"O Conselho do Egipto" de Leonardo Sciascia (Dom Quixote)
Leonardo Sciascia é considerado um dos mais prestigiados romancistas italianos contemporâneos fazendo parte da “santíssima trindade” (nota do Editor) da literatura italiana cujos outros dois vértices do mesmo triângulo equilátero se denominam Italo Calvino e Alberto Moravia.
O editor descreve O Conselho do Egipto como uma “crónica fascinante de uma espectacular burla cultural”.
“(…) Je veux voir la patrie de Proserpine et savoir un peu pourquoi le diable a pris femme en ce pays-là.”
Courier Lettres de France et d’Italie
Na epígrafe supracitada, onde o Autor se propõe fornecer ao leitor as coordenadas do desenvolvimento do romance, temos a chave para entender o seu objectivo principal: a caracterização de um período da conturbadíssima história da Sicília, mais propriamente do vice-reinado de Caracciolo, em pleno século XVIII. O Inferno é o das intrigas palacianas onde o que não faltam são Agamémnons prontos a matar filhas e mães… em nome do poder e da manutenção dos privilégios seculares de uma classe que começa a sentir as consequências de uma vida de dissipação e arbitrariedades.
Por outro lado, começa-se a assistir ao triunfo progressivo e inexorável da burguesia.
O tema central é uma estruturadíssima fraude cultural que começa com o apurado sentido de oportunidade do Abade Giuseppe Vella que goza, na sua terra, da reputação de erudito e especialista em língua árabe.
Vendo-se a braços com uma situação económica periclitante que o obriga a exercer outras actividades paralelas ao sacerdócio – tradução, decifração de sonhos – o Abade Vella depende, inclusive, da generosidade da sobrinha, já sobrecarregada com um marido agressivo e dissipador.
Afortunadamente, a oportunidade esperada surge, com o pedido real de fazer o papel de cicerone a Abdalah Mohamed bin Olman, embaixador de Marrocos: aproveitando-se do desconhecimento total da língua árabe por parte dos elementos da corte, na mente do ambicioso abade começa a germinar a ideia de apresentar à sociedade italiana a tradução de um misterioso volume em caracteres árabes que o tire definitivamente da situação de miséria ou pobreza relativa. Decido então, submetê-lo à aprovação do embaixador, adulterando descaradamente a tradução da conversa entre os dois envolvendo a apreciação do estranho volume.
Apesar de Bin Olman afirmar ser o códice apenas uma vulgar biografia do Profeta, como tantas outras, sem qualquer tipo de relação com a história da Sicília, Vella afirma que o embaixador confirma tratar-se o volume de uma colecção de cartas e relatórios do governo siciliano na época da ocupação muçulmana, pondo em causa a ordem actual das coisas, nomeadamente, o direito sucessório de muitos do grandes latifundiários sicilianos: a questão de posse relativa a bens imóveis, devido a um obscuro passado genealógico ou a (supostas) transacções comerciais de carácter duvidoso no que toca aos respectivos procedimentos legais.
Partindo desta fraude gigantesca, ao arvorar-se de uma erudição e conhecimento da língua árabe que está longe de possuir, Vella torna-se temido e, consequentemente, paparicado pela nobreza latifundiária que, através de inúmeros e caríssimos presentes (subornos, segundo as más-línguas), tenta conseguir manter os seus bens, convencendo o Abade a “fechar os olhos” a determinadas passagens da sua pseudo tradução.
O desconhecimento da língua árabe, por parte da maior parte dos eruditos europeus, torna, praticamente, impossível o desmantelar da fraude, apesar de a perspicácia de alguns o identificar imediatamente como parasita e falso intelectual.
Um deles é o advogado Di Blasi que sofre na carne as consequências da sua rectidão e imprudência, relativamente à manifestação das suas convicções políticas e ideológicas.
O espectacular sentido de humor, a fina ironia com a qual Sciascia descreve o cinismo venal e a corrupção na alucinante mandala da política siciliana, tornam a leitura de O Conselho do Egipto extremamente apetecível, dada a precisão cinematográfica com que são descritos os mínimos detalhes do cenário e movimentos das personagens permitindo uma visualização da cena com extraordinária acuidade em todos os momentos da narrativa.
A linguagem é objectiva com um apimentado toque de malícia que dá ao sarcasmo intelectual da prosa de Sciascia o tempero adequado de forma a que o leitor assista com amargo prazer ao triunfo do ridículo e ao extermínio da Verdade e da Inteligência, isto é, à neutralização daqueles que detém, ainda, o mínimo rasgo de lucidez, mas cuja voz tem de se calar, devido à cobardia e ao comodismo daqueles que, desde cedo, se habituam a deixar que o Medo domine as suas vidas…
O Conselho do Egipto é um livro que, tal como O Pêndulo de Foucault de Umberto Eco, dispensa a adesão em massa de leitores ávidos de romances de aventuras, onde intrépidos caçadores de relíquias e teóricos da conspiração conseguem o tesouro supremo de verdades absolutas, escondidas em arcas milenárias e são premiados por isso!
