“Clara e a Penumbra” de José Carlos Somoza (Quetzal)
No mundo das Artes plásticas, idealizado pelo Autor para o ano de 2006 – uma vez que a obra foi escrita no dealbar do século XXI –, triunfa a corrente do Hiperdramatismo que consiste na exibição e aluguer de obras de arte vivas. Ou seja, as figuras humanas posam, isoladas ou em conjunto, formando quadros ou murais, com os corpos totalmente pintados. Trata-se de uma forma de representação do real que excede, em muito, as prerrogativas do actual bodypainting. As “obras de arte” humanas são treinadas, desde idade muito precoce, num processo contínuo de despersonalização. Para isso, são controladas psicológica e biologicamente, a fim de eliminarem limitações quer de ordem biológica quer emocional. Ao ponto de, aqueles que diariamente com elas contactam, deixarem de vê-las como pessoas…
Clara Reyes é uma modelo ambiciosa que, pretende ser a melhor e, para isso, submete-se às duras leis do mercado, colocando em risco, inclusive, a sua integridade física…
Tudo em nome da Arte. Da imortalidade.
Do ponto de vista da psicopatologia, quase todas as personagens apresentam distúrbios de personalidade.
Os modelos de Arte hiperdramática são obrigados a anular todo e qualquer traço de autonomia ou vontade própria, visando a satisfação de uma necessidade patológica de protagonismo.
Todo o staff ligado à mesma corrente artística manifesta comportamentos anti-sociais pelo facto de não considerarem os modelos como pessoas.
Miss Wood, responsável pelo marketing da galeria, afirma que “Hiperdramatismo são pinturas que se movem e que às vezes parecem pessoas”.
Jacob Stein, marchand de arte hiperdramática, um homem que vive para o dinheiro está convicto que “O dinheiro é Arte”. Trata-se de um homem que não hesita em traficar sexo sob a capa de “espectáculos de arte hiperdramática interactiva com o público”.
O pintor Van Tisch, é um homem aparentemente calmo mas encerra em si algo de sinistro, devido à sua aparência sombria.
Sendo o líder da corrente hiperdramática, Van Tish acredita que “a luz e as trevas são extremos que, por si só, não comportam a verdade”. Esta encontra-se num ponto intermédio. “A verdade está na penumbra”. Este é o limiar onde se encontra a personalidade do pintor pelo menos até ao final do romance…
No entanto todas estas personagens, que revelam comportamentos anti-sociais, apresentam outras perturbações da personalidade associadas tal como o narcisismo e o histrionismo.
Só Clara Reyes sofre da perturbação histriónica da personalidade, sem contudo revelar explicitamente comportamentos anti-sociais. A modelo gosta de ser o centro das atenções. De ser admirada. De causar choque. Mas a sua maior ambição é contemplar a face do Horror.
Todas estas personagens manifestam um ostensivo desprezo em relação às pessoas consideradas normais, olhando-as como inferiores.
Salvo duas excepções, que constituem o ponto de referência em relação ao eixo de padrões comportamentais daquilo que pode ser considerado como a norma: Gerardo, o assistente de Van Tisch - “ A arte pertence à vida e não o contrário” - (sic) e Lothar Bosch, responsável pelo departamento de segurança da galeria, encarregue de descobrir o serial killer responsável pela morte de vários modelos de quadros hiperdramáticos.
Bosch é a personagem que mais se opõe à distorção dos valores dos Hiperdramáticos “somos mais do que simples aparências” (sic) o que remete para a temática de A Caverna das Ideias, também da autoria de Somoza e já publicado pela Quetzal- romance onde também se tenta descobrir um assassino em série, desta vez na célebre Academia de Platão.
A atitude de Bosch contrasta frontalmente com o materialismo cínico de Miss Wood e das restantes personagens: “ o Hiperdramatismo são as pessoas que ficam quietas e que os outros afirmam tratar-se de pinturas”.
Clara e a Penumbra é um romance de grande impacto, onde se lê nas entrelinhas uma acutilante crítica ao capitalismo desenfreado no mundo da Arte e, por analogia, ao mundo da moda. Duas esferas em que o espectáculo é, muitas vezes, pretexto para a implementação camuflada da prostituição de luxo.
Para este autor cubano, trata-se da herança do nazismo na sociedade actual, em que o mundo é dividido em cidadãos de categoria A – aqueles cuja vida vale a pena preservar a todo o custo e cuja genialidade justifica as maiores atrocidades que um génio incompreendido possa conceber, isto é, em que os fins justificam os meios – e os cidadãos de categoria B, os inferiores, que podem e devem ser manipulados pelas pessoas superiores, submetendo-se à sua pseudo-divindade.
Um livro cuja leitura incomoda pelo cinismo explícito no discurso das personagens e pela lógica tortuosa das mesmas. Clara e a Penumbra é uma obra literária com uma qualidade sem precedentes quer pela imaginação prodigiosa do Autor quer pela mensagem nela contida. Uma mensagem que traduz uma caricatura magnificamente elaborada sobre os valores éticos e padrões de conduta que vigoram na sociedade actual.
Que, cada vez mais, se rege pela ditadura dos números.
A escrita é rica, as descrições pormenorizadas, sensoriais, impregnadas de uma grande dose de realismo.
Somoza não deixa, mais uma vez de nos reservar uma surpresa para o final – a finalidade do assassino, algo totalmente inesperado – apesar de não tão perfeitamente arquitectada como em A Caverna das Ideias, onde se assiste a uma reviravolta precisamente no último parágrafo.
Um livro perturbador. Onde a arte e a desumanização de uma sociedade marcada por um capitalismo desenfreado desempenham os papéis principais.
