“Os Maias” de Eça de Queirós (Planeta DeAgostini)
O livro mais lido de Eça de Queirós, um clássico largamente analisado e discutido que reflecte a imensa e a vastíssima cultura do autor, à qual se junta um sentido crítico que deixa entrever um cepticismo refinado. Esta última característica é baseada num pensamento de raiz positivista e, paradoxalmente, numa fé absoluta no socialismo utópico de Proudhon. Eça defendia um humanismo que preconizava “a erradicação definitiva dos pobres na terra” através da implantação do ideal republicano.
Em Os Maias, a personalidade de Eça desdobra-se nas duas personagens principais: Ega, o cínico intelectual de Celorico, o seu alter-ego, praticamente um heterónimo; e Carlos da Maia, o Príncipe, o ideal de beleza e inteligência, nobreza e cultura, que o autor gostaria de ver em si mesmo – o seu super-ego.
Com uma sólida amizade construída no tempo da boémia em Coimbra, os dois jovens identificam-se a tal ponto que os laços que os unem resistem, incólumes, à erosão das décadas, às convulsões políticas e às oscilações sentimentais, nem sempre dotadas de bom senso por parte de Ega, ou aos devaneios passionais de Carlos.
Todos os frequentadores do Ramalhete – residência que Carlos partilha com o avô, Afonso – são homens com quem Carlos se identifica ou, simplesmente, admira: Craft, o fleumático inglês, coleccionador de antiguidades; Cruges, o músico sobredotado; Alencar, o poeta romântico que nutre uma devoção sincera pela família Maia, desde os seus tempos de juventude.
As amizades cultivadas fora do círculo restrito do Ramalhete são, normalmente, baseadas noutros interesses não raro ligados a estratégias de sedução que visam as requintadas esposas desses mesmos cavalheiros. Homens a quem não admiram nem respeitam: o Conde de Gouvarinho, político boçal que tem a seu cargo a instrução pública; o banqueiro Cohen, um homem que vive para o lucro e a quem Ega considera um dever moral humilhar seduzindo-lhe a sua bela Raquel.
O anti-herói, Dâmaso Salcede, é uma das personagens mais pitorescas do romance, devido ao seu carácter burlesco. Dâmaso é o estereótipo do saloio típico que se quer dar ares de aristocrata. Tenta, inicialmente, copiar todos os gestos e hábitos de Carlos com o objectivo de conseguir a imagem do “chique a valer”.
As reuniões na casa das janelas verdes – Ramalhete –, na qual Dâmaso consegue, durante algum tempo, infiltrar-se habilidosamente, fazem parte de um mundo totalmente masculino onde, amigavelmente, se discute literatura, filosofia, política. Onde se fala de mulheres, mas cuja ausência se faz sentir ao longo de todo o romance – excepto durante uma curta visita de Maria Eduarda, na altura em que Afonso se refugia temporariamente em Santa Olávia. No Ramalhete joga-se poker, whist e, ao mesmo tempo, degusta-se os mais requintados charutos. Voltaire, Guizot, Michelet e outros pilares do racionalismo agnóstico são trazidos à baila, enquanto se critica o lirismo de Hugo e se avilta o romantismo na poesia.
As Mulheres
Poderíamos começar por observar Maria Monforte, a mãe de Carlos e Maria Eduarda: bela e fatal, rica, exuberante ostensivamente imoderada. Uma mulher manipuladora, que sabe valer-se da sua estonteante beleza. Conhece o poder do seu corpo e a forte atracção sexual que exerce em Pedro da Maia e nos outros homens em geral, para melhor os dominar e conseguir os seus intentos.
Afonso é o único a escapar ao seu sortilégio: Maria tem uma mancha no seu passado que a torna inadequada a um casamento com um fidalgo da família Maia: um pai com um passado como traficante de escravos. A beleza fatal de Maria precipita o fim de Pedro da Maia.
As meretrizes Concha, Paca, Cármen Filósofa e Lola são, normalmente, mulheres de aspecto pouco saudável, vagamente sifilítico, pouco dadas a cuidados de higiene e ostensivamente grosseiras.
