“O Amante” de Marguerite Duras (Difel)
A obra que trouxe a consagração definitiva a Marguerite Duras é um livro de teor autobiográfico. Trata-se do relato de um episódio marcante na vida da personagem principal. O ritmo do texto é marcado pela repetição anafórica no início de cada parágrafo, uma das características que lhe confere um encanto poético muito especial, acentuando a emotividade patente nas palavras e no exotismo tropical onde decorre a acção.
A temática explorada começa por ser a da desagregação das relações familiares e do enfraquecimento dos laços afectivos, numa família monoparental. A instabilidade emocional da progenitora (maníaco-depressiva), alia-se às dificuldades financeiras que levam à anomia, isto é ao desregramento pela dificuldade progressiva em incutir normas e padrões de comportamento. A conjuntura leva a família a mergulhar numa situação de “pobreza envergonhada” ou pobreza relativa, obrigando-a viver em função das aparências com o objectivo de manter o estatuto até aí usufruído.
A protagonista, uma jovem adolescente de quinze anos possui, para além do seu temperamento rebelde e indomável – expresso até na sua forma de vestir com uma certa androginia em consonância com a sua ambiguidade sexual –, um tipo de inteligência invulgarmente perspicaz e uma sensibilidade fora do comum. A situação familiar obriga-a a um amadurecimento relâmpago, despoletado pelo despertar sexual ocorrido antes de completar dezasseis anos. Uma das melhores cenas do livro prende-se, exactamente, com a descrição da transformação radical ocorrida no seu rosto. Por outro lado, é ela quem, desde o início, domina a relação com o homem mais velho. A jovem que descobre o poder da sua própria beleza e da sua sexualidade. E cujo principal trunfo reside na a capacidade de tirar partido dos seus defeitos, transformando-os em qualidades.
A mãe é um ser cativante mas frágil, sexualmente reprimido, e conservadora. Uma mulher de temperamento bipolar – maníaco-depressivo –, que sucumbe a um esgotamento nervoso, motivado pela perda do marido e pela crescente instabilidade económica. Nutre, ao mesmo tempo, um certo desprezo pelos seres fisicamente mais débeis.
Por isso mesmo, o temperamento dos dois irmãos irá condicionar o comportamento da mãe e consequentemente o destino da família: o irmão mais velho é um indivíduo indolente, violento e irresponsável ao passo que o irmão mais novo é sensível, meigo submisso e carente.
As mulheres e a sua situação social neste contexto particular são objecto de análise de Marguerite Duras nesta obra. São mulheres desajustadas - “Sós, umas rainhas” - afundadas na solidão, no tédio e no descontentamento. Como Marie-Claude, a misteriosa americana que usa “vestidos neutros estreitos e muito claros como o Estio no coração do Inverno”. Ou seja, que veste uma personalidade que não é a sua. Ou como Betty Fernandez: bela, soberana e démodé, uma mulher que organiza reuniões para as quais convergem os intelectuais da época, a maior parte deles ilustres desconhecidos. O marido é extremamente culto, admirador de Balzac e que cativa a admiração da protagonista - “Tinha uma civilidade sublime, até no saber” – uma amizade que se prolonga no tempo apesar das diferenças ideológicas: Marguerite Duras é militante do Partido Comunista Francês e Fernandez é colaborador do regime nazi.
O namorado oriental da jovem adolescente é alguém extremamente rico, filho de um próspero empresário chinês, apaixonado, emocionalmente frágil – patente no servilismo e na extrema devoção votada à família, dependente e de constituição física delicada. O conjunto de todas estas características proporciona-lhe o desprezo da família da namorada. Neste contexto, a Autora aborda a dimensão do racismo europeu em relação aos orientais na Indochina e, também, o reverso da medalha, isto é o racismo dos orientais em relação aos colonos (exploradores).
O Amante é uma obra de elevado teor emocional, contada num registo poético que, perde bastante da sua expressividade original após a tradução. Esta limitação é, em grande parte, sanada pelo belíssimo final que foge ao tom melancólico ao longo do romance.
O livro é colorido, na sua maior parte, com as tonalidades da paixão; o discurso é, para além de emotivo é extremamente sensorial, cinestésico, onde predominam as sensações tácteis. E é opressivamente quente, húmido e pesado o clima tropical da Indochina, recriando um cenário onde se encontram dois amantes com uma nitidez quase que palpável. O “clima” emocional entre os dois protagonistas confunde-se com este clima geográfico. Trata-se de um relacionamento cuja intensidade atinge, por vezes, laivos de obsessão, desespero, pelo facto de não ser socialmente aceite e ver-se obrigado a permanecer confinado ao limites do apartamento onde se encontram.
