os primeiros anos do desenvolvimento da própria sexualidade, o que faz de Uma Mulher Nua uma das obras mais polémicas que já surgiram no universo literário nas últimas duas décadas.
A capa do livro, inspirada num dos mais belos quadros da pintora Tamara de Lempicka – representa Andrómeda acorrentada – vai de encontro à forma como a Autora encara a Moral: “um cinto de castidade do prazer que faz com que a sociedade crucifique o próximo, praticando a censura como o sucedâneo da felicidade” (sic). Para Lola Beccaria quebrar as regras ou correntes do bom comportamento significa a exclusão numa sociedade em que, mais do que a virtude em si, importa a aparência da virtude.
Pela voz da personagem Martina Iranco, a Autora pretende contar a estória de uma mulher que procura ser a representação do objecto sexual perfeito, em troca de amor e aprovação. Um objectivo frustrado pelo desconhecimento da maneira autêntica de o conseguir.
A narrativa é, toda ela, o desnudar da alma a partir do inconsciente, “da exploração do poço dos desejos” (sic). Trata-se da exposição integral do universo que gere a líbido ao exibir o belo e o feio, isto é, os pontos fortes e débeis da alma nua da mulher. Sem defesas e sem máscaras.
Porque “uma mulher nua é fácil de ferir e de humilhar”.
Um livro chocante para alguns. Realista para quem não deseja viver de olhos vendados.
Um verdadeiro murro no estômago.
Cláudia de Sousa Dias
5 Comments:
Não percebi Pirata!
Beijinhos
CSD
Obrigada!
Mas eu gosto de variar nos géneros. Este livro,apesar de a linguagem utilizada nem sempre corresponder ao discurso literário - podendo ser incluída num género menor - não deixa de ser interessante verificar o desvio à norma e, também algumas passagens serem particularmente felizes.
CSD
Ola Claudia
Td bem?
Cá pela terra da laranja e da amendoeira vamos escondendo-nos do sol para não qeimarmos os fusiveis como sempre. Dia 25 de Maio mais um serão com a Luisa Monteiro, pensarei em ti especialmente, nos outros dias penso en ti aleatoriamente.
Ciao
Luis Nunes Alberto
Olá Luís ! Adorei a tua visita!
Um beijinho grande para ti e para toda a gente maravilhosa que conheci debaixo do sol do Algarve!
CSD
ola claudia
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