Por sua vez, a Condessa de Gouvarinho é uma mulher bela, exuberante e carente, mas sem o fatalismo de Maria Monforte. Carlos não hesita em seduzi-la para logo dela se enfastiar. Trata-a de forma algo cobarde, ao conquistá-la por mero capricho, saturando-se dela ainda antes de a possuir. Uma atitude que condiz com a sua personalidade volúvel de diletante.
A audácia quase masculina da condessa, a sua aparência provocante, o fogo dos cabelos ruivos a inextinguível paixão por Carlos e os detalhes por vezes pouco harmoniosos das suas toilettes, dão-lhe um ar de cortesã de luxo. Um aparência que contrasta fortemente com o aspecto de deusa inatingível, que se eleva acima da humanidade, que Carlos tanto admira em Maria Eduarda – a mulher ideal que todos os homens gostariam de possuir, mas com a qual o feliz contemplado se regozija de não pertencer a mais ninguém.
Raquel Cohen, a bela judia de aspecto romântico, tem o ar de uma Dama das Camélias e despoleta o delírio passional em João da Ega. Um delírio passional que termina bruscamente na noite do baile de máscaras, dado pelo casal Cohen, ao qual o adúltero par pretende comparecer fantasiado de Mefistóles e Margarida. O cinismo de Ega exibe-se despudoradamente, na sua máscara de corruptor de almas, que nada mais é do que a sua verdadeira natureza. Ega inverte, literalmente, a situação, considerando-se como a vítima insultada com a expulsão perpetrada pelo marido traído.
Raquel não é inculta para os padrões de Ega. É, pelo contrário, uma mulher que consegue discutir literatura mas sem ser literata ou “produtora de literatura”, um tipo social que despertava, na época, a misoginia masculina e o desprezo e desconfiança femininos. Uma mulher que “desse cartas no ensino da filosofia, das belas letras” ou que fosse, simplesmente, dotada de pensamento crítico era, quer para a personagem, Ega, quer para o autor, Eça, como “um monstro de duas cabeças”.
Ega despreza Raquel por esta se submeter à violência do marido mas também não lhe oferece uma alternativa válida para viver com ela em sociedade, assumindo pública e corajosamente o seu romance.
Já Maria Eduarda entra em cena envolta como que numa auréola de luz branca e dourada, pairando acima do solo como uma deusa – Juno – deslumbrando tudo e todos com a sua helénica e fria beleza de mármore.
Eduarda mostra-se sedutora para com Carlos, enquanto objecto de sedução passivo – mulher objecto. E idílica, no cenário bucólico da Toca, tal como a Joaninha de A cidade e as Serras. O retiro dos dois apaixonados na Toca é como que o recanto íntimo do casal olímpico, Júpiter e Juno, personificado por Carlos e Maria Eduarda como sendo o casal de siblings, fechado em si mesmo.
Nada se sabe praticamente, pelo menos na primeira pessoa, sobre o pensamento, sentimentos, convicções ou valores de Maria Eduarda. As suas atitudes são-nos sempre transmitidas a partir dos olhos de outrem ou idealizadas e sublimadas pelo narrador que a descreve como o arquétipo perfeito de todas as perfeições.
É facilmente perceptível que Maria Eduarda é viajada, habituada a todos os requintes. Contudo, apesar de bem relacionada, não se lhe conhecem amizades femininas respeitáveis….Ex: quando demonstra não conhecer a esposa do Dr. Chaplain, seu médico pessoal em Paris.
Miss Sarah, a preceptora, ostenta uma aparência correcta e uma obsessão compulsiva pela ordem na disposição dos objectos no seu quarto. O que sugere uma forte repressão sexual, expressa na comoção face às atenções de Carlos, fazendo adivinhar uma forte carência afectiva.
A construção da personalidade de Carlos
A educação de Carlos é, desde cedo, tomada a cargo pelo patriarca da família – Afonso da Maia – um homem austero, detentor das virtudes de um patrício da antiga Roma republicana como Catão ou Múcio Cévola.
