“A Guardadora de Gansos” de Luísa Monteiro (Âncora)
Não. Não é o conto infantil, na versão dos Irmãos Grimm ou de qualquer um dos autores os antecederam – nas suas múltiplas adaptações ou recriações -, tal como acontece com a maior parte dos contos tradicionais.
Trata-se de uma belíssima história, que exprime o quão grande e profundo pode ser o amor de uma filha por um pai. Mesmo que não seja o único. Ou talvez por isso mesmo.
E porque o amor carnal é outra das dimensões do Amor, explorada por Luísa Monteiro nos seus livros, a busca da harmonia perfeita entre corpos e almas, torna-se a cruzada de Vita. A busca dessa união perfeita que só encontra na infância perdida e na relação telúrica que estabelece com a terra que dá as uvas, o fruto da fertilidade, segundo a tradição cigana.
O romance gira à volta de um triângulo amoroso que cinde o coração de Vita. Esta sente, ao longo de todo o desenrolar do romance, que há sempre uma parte dela que lhe falta.
Trata-se de uma história contada a quatro vozes. Em primeiro lugar, a da narradora e protagonista, Vita, que parece ser, ao que tudo indica, um heterónimo da Autora, como iremos verificar a seguir.
Todo o discurso de Vita exprime, de uma forma extremamente poética – por vezes codificada, numa linguagem onírica, da qual é necessário extrair o seu conteúdo latente -, o amor absoluto à terra, à natureza, à vinha e ao vinho, o néctar dos deuses. A paixão pelo processo que envolve a produção do vinho reveste-se de um fervor quase que sagrado situado, paradoxalmente, no limiar do profano. A terra é a sua ligação às origens genéticas e culturais, inculcadas pelo pai.
A segunda voz é a das Horas, as fadas-madrinhas, as estações que se sucedem e que vigiam o desenrolar do destino de Vita; elas exprimem o pensamento (auto)-crítico da personagem, a imagem que ela tem de si própria. São o seu duplo. São o lado positivo da auto-imagem da protagonista.
Paralelamente, temos a voz das Moiras ou das Parcas que selam o destino da vida dos humanos. São elas, sobretudo a última, Átropos, quem decide quando cortar o Fio da Vida. Neste caso, o fio que liga Vita à Vida. A linguagem das Moiras é sempre altamente provocadora, imbuída, muitas vezes do travo amargo de certo cinismo. Elas representam o pólo negativo da auto-imagem de Vita, a parte mais obscura do seu pensamento e emoções.
Vita é, afinal, detentora de uma personalidade múltipla, isto é, que se desdobra em várias outras: no discurso das Horas e das Moiras, apercebemo-nos que, apesar de estas se referirem a Vita na terceira pessoa, o pensamento expresso é o da própria Vita. Esta sai de si própria para encarnar noutras personagens e refugiar-se numa avaliação crítica que pretende ser o mais objectiva possível.
Por último, a quarta voz, a das personagens dos contos infantis que influenciaram e ajudaram à construção dos arquétipos que constituem a referência axiológica na construção do carácter de Vita: Pinocchio, Polegarzinha e Cinderela.
Estes personagens dialogam entre si, num discurso à parte e comentam as atitudes e as escolhas de Vita.
São exteriores à consciência da personagem principal, ao contrário das Moiras e das Horas que se limitam a descrever as situações – de uma forma poética seja ela romântica ou cínica -, mas sempre sem emitir juízos de valor.
Os personagens dos contos de fadas actuam como juízes, representam a sociedade com os seus cânones mais ou menos rígidos e julgam constantemente as atitudes de Vita.
Cinderela, crítica e fútil, representa a parte do tecido social que se rege pelas aparências e pelo materialismo. É a personagem mais frívola e superficial, que a narradora não hesita em catalogar de estúpida, à laia de retaliação!
Pinocchio é o “juiz” mais benevolente, ingénuo e ligeiramente transgressor.
Polegarzinha aparece como a personagem arquetípica mais inteligente e ponderada, racional.
Os três comentam entre si a vida de Vita como se de um filme se tratasse.
A biografia de Vita é contada em capítulos que narram os acontecimentos relevantes para a protagonista de sete em sete anos, número que segundo a tradição judaica simboliza o poder divino.