Ao ponto de o nome dele nem ser sequer mencionado ao longo do romance. É uma bela história de amor de um amante sem nome. O que só vem aumentar a intensidade na narrativa que envolve as duas personagens, algo de mútuo e de intensidade compatível de parte a parte. É, talvez, por este motivo, que a Autora se refere aos amantes apenas como “Ela”, “Ele”.
O mesmo não se passa com a colega de quarto por quem se sente atraída. O nome de Hélène Lagonelle é constantemente repetido de forma a criar um jogo fonético interessantíssimo e musical na versão francesa que se perdeu completamente com a tradução. Hélène Lagonelle é o objecto para onde converge a líbido masculina da personagem, cuja psique tem tanto de andrógino como a sua forma de vestir. Mas não é uma atracção correspondida. Para além de efémera, pois dura somente enquanto a orientação sexual da jovem não está ainda completamente definida.
Talvez por isso Hélène L. (Elle=Ela) tenha direito a nome. Afinal trata-se de uma transgressão não consumada. O mesmo não acontece com o amante chinês, uma paixão/transgressão social concreta, consumada e transposta para o plano real.
Finalmente, os dois últimos parágrafos são a vingança face à prepotência ditada pelas circunstâncias sociais, culturais e psicológicas que marcaram o passado e condicionaram o futuro das duas personagens principais.
Um livro que fala do amor inter-racial no contexto do imperialismo francês.
Uma catarse pela pena de uma das autoras mais lidas no século XX.
Cláudia de Sousa Dias
A temática explorada começa por ser a da desagregação das relações familiares e do enfraquecimento dos laços afectivos, numa família monoparental. A instabilidade emocional da progenitora (maníaco-depressiva), alia-se às dificuldades financeiras que levam à anomia, isto é ao desregramento pela dificuldade progressiva em incutir normas e padrões de comportamento. A conjuntura leva a família a mergulhar numa situação de “pobreza envergonhada” ou pobreza relativa, obrigando-a viver em função das aparências com o objectivo de manter o estatuto até aí usufruído.
A protagonista, uma jovem adolescente de quinze anos possui, para além do seu temperamento rebelde e indomável – expresso até na sua forma de vestir com uma certa androginia em consonância com a sua ambiguidade sexual –, um tipo de inteligência invulgarmente perspicaz e uma sensibilidade fora do comum. A situação familiar obriga-a a um amadurecimento relâmpago, despoletado pelo despertar sexual ocorrido antes de completar dezasseis anos. Uma das melhores cenas do livro prende-se, exactamente, com a descrição da transformação radical ocorrida no seu rosto. Por outro lado, é ela quem, desde o início, domina a relação com o homem mais velho. A jovem que descobre o poder da sua própria beleza e da sua sexualidade. E cujo principal trunfo reside na a capacidade de tirar partido dos seus defeitos, transformando-os em qualidades.
A mãe é um ser cativante mas frágil, sexualmente reprimido, e conservadora. Uma mulher de temperamento bipolar – maníaco-depressivo –, que sucumbe a um esgotamento nervoso, motivado pela perda do marido e pela crescente instabilidade económica. Nutre, ao mesmo tempo, um certo desprezo pelos seres fisicamente mais débeis.
Por isso mesmo, o temperamento dos dois irmãos irá condicionar o comportamento da mãe e consequentemente o destino da família: o irmão mais velho é um indivíduo indolente, violento e irresponsável ao passo que o irmão mais novo é sensível, meigo submisso e carente.
As mulheres e a sua situação social neste contexto particular são objecto de análise de Marguerite Duras nesta obra. São mulheres desajustadas - “Sós, umas rainhas” - afundadas na solidão, no tédio e no descontentamento. Como Marie-Claude, a misteriosa americana que usa “vestidos neutros estreitos e muito claros como o Estio no coração do Inverno”. Ou seja, que veste uma personalidade que não é a sua. Ou como Betty Fernandez: bela, soberana e démodé, uma mulher que organiza reuniões para as quais convergem os intelectuais da época, a maior parte deles ilustres desconhecidos. O marido é extremamente culto, admirador de Balzac e que cativa a admiração da protagonista - “Tinha uma civilidade sublime, até no saber” – uma amizade que se prolonga no tempo apesar das diferenças ideológicas: Marguerite Duras é militante do Partido Comunista Francês e Fernandez é colaborador do regime nazi.
O namorado oriental da jovem adolescente é alguém extremamente rico, filho de um próspero empresário chinês, apaixonado, emocionalmente frágil – patente no servilismo e na extrema devoção votada à família, dependente e de constituição física delicada. O conjunto de todas estas características proporciona-lhe o desprezo da família da namorada. Neste contexto, a Autora aborda a dimensão do racismo europeu em relação aos orientais na Indochina e, também, o reverso da medalha, isto é o racismo dos orientais em relação aos colonos (exploradores).
O Amante é uma obra de elevado teor emocional, contada num registo poético que, perde bastante da sua expressividade original após a tradução. Esta limitação é, em grande parte, sanada pelo belíssimo final que foge ao tom melancólico ao longo do romance.