Carlos recebe uma educação de marcado teor britânico, cultura que Afonso da Maia admira pelo racionalismo e liberalismo económico. É sob a alçada do Avô e de Mr Jones, o preceptor, que Carlos desenvolve o gosto pelas ciências e pela educação física, quase marcial, cujo obectivo é o de desenvolver a sua robustez e virilidade.
A educação de Carlos é o oposto da de Eusebiozinho, hiper-protegido e mimado pelas mulheres da família, ignorantes e beatas. Este último acaba por receber uma instrução clássica, totalmente desadequada ao seu nível etário e descurando totalmente o desenvolvimento físico. O resultado é evidente...
Apesar da sua esmerada educação, o diletantismo e a dispersão de Carlos, já adulto, atrofiam a sua vida profissional e pessoal. Por outro lado, a inveja dos colegas quando começa a ter os primeiros sucessos, quer como clínico quer como investigador científico, fazem com que este caia no ridículo e seja desacreditado, levando-o a desinteressar-se do exercício da sua profissão.
Aliás, tanto Carlos como Ega, têm o mesmo problema de desmotivação no trabalho devido, em parte, à desafogadíssima situação financeira em que se encontram e, também, ao atraso intelectual que grassa o país e os precipita para uma vida ociosa para desespero de Afonso da Maia.
O próprio Cruges que vive apenas e só para a música tem dificuldade em encontrar público à altura, não só da sua própria música como até para os grandes mestres como Beethoven.
Eça, o sociólogo
A crítica e análise social são abundantes raiando, por vezes, a maledicência em Os Maias. São uma constante ao longo de toda a obra, sobretudo no que se refere ao domínio da Igreja na educação e formação da consciência colectiva. São igualmente, evidenciadas a falta de conteúdo nos programas políticos de desenvolvimento das infra-estruturas, tanto em Portugal como nas colónias, bem como a vacuidade relativamente a ideias válidas pelos políticos portugueses.
O episódio das corridas no hipódromo, no qual se salienta a falta de gosto nas toilettes escolhidas para a ocasião – demasiada exuberância ou demasiada austeridade – mostram alguns tipos sociais característicos da sociedade lisboeta de então, onde predomina, sobretudo a pobreza de espírito.
Outra situação semelhante é a do sarau literário e musical onde triunfam os medíocres e o público, particularmente as senhoras, que demonstram ostensivamente e de forma algo vexatória a sua ignorância.
Os Maias é sobretudo uma história que fala da hipocrisia das normas morais de uma época – patente na manifestação do repúdio à ofensa gratuita a alguém motivada unicamente pela inveja e pelo despeito – emoções incarnadas por Dâmaso e Eusebiozinho. A inveja é, sobretudo evidenciada pelo ridículo Dâmaso, ao tentar, invariavelmente, passar por aquilo que não é. Este estoura de despeito com a preferência de Maria Eduarda, Rosa e até da cadela Niniche por Carlos.
A inveja de Dâmaso é um dos motivos que farão despoletar a tragédia através dos seus laços de parentesco com o Sr. Guimarães – o elo de ligação de Maria Eduarda com as suas origens.
Ainda relacionado com a inveja e desejo de difamação, características que o autor quase que identifica como sentimentos nacionais, é a chamada de atenção para o jornalismo sensacionalista e difamatório tão apreciado pelo público português, mesmo nos nossos dias. Um jornalismo de pacotilha, personificada pela gazeta A Corneta do Diabo e pelo respectivo dono, o ascoroso palma Cavalão. Trata-se de um pasquim onde não figuram artigos científicos ou culturais cuja ausência é “proveniente do desejo dos medíocres em que não se aluda muito aos grandes”. Eça não resiste em espetar uma das suas mais contundentes farpas ao afirmar que “…os jornais que abdicam das funções de estudo e da crítica se terem tornado folhas rasteiras de informação caseira, calam-se por se saberem incompetentes”.