Que marca pela (im)pertinência.
Um autor que se impõe pela diferença.
Cláudia de Sousa Dias
Clara Reyes é uma modelo ambiciosa que, pretende ser a melhor e, para isso, submete-se às duras leis do mercado, colocando em risco, inclusive, a sua integridade física…
Tudo em nome da Arte. Da imortalidade.
Do ponto de vista da psicopatologia, quase todas as personagens apresentam distúrbios de personalidade.
Os modelos de Arte hiperdramática são obrigados a anular todo e qualquer traço de autonomia ou vontade própria, visando a satisfação de uma necessidade patológica de protagonismo.
Todo o staff ligado à mesma corrente artística manifesta comportamentos anti-sociais pelo facto de não considerarem os modelos como pessoas.
Miss Wood, responsável pelo marketing da galeria, afirma que “Hiperdramatismo são pinturas que se movem e que às vezes parecem pessoas”.
Jacob Stein, marchand de arte hiperdramática, um homem que vive para o dinheiro está convicto que “O dinheiro é Arte”. Trata-se de um homem que não hesita em traficar sexo sob a capa de “espectáculos de arte hiperdramática interactiva com o público”.
O pintor Van Tisch, é um homem aparentemente calmo mas encerra em si algo de sinistro, devido à sua aparência sombria.
Sendo o líder da corrente hiperdramática, Van Tish acredita que “a luz e as trevas são extremos que, por si só, não comportam a verdade”. Esta encontra-se num ponto intermédio. “A verdade está na penumbra”. Este é o limiar onde se encontra a personalidade do pintor pelo menos até ao final do romance…
No entanto todas estas personagens, que revelam comportamentos anti-sociais, apresentam outras perturbações da personalidade associadas tal como o narcisismo e o histrionismo.
Só Clara Reyes sofre da perturbação histriónica da personalidade, sem contudo revelar explicitamente comportamentos anti-sociais. A modelo gosta de ser o centro das atenções. De ser admirada. De causar choque. Mas a sua maior ambição é contemplar a face do Horror.
Todas estas personagens manifestam um ostensivo desprezo em relação às pessoas consideradas normais, olhando-as como inferiores.
Salvo duas excepções, que constituem o ponto de referência em relação ao eixo de padrões comportamentais daquilo que pode ser considerado como a norma: Gerardo, o assistente de Van Tisch - “ A arte pertence à vida e não o contrário” - (sic) e Lothar Bosch, responsável pelo departamento de segurança da galeria, encarregue de descobrir o serial killer responsável pela morte de vários modelos de quadros hiperdramáticos.
Bosch é a personagem que mais se opõe à distorção dos valores dos Hiperdramáticos “somos mais do que simples aparências” (sic) o que remete para a temática de A Caverna das Ideias, também da autoria de Somoza e já publicado pela Quetzal- romance onde também se tenta descobrir um assassino em série, desta vez na célebre Academia de Platão.
A atitude de Bosch contrasta frontalmente com o materialismo cínico de Miss Wood e das restantes personagens: “ o Hiperdramatismo são as pessoas que ficam quietas e que os outros afirmam tratar-se de pinturas”.
Clara e a Penumbra é um romance de grande impacto, onde se lê nas entrelinhas uma acutilante crítica ao capitalismo desenfreado no mundo da Arte e, por analogia, ao mundo da moda. Duas esferas em que o espectáculo é, muitas vezes, pretexto para a implementação camuflada da prostituição de luxo.
Para este autor cubano, trata-se da herança do nazismo na sociedade actual, em que o mundo é dividido em cidadãos de categoria A – aqueles cuja vida vale a pena preservar a todo o custo e cuja genialidade justifica as maiores atrocidades que um génio incompreendido possa conceber, isto é, em que os fins justificam os meios – e os cidadãos de categoria B, os inferiores, que podem e devem ser manipulados pelas pessoas superiores, submetendo-se à sua pseudo-divindade.
Um livro cuja leitura incomoda pelo cinismo explícito no discurso das personagens e pela lógica tortuosa das mesmas. Clara e a Penumbra é uma obra literária com uma qualidade sem precedentes quer pela imaginação prodigiosa do Autor quer pela mensagem nela contida. Uma mensagem que traduz uma caricatura magnificamente elaborada sobre os valores éticos e padrões de conduta que vigoram na sociedade actual.
Que, cada vez mais, se rege pela ditadura dos números.
A escrita é rica, as descrições pormenorizadas, sensoriais, impregnadas de uma grande dose de realismo.
Somoza não deixa, mais uma vez de nos reservar uma surpresa para o final – a finalidade do assassino, algo totalmente inesperado – apesar de não tão perfeitamente arquitectada como em A Caverna das Ideias, onde se assiste a uma reviravolta precisamente no último parágrafo.
Um livro perturbador. Onde a arte e a desumanização de uma sociedade marcada por um capitalismo desenfreado desempenham os papéis principais.
Que marca pela (im)pertinência.
Um autor que se impõe pela diferença.
Cláudia de Sousa Dias
6 Comments:
Infelizmente o dinheiro está em todo lado.
:)
MG
Continuasse muito bem por aqui minha querida amiga. Com as tuas palavras sobre os livros.
bjo grande
ali era ifen ;) bjo
Obrigada aos dois!
:)
Bjo
CSD
Gostei tanto deste livro! Ficou permanentemente gravado por ser tão absolutamente perturbador.
Ainda gostei mais de "A caverna das Ideias" do mesmo Autor...
:-)
CSD
Post a Comment
<< Home