“A Relíquia” de Eça de Queirós (Planeta DeAgostini)
A personagem principal, Teodorico Raposo, é um órfão criado por uma tia beata e rica, obcecada pela conquista da graça divina.
O pequeno Raposo, em criança, carente e sexualmente reprimido, cresce, alimentando, secretamente um ódio visceral à religião e à “querida” Titi, ao mesmo tempo que simula uma afeição sincera pela tia e uma devoção genuína pelos ideais desta.
A hipocrisia é a faceta predominante na componente comportamental das atitudes da personagem. Enquanto isso, a componente emocional da mesma atitude é revestida de um cinismo atroz, de uma crueza de sentimentos jamais vista.
Toda as acções de Teodorico são comandadas a partir do impulso sexual que se traduz numa obsessão omnipresente, desenvolvida a partir de uma infância totalmente deserta de qualquer tipo de afecto feminino.
Teodorico é, na fase infantil, uma criança muito sexuada, se considerarmos a voluptuosa sofreguidão com que com que avalia os mais dotados espécimes do género feminino como, por exemplo, “a inglesa do Senhor Barão”.
Na fase adulta, a sua relação com as mulheres obedece à mesma estrutura. Todas as suas aventuras amorosas são apenas passageiros delírios passionais, à semelhança do idílio de Ega e Raquel Cohen em Os Maias. Desde a horizontalíssima e venal Adélia, em Lisboa, às prostitutas do bordel em terras orientais, passando pela aparentemente angelical luveira inglesa de Alexandria. Tanto o bordel como o paquete no qual Raposo viaja para a Terra Santa, são palco de alguns ultra-cómicos episódios que salientam o carácter burlesco da personagem em tudo o que se relaciona com “saias” – o fruto proibido pela tia, poderosa, cuja degustação poderá impedi-lo de aceder ao paraíso financeiro que a austera senhora lhe legará após a sua morte.
A psico-castração forçada a que Raposo é submetido leva ao desenvolvimento de uma certa ambiguidade sexual que se traduz na sua relação com Crispim. Este exprime a sua afeição pelo colega um pouco fora dos cânones considerados “normais” entre dois indivíduos do mesmo sexo. Ambiguidade que está patente na admiração demonstrada por Raposo ao manifestar a sua admiração pela beleza feminil de um deslumbrante efebo árabe, fazendo lembrar T.E. Lawrence e a sua paixão em terras muçulmanas.
A peregrinação de Raposo à Terra Santa tem como objectivo a busca de uma relíquia sagrada que lhe permita conquistar definitivamente a afeição da sua tia e a certeza de ser o único contemplado na tão cobiçada herança.
A relíquia transforma-se, assim, no pretexto para uma aventura sem precedentes, em terras distantes sem o jugo opressivo da encarnação da Virtude que é a sua mãe substituta.
É nesta viagem que Eça tem, mais uma vez, oportunidade de, através do sapiente e eruditíssimo companheiro de viagem de Raposo –, o alemão Topsius, professor universitário, uma espécie de Indiana Jones –, que o Autor exibe a sua mais do que vasta cultura, no que respeita às civilizações antigas e ao conhecimento das descobertas arqueológicas e étnicas pelos mais eminentes académicos europeus seus contemporâneos (ou quase) como Champollion e Chateaubriand.
É ainda, através de Topsius, que Eça se propõe a criticar o pedantismo dos ideólogos alemães e da pretensa superioridade intelectual e militar germânica, antevendo o que se passaria daí a algumas décadas, no início do sec.XX, inclusive o massacre massivo da população judaica na Europa.
Outro episódio interessante é o do sonho de Raposo, uma regressão de dezoito séculos que lhe dá a possibilidade de assistir ao julgamento de Cristo, descortinando, simultaneamente, a “verdade” acerca da Ressurreição e do nascimento da religião cristã.
Um conto dentro do romance que vem retirar a originalidade a alguns autores contemporâneos como Dan Brown em O Código DaVinci e Catherine Clément em Jesus na Fogueira.
É ler para crer…
De facto tudo parece ter sido originado a partir de um mal-entendido e de um plano que o casal romano – Pilatos e Cláudia – que correu mal à última hora…
Da mesma forma a Fatalidade apodera-se do destino de Raposo. Um descuido faz inverter a Roda da Fortuna para o nosso (anti) herói.