Segredo e Preconceito
O secretismo é, por outro lado, o útero onde se desenvolve a tragédia. Afonso da Maia alimentou o desenvolvimento da fatalidade pela intransigência manifestada, pelo afastamento total ao evitar conhecer a esposa de Pedro, bem como dos netos e ao refugiar-se na sua torre de marfim. E, sobretudo, em não verificar pessoalmente a morte de Maria Eduarda em Paris.
A Paixão de Carlos
Os Maias é também uma obra que fala do poder da paixão sobre a razão. O facto de Carlos saber que Maria Eduarda é sua irmã, não faz com que o desejo desapareça. Mas é talvez, o manípulo que o obriga a olhar a sua deusa mais desapaixonadamente – por sabê-la já parte de si, não precisando de a possuir – com maior objectividade, um interruptor que lhe desliga a paixão. Apercebe-se que ela se tornou uma fêmea activa, durante o acto sexual, fazendo-lhe aflorar a sua misoginia. A fêmea inibe-o. E o desejo animal da mulher apavora-o, matando-lhe gradualmente a virilidade. Tal como com D. Juan, Carlos gosta de mulheres receptivas, mas semi-frígidas, de preferência que não tenham orgasmos.
Eduarda deixou de ser a mulher ideal para ser apenas…mulher. E, com isso, perdeu o encanto.
A (des)codificação da tragédia
A utilização de indícios e presságios é frequente ao longo da obra. Logo no primeiro capítulo, Vilaça, o administrador dos Maias, refere que “…eram sempre fatais aos Maias as paredes do Ramalhete…”, uma predição sibilina, confirmada no final “…pois fatais foram!”
Tal como a sombrinha escarlate de Maria Monforte “uma mancha de sangue” no meio do omnipresente rosa da toilette – presságio de morte.
Outra profecia, desta vez a respeito de Carlos, é ditada por Ega quando o compara a D.Giovanni – cap VI – dizendo que Carlos”… haveria de vir a acabar como ele (D.Giovanni ou D. Juan), numa tragédia infernal”.
O penúltimo capítulo está povoado de sinais de tragédia desde a melancolia do tempo de Inverno, que se reflecte no olhar de Pedro da Maia, no retrato a óleo, como que observando o destino dos seus descendentes, até à vela que “…ia morrendo” no castiçal segurado por Afonso da Maia quando este olha para Carlos pela última vez; “…a luz que sobre o veludo espalha um tom de sangue”, ao cair da cortina, com as armas dos Maias, logo após o patriarca ter deixado o escritório – indício de que, para a personagem, foi aquela a última cena.
No final, após o abandono do Ramalhete, assiste-se ao triunfo da inércia e do hedonismo, no qual Carlos e Ega mergulham. A busca do prazer como objectivo último na vida. Apesar de pregarem o estoicismo – nada perseguir, nada desejar – não conseguem evitar correr atrás dos seus desejos…
O retrato perfeito da sociedade portuguesa oitocentista.
Inquietantemente actual.
Cláudia de Sousa Dias
Em Os Maias, a personalidade de Eça desdobra-se nas duas personagens principais: Ega, o cínico intelectual de Celorico, o seu alter-ego, praticamente um heterónimo; e Carlos da Maia, o Príncipe, o ideal de beleza e inteligência, nobreza e cultura, que o autor gostaria de ver em si mesmo – o seu super-ego.
Com uma sólida amizade construída no tempo da boémia em Coimbra, os dois jovens identificam-se a tal ponto que os laços que os unem resistem, incólumes, à erosão das décadas, às convulsões políticas e às oscilações sentimentais, nem sempre dotadas de bom senso por parte de Ega, ou aos devaneios passionais de Carlos.
Todos os frequentadores do Ramalhete – residência que Carlos partilha com o avô, Afonso – são homens com quem Carlos se identifica ou, simplesmente, admira: Craft, o fleumático inglês, coleccionador de antiguidades; Cruges, o músico sobredotado; Alencar, o poeta romântico que nutre uma devoção sincera pela família Maia, desde os seus tempos de juventude.