O livro é colorido, na sua maior parte, com as tonalidades da paixão; o discurso é, para além de emotivo é extremamente sensorial, cinestésico, onde predominam as sensações tácteis. E é opressivamente quente, húmido e pesado o clima tropical da Indochina, recriando um cenário onde se encontram dois amantes com uma nitidez quase que palpável. O “clima” emocional entre os dois protagonistas confunde-se com este clima geográfico. Trata-se de um relacionamento cuja intensidade atinge, por vezes, laivos de obsessão, desespero, pelo facto de não ser socialmente aceite e ver-se obrigado a permanecer confinado ao limites do apartamento onde se encontram.
Ao ponto de o nome dele nem ser sequer mencionado ao longo do romance. É uma bela história de amor de um amante sem nome. O que só vem aumentar a intensidade na narrativa que envolve as duas personagens, algo de mútuo e de intensidade compatível de parte a parte. É, talvez, por este motivo, que a Autora se refere aos amantes apenas como “Ela”, “Ele”.
O mesmo não se passa com a colega de quarto por quem se sente atraída. O nome de Hélène Lagonelle é constantemente repetido de forma a criar um jogo fonético interessantíssimo e musical na versão francesa que se perdeu completamente com a tradução. Hélène Lagonelle é o objecto para onde converge a líbido masculina da personagem, cuja psique tem tanto de andrógino como a sua forma de vestir. Mas não é uma atracção correspondida. Para além de efémera, pois dura somente enquanto a orientação sexual da jovem não está ainda completamente definida.
Talvez por isso Hélène L. (Elle=Ela) tenha direito a nome. Afinal trata-se de uma transgressão não consumada. O mesmo não acontece com o amante chinês, uma paixão/transgressão social concreta, consumada e transposta para o plano real.
Finalmente, os dois últimos parágrafos são a vingança face à prepotência ditada pelas circunstâncias sociais, culturais e psicológicas que marcaram o passado e condicionaram o futuro das duas personagens principais.
Um livro que fala do amor inter-racial no contexto do imperialismo francês.
Uma catarse pela pena de uma das autoras mais lidas no século XX.
Cláudia de Sousa Dias
12 Comments:
Acho que gostaria de lê-lo em francês!
csd
Também li, Cláudia, mas a memória não guarda tudo, por isso li este teu artigo com calma e gosto. Boa análise, como sempre.
Um grande beijinho e saudades.
:-)*
como estás tu Ameixaclaúdia?
Tou bem jp, solitária mas feliz!
Mais tarde passo no faz de conta,dp do almoço!
Um Beijo!
CSD
li o livro há imenso tempo, tinha uns 19 anos, e 'perturbou-me'. li (quase) tudo dela, depois, de forma quase obsessiva. depois vi o filme, e agora, essa memória (visual) é a mais forte. pelo que foi bom re-entrar no romance.
Obrigada, Bella Diva!
É espectacular obter a tua impressão!
Beijo
CSD
Olá,
O meu livro ''Meus pensamentos, nossos mistérios'' ficou pronto.
São cem poemas que pretendem ser uma ferramenta de autoconhecimento.
Para saber mais visite a minha página: www.opoetizador.com
Abraços,
Eduardo de Paula Barreto
Cláudia,
Foi com grande alegria que li sua crítica ao livro "O Amante". Estou lendo pelo primeira vez - embora ele esteja há, pelo menos, uns 5 anos em minha estante... - Você o colocou de uma maneira que também senti... quando leio algumas páginas, tenho que parar, pois fico incomodada, sufocada, depois retomo a leitura. Causa-me uma certa angústia o modo como a autora escreve.
Bom, aí passeei mais pelo seu blog e ele é muito, muitíssimo interessante; viajei, viajei... e vou voltar !
Um grande abraço,
Daniela
Jundiaí - SP - Brasil
ola... olha eu tenho de faser um trabalho de portugues e para isso tenho de ler este livro... nao me sabes indicar um site onde possa ler este livro gratuitamente??
Perfeito, seu comentario sobre o livro foi perfeito, sou apaixonada por essa história, li e li novamente... Marguirite Duras foi uma das autoras que mais me marcaram.
Nunca coloquei esse livro entre a lista de prediletos. Mas, na realidade o sentimento de que este foi o único livro que me marcou realmente a ferro e fogo é patente. Guardo a mudança que ocorreu em mim, mas há muito só fiquei com uma frase do livro na memória e a história dele, esqueci.
Seu comentário sobre o livro é perfeito. Me fez rever, racionalizar e entender (um pouco mais de mim?).
riso
(e vc me convenceu; vou lê-lo em frâces)
abraço
Fernanda Cristina
Obrigada, Poetizador, Daniela, Caty, Pandora, e Fernanda!
um beijinho
csd
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