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Saturday, February 25, 2006

“Festas de Casamento” de Naguib Mahfuz (Difel)


Um intelectual egípcio, com graves dificuldades económicas, escreve uma peça de teatro intitulada de Festas de Casamento, inspirada nas pessoas que, com ele, partilham o quotidiano. E que é a chave para um estrondoso sucesso.

O êxito provém da curiosidade, relativamente às circunstâncias misteriosas da morte da esposa e do filho do autor da referida peça, Abbás Karam Yunis. Alguns acusam-no directamente, baseando-se na antipatia pessoal que lhe votam. Outros há que o defendem. A maior parte concede-lhe o benefício da dúvida.

Naguib Mafuz desfaz o mistério relatando os acontecimentos segundo os diferentes pontos de vista das principais personagens que intervêm na história: Abbás, o dramaturgo; Halima, a mãe; Karam, o pai; e Tariq Ramadán, o rival.

A voz de cada um destes narradores imprime um cunho diferente à história que é contada várias vezes. A trama circula, toda ela, à volta da concepção da peça de teatro Festas de Casamento e da especulação acerca do quanto ela tem de autobiográfico.
Cada qual imprime na sua própria narrativa, de acordo com aquilo que sabe, com a escassa informação a que tem acesso (cognições), a marca dos seus próprios traços de personalidade (componentes afectiva e comportamental das atitudes), colorindo-a com as suas próprias percepções e com a sua forma personalizada de interpretar a realidade.

Tariq Ramadán, o amante desprezado, dominado pelo ciúme e pela inveja, tenta incriminar o autor da peça pela morte da esposa e do filho, de forma a fazer coincidir o desenvolvimento da trama Festas de casamento com a vida real do autor – Abbás Karam Yunis.

O pai, Karam Yunis, ex ponto do teatro, dedica-se a actividades ilegais – jogo, tráfico de ópio. O cinismo é o traço principal da sua personalidade. A sua aparente aversão à hipocrisia leva-o a considerar-se como superior ao resto da humanidade. Acha-se mesmo o único capaz de se assumir tal como é, sem pretender agradar a ninguém e fazer às claras aquilo que os outros fazem de forma camuflada, a começar pelo próprio Governo.

No entanto, ao considerar a esposa Halima como hipócrita, tendo em conta o seu passado, é ele próprio quem cai na hipocrisia, persistindo na visão ultra conservadora relativa ao papel e comportamento sexual da mulher na sociedade.

Halima, mãe de Abbás, nutre um amor desmesurado pelo filho a par de uma confiança que raia a cegueira. Halima desmistifica a imagem de mulher fatal e até de prostituta, um estereótipo construído a partir das distorções efectuadas pelo seu próprio marido e por Tariq Ramadán, o Iago do romance.

Por último, o protagonista, Abbás Karam Yunis esclarece o mistério. Ele é um autodidacta que construiu a sua própria personalidade, ao longo de uma infância e adolescência, marcadas pela ausência dos pais.

Abbás recorre aos livros, os seus verdadeiros professores e socializadores, transforma-se num idealista. Idealismo esse que o coloca na fronteira do mundo oriental com o ocidental, recolhendo os aspectos mais positivos de ambos os mundos.

É ele que, como narrador omnisciente, porque fisicamente próximo e emocionalmente distante do mundo onde gravitam as restantes personagens, coloca as coisas nos seus devidos lugares.

O seu monólogo é destituído da intenção de convencer um possível interlocutor. Trata-se de um discurso reflexivo, totalmente voltado para si próprio. Desta forma, podemos avaliar as diferenças ocorridas no drama passional Festas de casamento, da banalidade do drama familiar de Abbás, marcado pelas dificuldades económicas típicas de um escritor pobre em início de carreira.

A descrição das ruas do Cairo, a corrupção generalizada a partir dos órgãos governamentais logo após o fim do conflito isrelo-egípcio no final da década de 1970, a acutilante crítica à desigualdade de oportunidades de quem quer triunfar escolhendo a via oposta à da corrupção, a chamada de atenção para o estatuto das mulheres numa sociedade muçulmana, mas ocidentalizada.

O autor foca, também, a dificuldade do público em estabelecer a fronteira entre a realidade e a ficção: “ O que é a virtude senão o símbolo enganador que se repete no teatro e na mesquita?”. Por isso, Abbás, o jovem dramaturgo, é “...um enigma obscuro(...)” na mente tortuosa do seu pai, Karam Yunis.

Abbás, serve-se da imagem estereotipada que tem que tem dos pais para compor as duas personagens principais da peça, estilizando-as. O pai aparece na peça como o grande vilão. A mãe como mulher fatal. Apesar da consciência das nuances que separam a vida real do teatro, o dramaturgo sente necessidade de enfatizar as características negativas pois, para ele, “a maldade é a fonte do teatro”. Abbás serve-se do Mal como instrumento pedagógico com objectivo de mudar o mundo e transformar mentalidades.

O pessimismo e a depressão por ausência de um contacto social satisfatório, é que o levam a refugiar-se na ficção.

Em palco “as belas palavras não se transformavam em factos, mas em imagens. Dançavam a dança da morte (triunfo do espírito) e eu aplaudia-os fora da pista.”

Os pais extinguem-lhe a energia anímica, incapacitando-o de tomar qualquer tipo de atitude. Na página 120, há uma intertextualidade com Édipo Rei de Sófocles quando afirma que gostaria de matar o pai para libertar a mãe. O pai, por sua vez, considera que o filho “sofre da doença da virtude”.

Tahyia, a esposa, arranca Abbás temporariamente da vida dedicada ao ideal que queria levar. Abbás não consegue viver uma vida normal, mergulhada no quotidiano da banalidade.

A morte de Tahyia e do filho são, na realidade, a libertação para o mundo do Sonho e da Arte.

O desejo de viver é, apesar de tudo, mais forte do que a atracção pelo abismo.

Um livro pertinente.

Pelo cruzamento das diferentes vias que convergem para a auto-estrada da Verdade.

De uma perspicácia impressionante.


Cláudia de Sousa Dias

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