As amizades cultivadas fora do círculo restrito do Ramalhete são, normalmente, baseadas noutros interesses não raro ligados a estratégias de sedução que visam as requintadas esposas desses mesmos cavalheiros. Homens a quem não admiram nem respeitam: o Conde de Gouvarinho, político boçal que tem a seu cargo a instrução pública; o banqueiro Cohen, um homem que vive para o lucro e a quem Ega considera um dever moral humilhar seduzindo-lhe a sua bela Raquel.
O anti-herói, Dâmaso Salcede, é uma das personagens mais pitorescas do romance, devido ao seu carácter burlesco. Dâmaso é o estereótipo do saloio típico que se quer dar ares de aristocrata. Tenta, inicialmente, copiar todos os gestos e hábitos de Carlos com o objectivo de conseguir a imagem do “chique a valer”.
As reuniões na casa das janelas verdes – Ramalhete –, na qual Dâmaso consegue, durante algum tempo, infiltrar-se habilidosamente, fazem parte de um mundo totalmente masculino onde, amigavelmente, se discute literatura, filosofia, política. Onde se fala de mulheres, mas cuja ausência se faz sentir ao longo de todo o romance – excepto durante uma curta visita de Maria Eduarda, na altura em que Afonso se refugia temporariamente em Santa Olávia. No Ramalhete joga-se poker, whist e, ao mesmo tempo, degusta-se os mais requintados charutos. Voltaire, Guizot, Michelet e outros pilares do racionalismo agnóstico são trazidos à baila, enquanto se critica o lirismo de Hugo e se avilta o romantismo na poesia.
As Mulheres
Poderíamos começar por observar Maria Monforte, a mãe de Carlos e Maria Eduarda: bela e fatal, rica, exuberante ostensivamente imoderada. Uma mulher manipuladora, que sabe valer-se da sua estonteante beleza. Conhece o poder do seu corpo e a forte atracção sexual que exerce em Pedro da Maia e nos outros homens em geral, para melhor os dominar e conseguir os seus intentos.
Afonso é o único a escapar ao seu sortilégio: Maria tem uma mancha no seu passado que a torna inadequada a um casamento com um fidalgo da família Maia: um pai com um passado como traficante de escravos. A beleza fatal de Maria precipita o fim de Pedro da Maia.
As meretrizes Concha, Paca, Cármen Filósofa e Lola são, normalmente, mulheres de aspecto pouco saudável, vagamente sifilítico, pouco dadas a cuidados de higiene e ostensivamente grosseiras.
Por sua vez, a Condessa de Gouvarinho é uma mulher bela, exuberante e carente, mas sem o fatalismo de Maria Monforte. Carlos não hesita em seduzi-la para logo dela se enfastiar. Trata-a de forma algo cobarde, ao conquistá-la por mero capricho, saturando-se dela ainda antes de a possuir. Uma atitude que condiz com a sua personalidade volúvel de diletante.
A audácia quase masculina da condessa, a sua aparência provocante, o fogo dos cabelos ruivos a inextinguível paixão por Carlos e os detalhes por vezes pouco harmoniosos das suas toilettes, dão-lhe um ar de cortesã de luxo. Um aparência que contrasta fortemente com o aspecto de deusa inatingível, que se eleva acima da humanidade, que Carlos tanto admira em Maria Eduarda – a mulher ideal que todos os homens gostariam de possuir, mas com a qual o feliz contemplado se regozija de não pertencer a mais ninguém.
Raquel Cohen, a bela judia de aspecto romântico, tem o ar de uma Dama das Camélias e despoleta o delírio passional em João da Ega. Um delírio passional que termina bruscamente na noite do baile de máscaras, dado pelo casal Cohen, ao qual o adúltero par pretende comparecer fantasiado de Mefistóles e Margarida. O cinismo de Ega exibe-se despudoradamente, na sua máscara de corruptor de almas, que nada mais é do que a sua verdadeira natureza. Ega inverte, literalmente, a situação, considerando-se como a vítima insultada com a expulsão perpetrada pelo marido traído.