A segunda parte do livro é constituída pelos contos narrados e recriados por Vita, a herança legada pelos caseiros da quinta. Que para ela constituíam a família de gansos que lhe deixa a lembrança da época em que realmente se sentiu como pertencente a uma colectividade, com o sentimento de segurança e protecção que isso acarreta.
Os contos, dezassete ao todo, são povoados de grande beleza e conteúdo emocional onde o tema recorrente é, quase sempre, a perda.
Destaque para a beleza pungente de O Sorriso dos Ponteiros, onde impera a inocência e o amor altruísta no seu expoente máximo.
A Coroa de Pérolas Negras que fala de humildade no infortúnio e da arrogância e avareza na prosperidade.
Violetas em Gelo, mais uma referência às aveludadas, escuras e perfumadíssimas pétalas, já presente em O Evangelho das Rãs no nome atribuído a uma das personagens principais e, também, em diversos episódios da vida de Vita. Neste conto, as flores aromatizam os cubos de gelo que refrigeram o vinho. Uma estória que fala de beleza: intrínseca e extrínseca.
A sensibilidade à flor da pele e extra-sensorial em Transplante de Mar.
A incompreensão em A Bicicleta Fantasma.
E, por último, o fabuloso conto intitulado de O Baptizado. Futurista, povoado de personagens de nomes bíblicos, protagonistas de factos que pouco ou nada têm a ver com aqueles que são relatados nos Evangelhos. Trata-se de um mundo modificado, que já nada tem a ver com o nosso, onde já não há lugar para religiões, dinheiro, governo…Um mundo árido, onde só há lugar para o Amor…
Mais um livro genial, de uma das melhores autoras portuguesas da actualidade.
Soberbo.
Cláudia de Sousa Dias
Trata-se de uma belíssima história, que exprime o quão grande e profundo pode ser o amor de uma filha por um pai. Mesmo que não seja o único. Ou talvez por isso mesmo.
E porque o amor carnal é outra das dimensões do Amor, explorada por Luísa Monteiro nos seus livros, a busca da harmonia perfeita entre corpos e almas, torna-se a cruzada de Vita. A busca dessa união perfeita que só encontra na infância perdida e na relação telúrica que estabelece com a terra que dá as uvas, o fruto da fertilidade, segundo a tradição cigana.
O romance gira à volta de um triângulo amoroso que cinde o coração de Vita. Esta sente, ao longo de todo o desenrolar do romance, que há sempre uma parte dela que lhe falta.
Trata-se de uma história contada a quatro vozes. Em primeiro lugar, a da narradora e protagonista, Vita, que parece ser, ao que tudo indica, um heterónimo da Autora, como iremos verificar a seguir.
Todo o discurso de Vita exprime, de uma forma extremamente poética – por vezes codificada, numa linguagem onírica, da qual é necessário extrair o seu conteúdo latente -, o amor absoluto à terra, à natureza, à vinha e ao vinho, o néctar dos deuses. A paixão pelo processo que envolve a produção do vinho reveste-se de um fervor quase que sagrado situado, paradoxalmente, no limiar do profano. A terra é a sua ligação às origens genéticas e culturais, inculcadas pelo pai.
A segunda voz é a das Horas, as fadas-madrinhas, as estações que se sucedem e que vigiam o desenrolar do destino de Vita; elas exprimem o pensamento (auto)-crítico da personagem, a imagem que ela tem de si própria. São o seu duplo. São o lado positivo da auto-imagem da protagonista.
Paralelamente, temos a voz das Moiras ou das Parcas que selam o destino da vida dos humanos. São elas, sobretudo a última, Átropos, quem decide quando cortar o Fio da Vida. Neste caso, o fio que liga Vita à Vida. A linguagem das Moiras é sempre altamente provocadora, imbuída, muitas vezes do travo amargo de certo cinismo. Elas representam o pólo negativo da auto-imagem de Vita, a parte mais obscura do seu pensamento e emoções.
Vita é, afinal, detentora de uma personalidade múltipla, isto é, que se desdobra em várias outras: no discurso das Horas e das Moiras, apercebemo-nos que, apesar de estas se referirem a Vita na terceira pessoa, o pensamento expresso é o da própria Vita. Esta sai de si própria para encarnar noutras personagens e refugiar-se numa avaliação crítica que pretende ser o mais objectiva possível.