A visão pessimista da sociedade aliada a um cepticismo crónico, fortemente enraizado no imaginário intelectual italiano da cepa de Autores como Morávia, Eco ou Lampedusa, tornam Sciascia capaz de detectar alguns padrões negativos de desenvolvimento ao longo da história do povo siciliano. Nomeadamente, das classes dominantes que o governam, sob as quais – apesar das sucessivas invasões provenientes de civilizações diferentes e mudanças de regime político – os grandes ideais acabam sempre por morrer debaixo do cutelo do carrasco.
Um livro que denuncia uma sociedade hipócrita, onde a serpente do materialismo estrangula os mais nobres ideais.
Um estocada fulminante na Mentira que veste a máscara da Verdade.
Cláudia de Sousa Dias
O editor descreve O Conselho do Egipto como uma “crónica fascinante de uma espectacular burla cultural”.
“(…) Je veux voir la patrie de Proserpine et savoir un peu pourquoi le diable a pris femme en ce pays-là.”
Courier Lettres de France et d’Italie
Na epígrafe supracitada, onde o Autor se propõe fornecer ao leitor as coordenadas do desenvolvimento do romance, temos a chave para entender o seu objectivo principal: a caracterização de um período da conturbadíssima história da Sicília, mais propriamente do vice-reinado de Caracciolo, em pleno século XVIII. O Inferno é o das intrigas palacianas onde o que não faltam são Agamémnons prontos a matar filhas e mães… em nome do poder e da manutenção dos privilégios seculares de uma classe que começa a sentir as consequências de uma vida de dissipação e arbitrariedades.
Por outro lado, começa-se a assistir ao triunfo progressivo e inexorável da burguesia.
O tema central é uma estruturadíssima fraude cultural que começa com o apurado sentido de oportunidade do Abade Giuseppe Vella que goza, na sua terra, da reputação de erudito e especialista em língua árabe.
Vendo-se a braços com uma situação económica periclitante que o obriga a exercer outras actividades paralelas ao sacerdócio – tradução, decifração de sonhos – o Abade Vella depende, inclusive, da generosidade da sobrinha, já sobrecarregada com um marido agressivo e dissipador.
Afortunadamente, a oportunidade esperada surge, com o pedido real de fazer o papel de cicerone a Abdalah Mohamed bin Olman, embaixador de Marrocos: aproveitando-se do desconhecimento total da língua árabe por parte dos elementos da corte, na mente do ambicioso abade começa a germinar a ideia de apresentar à sociedade italiana a tradução de um misterioso volume em caracteres árabes que o tire definitivamente da situação de miséria ou pobreza relativa. Decido então, submetê-lo à aprovação do embaixador, adulterando descaradamente a tradução da conversa entre os dois envolvendo a apreciação do estranho volume.
Apesar de Bin Olman afirmar ser o códice apenas uma vulgar biografia do Profeta, como tantas outras, sem qualquer tipo de relação com a história da Sicília, Vella afirma que o embaixador confirma tratar-se o volume de uma colecção de cartas e relatórios do governo siciliano na época da ocupação muçulmana, pondo em causa a ordem actual das coisas, nomeadamente, o direito sucessório de muitos do grandes latifundiários sicilianos: a questão de posse relativa a bens imóveis, devido a um obscuro passado genealógico ou a (supostas) transacções comerciais de carácter duvidoso no que toca aos respectivos procedimentos legais.
Partindo desta fraude gigantesca, ao arvorar-se de uma erudição e conhecimento da língua árabe que está longe de possuir, Vella torna-se temido e, consequentemente, paparicado pela nobreza latifundiária que, através de inúmeros e caríssimos presentes (subornos, segundo as más-línguas), tenta conseguir manter os seus bens, convencendo o Abade a “fechar os olhos” a determinadas passagens da sua pseudo tradução.
O desconhecimento da língua árabe, por parte da maior parte dos eruditos europeus, torna, praticamente, impossível o desmantelar da fraude, apesar de a perspicácia de alguns o identificar imediatamente como parasita e falso intelectual.
Um deles é o advogado Di Blasi que sofre na carne as consequências da sua rectidão e imprudência, relativamente à manifestação das suas convicções políticas e ideológicas.
O espectacular sentido de humor, a fina ironia com a qual Sciascia descreve o cinismo venal e a corrupção na alucinante mandala da política siciliana, tornam a leitura de O Conselho do Egipto extremamente apetecível, dada a precisão cinematográfica com que são descritos os mínimos detalhes do cenário e movimentos das personagens permitindo uma visualização da cena com extraordinária acuidade em todos os momentos da narrativa.