Raquel não é inculta para os padrões de Ega. É, pelo contrário, uma mulher que consegue discutir literatura mas sem ser literata ou “produtora de literatura”, um tipo social que despertava, na época, a misoginia masculina e o desprezo e desconfiança femininos. Uma mulher que “desse cartas no ensino da filosofia, das belas letras” ou que fosse, simplesmente, dotada de pensamento crítico era, quer para a personagem, Ega, quer para o autor, Eça, como “um monstro de duas cabeças”.
Ega despreza Raquel por esta se submeter à violência do marido mas também não lhe oferece uma alternativa válida para viver com ela em sociedade, assumindo pública e corajosamente o seu romance.
Já Maria Eduarda entra em cena envolta como que numa auréola de luz branca e dourada, pairando acima do solo como uma deusa – Juno – deslumbrando tudo e todos com a sua helénica e fria beleza de mármore.
Eduarda mostra-se sedutora para com Carlos, enquanto objecto de sedução passivo – mulher objecto. E idílica, no cenário bucólico da Toca, tal como a Joaninha de A cidade e as Serras. O retiro dos dois apaixonados na Toca é como que o recanto íntimo do casal olímpico, Júpiter e Juno, personificado por Carlos e Maria Eduarda como sendo o casal de siblings, fechado em si mesmo.
Nada se sabe praticamente, pelo menos na primeira pessoa, sobre o pensamento, sentimentos, convicções ou valores de Maria Eduarda. As suas atitudes são-nos sempre transmitidas a partir dos olhos de outrem ou idealizadas e sublimadas pelo narrador que a descreve como o arquétipo perfeito de todas as perfeições.
É facilmente perceptível que Maria Eduarda é viajada, habituada a todos os requintes. Contudo, apesar de bem relacionada, não se lhe conhecem amizades femininas respeitáveis….Ex: quando demonstra não conhecer a esposa do Dr. Chaplain, seu médico pessoal em Paris.
Miss Sarah, a preceptora, ostenta uma aparência correcta e uma obsessão compulsiva pela ordem na disposição dos objectos no seu quarto. O que sugere uma forte repressão sexual, expressa na comoção face às atenções de Carlos, fazendo adivinhar uma forte carência afectiva.
A construção da personalidade de Carlos
A educação de Carlos é, desde cedo, tomada a cargo pelo patriarca da família – Afonso da Maia – um homem austero, detentor das virtudes de um patrício da antiga Roma republicana como Catão ou Múcio Cévola.
Carlos recebe uma educação de marcado teor britânico, cultura que Afonso da Maia admira pelo racionalismo e liberalismo económico. É sob a alçada do Avô e de Mr Jones, o preceptor, que Carlos desenvolve o gosto pelas ciências e pela educação física, quase marcial, cujo obectivo é o de desenvolver a sua robustez e virilidade.
A educação de Carlos é o oposto da de Eusebiozinho, hiper-protegido e mimado pelas mulheres da família, ignorantes e beatas. Este último acaba por receber uma instrução clássica, totalmente desadequada ao seu nível etário e descurando totalmente o desenvolvimento físico. O resultado é evidente...
Apesar da sua esmerada educação, o diletantismo e a dispersão de Carlos, já adulto, atrofiam a sua vida profissional e pessoal. Por outro lado, a inveja dos colegas quando começa a ter os primeiros sucessos, quer como clínico quer como investigador científico, fazem com que este caia no ridículo e seja desacreditado, levando-o a desinteressar-se do exercício da sua profissão.
Aliás, tanto Carlos como Ega, têm o mesmo problema de desmotivação no trabalho devido, em parte, à desafogadíssima situação financeira em que se encontram e, também, ao atraso intelectual que grassa o país e os precipita para uma vida ociosa para desespero de Afonso da Maia.
O próprio Cruges que vive apenas e só para a música tem dificuldade em encontrar público à altura, não só da sua própria música como até para os grandes mestres como Beethoven.