Por último, a quarta voz, a das personagens dos contos infantis que influenciaram e ajudaram à construção dos arquétipos que constituem a referência axiológica na construção do carácter de Vita: Pinocchio, Polegarzinha e Cinderela.
Estes personagens dialogam entre si, num discurso à parte e comentam as atitudes e as escolhas de Vita.
São exteriores à consciência da personagem principal, ao contrário das Moiras e das Horas que se limitam a descrever as situações – de uma forma poética seja ela romântica ou cínica -, mas sempre sem emitir juízos de valor.
Os personagens dos contos de fadas actuam como juízes, representam a sociedade com os seus cânones mais ou menos rígidos e julgam constantemente as atitudes de Vita.
Cinderela, crítica e fútil, representa a parte do tecido social que se rege pelas aparências e pelo materialismo. É a personagem mais frívola e superficial, que a narradora não hesita em catalogar de estúpida, à laia de retaliação!
Pinocchio é o “juiz” mais benevolente, ingénuo e ligeiramente transgressor.
Polegarzinha aparece como a personagem arquetípica mais inteligente e ponderada, racional.
Os três comentam entre si a vida de Vita como se de um filme se tratasse.
A biografia de Vita é contada em capítulos que narram os acontecimentos relevantes para a protagonista de sete em sete anos, número que segundo a tradição judaica simboliza o poder divino.
A segunda parte do livro é constituída pelos contos narrados e recriados por Vita, a herança legada pelos caseiros da quinta. Que para ela constituíam a família de gansos que lhe deixa a lembrança da época em que realmente se sentiu como pertencente a uma colectividade, com o sentimento de segurança e protecção que isso acarreta.
Os contos, dezassete ao todo, são povoados de grande beleza e conteúdo emocional onde o tema recorrente é, quase sempre, a perda.
Destaque para a beleza pungente de O Sorriso dos Ponteiros, onde impera a inocência e o amor altruísta no seu expoente máximo.
A Coroa de Pérolas Negras que fala de humildade no infortúnio e da arrogância e avareza na prosperidade.
Violetas em Gelo, mais uma referência às aveludadas, escuras e perfumadíssimas pétalas, já presente em O Evangelho das Rãs no nome atribuído a uma das personagens principais e, também, em diversos episódios da vida de Vita. Neste conto, as flores aromatizam os cubos de gelo que refrigeram o vinho. Uma estória que fala de beleza: intrínseca e extrínseca.
A sensibilidade à flor da pele e extra-sensorial em Transplante de Mar.
A incompreensão em A Bicicleta Fantasma.
E, por último, o fabuloso conto intitulado de O Baptizado. Futurista, povoado de personagens de nomes bíblicos, protagonistas de factos que pouco ou nada têm a ver com aqueles que são relatados nos Evangelhos. Trata-se de um mundo modificado, que já nada tem a ver com o nosso, onde já não há lugar para religiões, dinheiro, governo…Um mundo árido, onde só há lugar para o Amor…
Mais um livro genial, de uma das melhores autoras portuguesas da actualidade.
Soberbo.
Cláudia de Sousa Dias
5 Comments:
Não vejo o momento de ler o livro. Ainda mais, agora, depois de te ler.
bjo e bom-fim-de-semana :)
Thanks, Maria!
Um óptimo fim-de-semana para ti tb!
Beijo.
Cara Cláudia,
apreciei muito a crítica que fez ao livro "A Guardadora de Gansos". Enviei-lhe por Filipe Oliveira a minha mais recente obra: "A Vaca-loura". Penso que ele está com problemas em encontrar a sua morada - daí que o livro esteja nas mãos dele há já alguns dias.
Muito grata e os meus mais elevados parabéns pela lucidez e capacidade técnica na crítica literária que faz no seu delicioso "blog".
Ao seu dispor,
LM
Cara LM,
Estou muito contente com a sua visita ao meu Blog!
Tratarei de contactar o Filipe Oliveira o mais breve possível.
Obrigada!
CSD
Olá Lm!
Já estou na posse do livro!
Logo que acabe de o ler, provavelmente lá mais para o fim da próxima semana já lhe dou o feed-back!
Um beijinho e bom fim-de-semana!
CSD
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