E é sempre verdade que “mais depressa se apanha um mentiroso do que um coxo…
O estilo predominante em A Relíquia está impregnado de sarcasmo, enquanto que a estrutura narrativa em relação à sucessão dos factos, exibe a profunda ironia face ao prazer sádico dos deuses, ou qualquer força superior que se assemelhe a uma divindade, em brincar com os desejos humanos – da mesma forma que o felino se diverte com a presa antes de a aniquilar, devorando-a.
O último capítulo está particularmente recheado de situações deste género. E, quando o autor, já nas últimas páginas, parece atribuir um final moralizante à história, de inspiração assaz hegeliana – exaltando o primar da consciência e a noção de que a hipocrisia não compensa –, não resiste a terminar com uma tirada de um cinismo contundente, ao professar a crença de que só não triunfa quem não sabe mentir de forma convincente, mesmo quando desmascarado…
Mais uma obra acutilante feita para abalar consciências e espetar a farpa bem no meio da ferida.
Para bom entendedor…
Cláudia de Sousa Dias
O pequeno Raposo, em criança, carente e sexualmente reprimido, cresce, alimentando, secretamente um ódio visceral à religião e à “querida” Titi, ao mesmo tempo que simula uma afeição sincera pela tia e uma devoção genuína pelos ideais desta.
A hipocrisia é a faceta predominante na componente comportamental das atitudes da personagem. Enquanto isso, a componente emocional da mesma atitude é revestida de um cinismo atroz, de uma crueza de sentimentos jamais vista.
Toda as acções de Teodorico são comandadas a partir do impulso sexual que se traduz numa obsessão omnipresente, desenvolvida a partir de uma infância totalmente deserta de qualquer tipo de afecto feminino.
Teodorico é, na fase infantil, uma criança muito sexuada, se considerarmos a voluptuosa sofreguidão com que com que avalia os mais dotados espécimes do género feminino como, por exemplo, “a inglesa do Senhor Barão”.
Na fase adulta, a sua relação com as mulheres obedece à mesma estrutura. Todas as suas aventuras amorosas são apenas passageiros delírios passionais, à semelhança do idílio de Ega e Raquel Cohen em Os Maias. Desde a horizontalíssima e venal Adélia, em Lisboa, às prostitutas do bordel em terras orientais, passando pela aparentemente angelical luveira inglesa de Alexandria. Tanto o bordel como o paquete no qual Raposo viaja para a Terra Santa, são palco de alguns ultra-cómicos episódios que salientam o carácter burlesco da personagem em tudo o que se relaciona com “saias” – o fruto proibido pela tia, poderosa, cuja degustação poderá impedi-lo de aceder ao paraíso financeiro que a austera senhora lhe legará após a sua morte.
A psico-castração forçada a que Raposo é submetido leva ao desenvolvimento de uma certa ambiguidade sexual que se traduz na sua relação com Crispim. Este exprime a sua afeição pelo colega um pouco fora dos cânones considerados “normais” entre dois indivíduos do mesmo sexo. Ambiguidade que está patente na admiração demonstrada por Raposo ao manifestar a sua admiração pela beleza feminil de um deslumbrante efebo árabe, fazendo lembrar T.E. Lawrence e a sua paixão em terras muçulmanas.
A peregrinação de Raposo à Terra Santa tem como objectivo a busca de uma relíquia sagrada que lhe permita conquistar definitivamente a afeição da sua tia e a certeza de ser o único contemplado na tão cobiçada herança.
A relíquia transforma-se, assim, no pretexto para uma aventura sem precedentes, em terras distantes sem o jugo opressivo da encarnação da Virtude que é a sua mãe substituta.
É nesta viagem que Eça tem, mais uma vez, oportunidade de, através do sapiente e eruditíssimo companheiro de viagem de Raposo –, o alemão Topsius, professor universitário, uma espécie de Indiana Jones –, que o Autor exibe a sua mais do que vasta cultura, no que respeita às civilizações antigas e ao conhecimento das descobertas arqueológicas e étnicas pelos mais eminentes académicos europeus seus contemporâneos (ou quase) como Champollion e Chateaubriand.