Eça, o sociólogo
A crítica e análise social são abundantes raiando, por vezes, a maledicência em Os Maias. São uma constante ao longo de toda a obra, sobretudo no que se refere ao domínio da Igreja na educação e formação da consciência colectiva. São igualmente, evidenciadas a falta de conteúdo nos programas políticos de desenvolvimento das infra-estruturas, tanto em Portugal como nas colónias, bem como a vacuidade relativamente a ideias válidas pelos políticos portugueses.
O episódio das corridas no hipódromo, no qual se salienta a falta de gosto nas toilettes escolhidas para a ocasião – demasiada exuberância ou demasiada austeridade – mostram alguns tipos sociais característicos da sociedade lisboeta de então, onde predomina, sobretudo a pobreza de espírito.
Outra situação semelhante é a do sarau literário e musical onde triunfam os medíocres e o público, particularmente as senhoras, que demonstram ostensivamente e de forma algo vexatória a sua ignorância.
Os Maias é sobretudo uma história que fala da hipocrisia das normas morais de uma época – patente na manifestação do repúdio à ofensa gratuita a alguém motivada unicamente pela inveja e pelo despeito – emoções incarnadas por Dâmaso e Eusebiozinho. A inveja é, sobretudo evidenciada pelo ridículo Dâmaso, ao tentar, invariavelmente, passar por aquilo que não é. Este estoura de despeito com a preferência de Maria Eduarda, Rosa e até da cadela Niniche por Carlos.
A inveja de Dâmaso é um dos motivos que farão despoletar a tragédia através dos seus laços de parentesco com o Sr. Guimarães – o elo de ligação de Maria Eduarda com as suas origens.
Ainda relacionado com a inveja e desejo de difamação, características que o autor quase que identifica como sentimentos nacionais, é a chamada de atenção para o jornalismo sensacionalista e difamatório tão apreciado pelo público português, mesmo nos nossos dias. Um jornalismo de pacotilha, personificada pela gazeta A Corneta do Diabo e pelo respectivo dono, o ascoroso palma Cavalão. Trata-se de um pasquim onde não figuram artigos científicos ou culturais cuja ausência é “proveniente do desejo dos medíocres em que não se aluda muito aos grandes”. Eça não resiste em espetar uma das suas mais contundentes farpas ao afirmar que “…os jornais que abdicam das funções de estudo e da crítica se terem tornado folhas rasteiras de informação caseira, calam-se por se saberem incompetentes”.
Segredo e Preconceito
O secretismo é, por outro lado, o útero onde se desenvolve a tragédia. Afonso da Maia alimentou o desenvolvimento da fatalidade pela intransigência manifestada, pelo afastamento total ao evitar conhecer a esposa de Pedro, bem como dos netos e ao refugiar-se na sua torre de marfim. E, sobretudo, em não verificar pessoalmente a morte de Maria Eduarda em Paris.
A Paixão de Carlos
Os Maias é também uma obra que fala do poder da paixão sobre a razão. O facto de Carlos saber que Maria Eduarda é sua irmã, não faz com que o desejo desapareça. Mas é talvez, o manípulo que o obriga a olhar a sua deusa mais desapaixonadamente – por sabê-la já parte de si, não precisando de a possuir – com maior objectividade, um interruptor que lhe desliga a paixão. Apercebe-se que ela se tornou uma fêmea activa, durante o acto sexual, fazendo-lhe aflorar a sua misoginia. A fêmea inibe-o. E o desejo animal da mulher apavora-o, matando-lhe gradualmente a virilidade. Tal como com D. Juan, Carlos gosta de mulheres receptivas, mas semi-frígidas, de preferência que não tenham orgasmos.
Eduarda deixou de ser a mulher ideal para ser apenas…mulher. E, com isso, perdeu o encanto.
A (des)codificação da tragédia
A utilização de indícios e presságios é frequente ao longo da obra. Logo no primeiro capítulo, Vilaça, o administrador dos Maias, refere que “…eram sempre fatais aos Maias as paredes do Ramalhete…”, uma predição sibilina, confirmada no final “…pois fatais foram!”