A linguagem é objectiva com um apimentado toque de malícia que dá ao sarcasmo intelectual da prosa de Sciascia o tempero adequado de forma a que o leitor assista com amargo prazer ao triunfo do ridículo e ao extermínio da Verdade e da Inteligência, isto é, à neutralização daqueles que detém, ainda, o mínimo rasgo de lucidez, mas cuja voz tem de se calar, devido à cobardia e ao comodismo daqueles que, desde cedo, se habituam a deixar que o Medo domine as suas vidas…
O Conselho do Egipto é um livro que, tal como O Pêndulo de Foucault de Umberto Eco, dispensa a adesão em massa de leitores ávidos de romances de aventuras, onde intrépidos caçadores de relíquias e teóricos da conspiração conseguem o tesouro supremo de verdades absolutas, escondidas em arcas milenárias e são premiados por isso!
A visão pessimista da sociedade aliada a um cepticismo crónico, fortemente enraizado no imaginário intelectual italiano da cepa de Autores como Morávia, Eco ou Lampedusa, tornam Sciascia capaz de detectar alguns padrões negativos de desenvolvimento ao longo da história do povo siciliano. Nomeadamente, das classes dominantes que o governam, sob as quais – apesar das sucessivas invasões provenientes de civilizações diferentes e mudanças de regime político – os grandes ideais acabam sempre por morrer debaixo do cutelo do carrasco.
Um livro que denuncia uma sociedade hipócrita, onde a serpente do materialismo estrangula os mais nobres ideais.
Um estocada fulminante na Mentira que veste a máscara da Verdade.
Cláudia de Sousa Dias
15 Comments:
Actual, portanto, muito actual...
Olá Toutinegra!
Há bocado tentei responder-te,mas não ficou gravado o comentário!
Bom, de facto os anos e os séculos passam e parece que continua tudo na mesma!
É essa a sensação que tenho ao ler os texto que serviram de base Às "Farpas" do Eça com o Ramalho Ortigão, sobretudo quando ele se refere à classe política deste país. Pelo menos posso falar sem ter receio de ser despedida por parte do ministério da educação. é que se a senhora em questão foi reconduzida ao cargo, também deveria sê-lo o professor que foi alvo de uma medida abusiva de coacção.
Bom, se alguém me decidir processar pelo que acabo de escrever, só me fará um favor pois assim escuso de procurar emprego nos próximos tempos, uma vez que na cadeia tenho, comida roupa lavada e muito tempo livre...
Não li, ainda. Mas concordo em absoluto com o Toutinegra (há quem ache por aí que somos uma e a mesma pessoa!): parece actualíssimo, assustadoramente... se calhar é o desígnio do homem em sociedade... se calhar não
Um abraço
Pois...
Ah! bem haja aqueles que perseguem a utopia!
CSD
Lindo!
E a tua conclusão final é simplesmente maravilhosa!
Mais um que fiquei com vontade de ler!!!
Uma vez mais, não li ... O "Conselho do Egipto", aconselhado por ti, revela-se-me quase de leitura obrigatória.
A temática, actualíssima impõe-se por si e se como referes é um "visão pessimista da sociedade aliada a um cepticismo crónico, fortemente enraizado no imaginário intelectual italiano da cepa de Autores como Morávia, Eco ou Lampedusa, tornam Sciascia capaz de detectar alguns padrões negativos de desenvolvimento ...", então Cláudia, temos livro (mas só nas férias, porque agora tenho Piaget e afins, a "potes"...).
Bjs grandes
Mel
www.noitedemel.blogs.sapo.pt
Ainda não li, mas vou anotar, pareceu-me mesmo muito interessante.
Mais uma excelente e profissional apresentação.
Bom fim-de-semana, beijinhos.
bom.dia !
mais um para a minha longa lista dos não lidos...
sabes que tenho um caderninho pra ir apontando...os livros e as notas das tuas leituras.
a partir delas crio a minha leitura virtual... vê lá como as palavras CRESCEM e se expandem !!!
:)
abraÇO*
Meus queridos miss Alcor, Mel, Nilson e Un Dress: nada é melhor do que ter leitores como vocês!
Principalmente por saber que posso chamar a atenção para algumas vozes escritas e contribuir para que algumas delas que, apesar de já se terem calado, continuem imortais, através da palavra escrita.
Se tivesse aqui uma taça de Champagne brindaria com vocês!
Um beijo grande a todos!Incluindo o Baudolino e o espião Toutinegra!
CSd
CSD
Conheço o O Pêndulo de Foucault de Umberto Eco, mas este não... andei a devorar AMélie Nothomb nos meus últimos tempos em França... e os dias continuam a ter as mesmas parcas 24 horas... é inadmissível...
É verdade!
Eu estou a acabar de ler "uma Campanha Alegre" - textos do Eça que deram origem às "Farpas". Estou a adorar, mas já tenho saudades de voltar ao romance!
CSD
Passei sem tempo de ler mas, deixo um beijo.
Obrigada Clo, outro para ti!
Passo daqui a pouco no teu blog logo que acabe de corrigir o texto que vou postar a seguir!
Até já!
CSD
mais uma vez... profunda, convidativa...
... e a ler coisas tão diversas, sempre!!!
Um beijo grande para ti.
Que delícia ver-te por cá, elipse!
Grande beijinho!
CSD
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