É ainda, através de Topsius, que Eça se propõe a criticar o pedantismo dos ideólogos alemães e da pretensa superioridade intelectual e militar germânica, antevendo o que se passaria daí a algumas décadas, no início do sec.XX, inclusive o massacre massivo da população judaica na Europa.
Outro episódio interessante é o do sonho de Raposo, uma regressão de dezoito séculos que lhe dá a possibilidade de assistir ao julgamento de Cristo, descortinando, simultaneamente, a “verdade” acerca da Ressurreição e do nascimento da religião cristã.
Um conto dentro do romance que vem retirar a originalidade a alguns autores contemporâneos como Dan Brown em O Código DaVinci e Catherine Clément em Jesus na Fogueira.
É ler para crer…
De facto tudo parece ter sido originado a partir de um mal-entendido e de um plano que o casal romano – Pilatos e Cláudia – que correu mal à última hora…
Da mesma forma a Fatalidade apodera-se do destino de Raposo. Um descuido faz inverter a Roda da Fortuna para o nosso (anti) herói.
E é sempre verdade que “mais depressa se apanha um mentiroso do que um coxo…
O estilo predominante em A Relíquia está impregnado de sarcasmo, enquanto que a estrutura narrativa em relação à sucessão dos factos, exibe a profunda ironia face ao prazer sádico dos deuses, ou qualquer força superior que se assemelhe a uma divindade, em brincar com os desejos humanos – da mesma forma que o felino se diverte com a presa antes de a aniquilar, devorando-a.
O último capítulo está particularmente recheado de situações deste género. E, quando o autor, já nas últimas páginas, parece atribuir um final moralizante à história, de inspiração assaz hegeliana – exaltando o primar da consciência e a noção de que a hipocrisia não compensa –, não resiste a terminar com uma tirada de um cinismo contundente, ao professar a crença de que só não triunfa quem não sabe mentir de forma convincente, mesmo quando desmascarado…
Mais uma obra acutilante feita para abalar consciências e espetar a farpa bem no meio da ferida.
Para bom entendedor…
Cláudia de Sousa Dias
10 Comments:
Full Transcript of ValueClicka TMs 3Q05 Conference Call a " Prepared Remarks
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Cláudia, agora (re)lançaste-te ao Eça! Conheces Emigração, Força Civilizadora (um relatório que ele fez como embaixador sobre os primeiros fluxos "modernos" de emigração no mundo). É espantoso!
Depois: tens lá no Divas um convite para vires a Aveiro no próximo sábado - e a Maria heli sugeriu que viesses com ela.
E depois: estamos a votos no Escritor Famoso, e tens que votar nos textos-poemas que mais gostaste, para o concurso "interno" em que os pp concorrentes votam
Combinado!Vou já ao Divas e mais logo já falo à Maria Heli!
Quanto ao Eça eu estou agora a comentar a obra dele, apesar de a intercalar com outros autores tb.
Mas para já os próximos que vou analisar serão "O primo Basílio" e O conde de Abranhos"
Mas vou de certeza chegar á obra de que falaste!
É, provavelmente nas "Cartas de Paris" ou então na altura em que ele esteve em Londres...
Beijinho!
Cláudia
Para bom entendedor...meio cinismo basta.
Andas bem ameixaClaudia?
beijinhos
Sim, JP!
Acho que, provavelmente, vamos conhecer-nos em breve...!
CSd
olá
so passei para te desejar um bom fim de semana :O)
bjinho
Gosto muito de crítica literária.
E gostava de ter acesso ao teu email para conversas mais alongadas que não cabem nestes "espaços" de trocas rápidas de opiniões.
Achei-te muito interessante mas o tempo foi escasso para mais desenvolvimentos. (se quiseres manda para o meu, que está disponível lá)
Abraço
Angel obrigada pela tua visita, mais uma vez!
Palavras, tb adorei conhecer-te!
É claro que te dou o meu e-mail! Até já Beijinhos!
CSD
Excelente recensão.
Vais muito mais longe do que eu na análise do livro, sobretudo porque te conseguiste aperceber de alguns pormenores que eu desconhecia.
Mas este livro é um daqueles que quero reler. Um dos poucos do mestre que só li uma vez.
Bjs
Nuno
Obrigada mais uma vez, Nuno!
és muito generoso nos comentários que fazes...
Abraço
CSD
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