Tal como a sombrinha escarlate de Maria Monforte “uma mancha de sangue” no meio do omnipresente rosa da toilette – presságio de morte.
Outra profecia, desta vez a respeito de Carlos, é ditada por Ega quando o compara a D.Giovanni – cap VI – dizendo que Carlos”… haveria de vir a acabar como ele (D.Giovanni ou D. Juan), numa tragédia infernal”.
O penúltimo capítulo está povoado de sinais de tragédia desde a melancolia do tempo de Inverno, que se reflecte no olhar de Pedro da Maia, no retrato a óleo, como que observando o destino dos seus descendentes, até à vela que “…ia morrendo” no castiçal segurado por Afonso da Maia quando este olha para Carlos pela última vez; “…a luz que sobre o veludo espalha um tom de sangue”, ao cair da cortina, com as armas dos Maias, logo após o patriarca ter deixado o escritório – indício de que, para a personagem, foi aquela a última cena.
No final, após o abandono do Ramalhete, assiste-se ao triunfo da inércia e do hedonismo, no qual Carlos e Ega mergulham. A busca do prazer como objectivo último na vida. Apesar de pregarem o estoicismo – nada perseguir, nada desejar – não conseguem evitar correr atrás dos seus desejos…
O retrato perfeito da sociedade portuguesa oitocentista.
Inquietantemente actual.
Cláudia de Sousa Dias
11 Comments:
Magnífico post.
Obrigado.
Obrigada, eu!
Benvindo ao meu pequeno mundo dos livros!
CSD
Que estofo, linda Claúdia. E corajosa a tua escolha. Mas adorei ler este post. Muito bom!
(sobre o Escritor Famoso: se não quiseres postar aqui, podes enviar apenas para mim ou postar directamente no http://efamoso.blogspot.com.
beijinhos
minha amiga,
agora entendo a sms!
genial, linda, genial!
Obrigada às duas!
:) beijinhos!
CSD
Ainda hoje, a minha mãe me pergunta que graça achava eu aos Maias, ao ponto de me rir ás tantas da manhã.
Ainda hoje fica lixada quando lhe respondo que aquele livro não existe, só lido.
;-)beijinho
olaaaaaaa
os maias mt fixe..
ja agora nao keres por ai um do memorial do convento ou do felizmente há luar??? heheheheh
é q ainda nao os li (eu sei sou preguixoxa) mas pontu....
espero q esteja tudo bem.
bjinho
realmente jp!
Mas toda a obra do Eça...!
Hoje vou tentar ler um trecho d'A Relíquia na sessão do conto e da poesia, aqui em Famalicão! um daqueles episódios de rir até às lágrimas!
:)
Beautiful Angel, prometo que vou tentar, pelo menos o Memorial do Convento!
Está td bem contigo?
CSD
"Os Maias", sem sombra de dúvida o melhor de Eça e arrisco-me a dizer que o melhor romance português e seguramente um dos melhores do mundo...
Li-o 3 vezes e em todas elas encontrei coisas novas e apaixonantes. O nome do meu blog, o diletante, tem muito a ver com a personalidade de carlos e talvez com a minha própria personalidade. Revi-me muito em Carlos, em muita coisa que Eça descrevia da personalidade deste personagem, algumas coisas boas, outras menos boas...
Parabéns pelo post, está de facto muito bom.
Não sei se já leste alguma coisa mas aconselho-te a ler aquele que, para mim, é o melhor escritor português: Miguel Torga. Começa pela criação do Mundo e depois passa aos Bichos, e por último lê os contos. Vais ver que é de facto muito bom. Eu já estou a ler os diarios e acredita que já tendo lido quase tudo dele, continuo a ficar surpreendido pela positiva ao longo que vou avançando nos diarios...
Beijo
Obrigada Blackscorpion!
Vou seguir a tua sugestão!
Beijo!
:)
CSD
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